David Longstreth fez-nos felizes onde já foi feliz
O primeiro dia de outono trouxe algo muito especial à Galeria Zé dos Bois (ou ZDB), em Lisboa: um mui raro concerto a solo de David Longstreth, o vocalista da acarinhada banda indie Dirty Projectors, que actuou em Portugal uma única vez, exactamente na mesma sala, há 16 anos. O facto da banda que lançou dois dos álbuns mais queridos do virar da década passada, Bitte Orca e Swing Lo Magellan, não ter regressado ao nosso país desde então ainda nos confunde. Por isso, não há alternativa senão louvar a promotora lisboeta Canto, pela sua agilidade em aproveitar a vinda de David à Europa para apresentar o projecto Song of the Earth para o trazer de novo onde já foi muito feliz. E há mais boas notícias: o espectáculo foi nada menos que mágico, pelo que arriscamos dizer que um regresso provavelmente não tardará tanto.
O potencial para um concerto íntimo e especial aumenta quando se trata da ZDB, uma das salas mais consistentes e interessantes do panorama musical português, que celebra 30 anos de existência este ano. O próprio David reconheceu isso, recordando a semana que passou em Lisboa em 2008, tão “importante para a sua psique” que ainda hoje se lembra dela, e destacando o facto muitas vezes esquecido de que locais como aquele não existem em todo o lado. É por isso que os devemos apreciar, apoiar e, sempre que necessário, lutar pela continuação da sua existência, perante o risco de perdermos locais de expressão artística para a continuada gentrificação e homogeneização da cidade.
Se, naquela sala, a distância entre artista e público já é bastante reduzida, David fez questão de a reduzir ainda mais. Aproveitando a pequena dimensão da sala, libertou-se da amarra que era o microfone que captaria a sua voz, dando um passo em direção à beira do palco e ficando a menos de um metro de quem assistia na fila da frente. “Assim é mais dinâmico”, disse, depois de confirmar que todos o ouvíamos adequadamente. Palavroso, espirituoso e descontraído, David subverteu as expectativas do concerto, retrabalhando canções em tempo real, reagindo às suas próprias falhas e interagindo com o público como se estivéssemos todos em amena cavaqueira.
Armado apenas com a sua guitarra e ignorando o bonito e despido piano que se encontrava em palco, David apresentou as metamórficas canções da banda que criou — novas, velhas, inéditas e até ideias para gravar futuramente. A primeira de todas foi “Irresponsible Tune”, a esparsa e tranquilizante ode à música que nos diz que “Without songs we’re lost / And life is pointless, harsh, and long”. Foi das canções mais adequadas ao formato acústico que pautou o concerto, devido à semelhança com a versão de estúdio. Mas David Longstreth não enveredou apenas pelo caminho mais fácil. Por exemplo, desempoeirou uma canção que não tocava há mais de 10 anos: “The Bride”, do já mencionado Bitte Orca, álbum de 2009. A versão roqueira e intensa do álbum foi substituída pelo dedilhar virtuoso da guitarra, com resultados nada menos que impressionantes.
Um dos momentos mais inesperados foi a versão que fez de “Pra Machucar Meu Coração”, o clássico de João Gilberto. Que David Longstreth é um fã de bossa nova não é um segredo — em 2020, a sua banda lançou Super João, um EP inspirado pelo género brasileiro e, principalmente, por João Gilberto — mas não imaginaríamos ouvi-lo a cantar em português para nós. O tempo desacelerou para vermos o artista acertar no tempo despojado e essencial da bossa nova, numa efectiva descomplicação daquele que é o estilo idiossincrático de composição dos Dirty Projectors.
Entre as canções inéditas, ouvimos títulos como “Gimme Bread”, “Paper Birches” ou “Uninhabitable Earth” — esta última é uma musicalização do primeiro parágrafo do homónimo livro de David Wallace-Wells sobre as consequências do aquecimento global. O lado ativista do artista veio à tona em praticamente todas estas canções, que evocam a absurdez da nossa existência e a passividade com que lidamos com os desastres que nos rodeiam, para os quais a música é um bálsamo. Em termos instrumentais, as canções continuam o legado dos Dirty Projectors: imprevisível, anguloso e vagamente cómico.
Parecendo que não, passaram-se 13 canções até que David se despediu pela primeira vez, após ter tocado a sublime “Swing Lo Magellan”. Para o encore, voltou ao álbum de 2004, Slaves’ Graves and Ballads, para tocar “A Labor More Restful”, mas depois disso não se coibiu de tocar duas crowd pleasers claramente muito bem recebidas: “Dance for You” e “Temecula Sunrise”. Na primeira, harmonizámos em conjunto o airoso final da canção, emulando o efeito que as vozes da banda têm em estúdio, enquanto que na segunda nos esforçámos para nos lembrarmos do início da terceira estrofe da canção, num momento leve que nos fez rir e deixou um gosto agradável na boca.
Talvez por isso o público não tenha deixado David sair tão depressa, forçando-o a regressar ao palco uma segunda vez com fortes palmas. “Não tenho mais canções para tocar para vocês!”, exclamou. Nada que um shot de tequila e um mútuo acordo com o público não resolvessem. No fim de contas, o artista atirou-se a “Holy Mackerel”, a sua bossa nova mais característica e mais uma referência ao ícone João Gilberto. O motivo da escolha dessa canção foi particularmente especial. “Vou casar com o meu namorado no próximo mês e essa será a nossa canção de casamento”, ouvimos alguém dizer, do meio do público. Essa pessoa era nada mais nada menos que Alex D’Alva Teixeira, vocalista da parónima banda, os D’Alva. Alex foi convidado a subir ao palco com David para, com a ajuda do Google, cantarem a canção em conjunto. Foi um momento tocante que certamente ficará na memória de quem esteve presente.
Se a paciência é uma virtude, como diz o ditado e o título de uma das canções que David tocou no concerto, os fãs portugueses de Dirty Projectors são uns santos. Felizmente, esta noite mais que compensou todos estes anos de espera. Aguardemos os próximos capítulos dos Dirty Projectors pois, como este concerto demonstrou, há muito material para vir.