Reportagem. “A unique gig”: a estreia entre nós dos Black Country, New Road tinha mesmo de ser na ZDB

por Tiago Mendes,    13 Julho, 2023
Reportagem. “A unique gig”: a estreia entre nós dos Black Country, New Road tinha mesmo de ser na ZDB
Fotografia de Beatriz Pequeno
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Sobem ao palco com sorrisos amplos, e uma atitude humilde de boa disposição. Agarram nos respectivos instrumentos e dão os últimos toques na afinação e na colocação do material. Os Black Country, New Road (BC, NR), e o público com eles, preparam-se para viver uma noite que, para o público português, terá um grande significado: a estreia da banda em solo português, num concerto surpresa marcado à última da hora, para vinte e quatro horas antes do agendado concerto na Herdade do Cabeço da Flauta, no Meco, no Super Bock Super Rock (SBSR). Entre o público, as certamente menos de duas centenas de sortudos que agarraram bilhetes na venda que, no dia anterior, esgotara em vinte minutos. Há no rosto de cada um dos membros da banda uma serenidade e, em alguns, até um certo recato pouco pop-staresco. Às primeiras notas do saxofone de Lewis Evans, o público adopta uma atitude de silencioso respeito, só furado nos refrões mais entusiasmados, em que as vozes se juntam como coros em toda a sala.

Fotografia de Beatriz Pequeno

E tão bem que soube esse silêncio partilhado, que permitia ouvir os detalhes das belas composições da banda inglesa com uma proximidade assombrosa. A história desta longa espera pelos BC,NR recuava a 2021. Ainda antes de o grupo lançar o seu álbum de estreia em fevereiro desse ano, já a Galeria Zé dos Bois (no Bairro Alto, em Lisboa) anunciava uma data para novembro próximo. A data haveria de ser chutada para três semanas depois, coincidindo com a confirmação dos BC,NR no festival Super Bock em Stock. No espaço de dois dias, iriam fazer a dobradinha em Lisboa: primeiro no Coliseu dos Recreios, e no dia seguinte no aquário da ZDB. Motivos de saúde na banda obrigaram ao cancelamento de ambos os espectáculos. E provavelmente a causa não terá sido nenhuma variante da covid, mas sim a saúde mental do então vocalista Isaac Wood: meses depois era anunciada a sua saída definitiva da banda e a reconfiguração da formação de músicos. Foi um momento impactante na sua carreira, nas vésperas do lançamento do seu mítico álbum — clássico instantâneo — Ants From Up There (ler crítica). O futuro estava por escrever.

Look at what we did together!“, exclama a baixista Tyler Hyde no emotivo refrão de “Up Song” no início do concerto da ZDB. Em poucos meses, os BC,NR reconstruíram o seu repertório — por respeito ao anterior vocalista e autor das letras, decidiram colocar de lado todas as canções que interpretavam — e prepararam um espectáculo que tem sabor a esse improviso, a essa urgência. Um conjunto de canções que exploram um lado até mais brincalhão da sua música. Ao mesmo tempo, há um sentimento de união e orgulho pela carreira que foram capazes de construir, e uma resiliência para continuarem a trilhar novos rumos mesmo que para isso precisem de experimentar fórmulas novas. Excelente pretexto para uma banda recheada de tanto talento.

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O papel de vocalista principal é alternado entre Lewis Evans (no extremo esquerdo do pequeno palco), Tyler Hyde (no centro da formação, organizada numa espécie de semi-círculo) e May Kershaw, a teclista e acordeonista no extremo direito. Há uma passagem de testemunho partilhada, um assumir colectivo de responsabilidades. Tyler com uma postura mais confiante; Lewis com uma energia divertida e uma voz não especialmente virtuosa (embora não menos encantadora); e May com uma timidez que contrasta com o seu assombroso e belo timbre. Cada um canalizando uma energia diferente para os seus temas.

O alinhamento seguiu o mapa do mais recente trabalho da banda; o que faz sentido, porque se trata de um retrato da própria digressão dos BC,NR ao longo do último ano. “Live at Bush Hall” é um álbum vivo e emotivo, e ter a oportunidade de o viver — com as canções praticamente pela mesma ordem — torna-se um sonho tornado realidade para os fãs desta nova iteração da banda. Há ainda tempo para escutarmos dois novos temas não constantes nesse trabalho, e nascidos entretanto: o divertido “24/7 365 British Summer Time“, com direito a apresentação dos nomes de cada um dos membros logo à terceira canção da noite; e a canção solene e intrigante “Nancy Tries to Take the Night“, liderada pela voz de Tyler, e cruzando intricadas linhas de cordas cuja mudança de tempo rítmico vai surpreendendo ao virar de cada esquina. Convenceu-nos.

Ao longo da noite houve também alguns percalços – um dos pedais da bateria partiu-se logo na primeira música; e a guitarra acústica de Tyler teimava em não se deixar afinar devido ao calor e eventualmente a humidade da pequena sala. À primeira tentativa, a banda acaba por recorrer a um arranjo alternativo, em que a guitarra é substituída pela flauta em “I Won’t Always Love You“; os fãs aplaudiam e apoiavam, e até celebravam os imprevistos — “play all the versions!”, ouviu-se no público. O baterista brincava: se o concerto de há dois anos não tivesse sido cancelado, teríamos percebido que eles tinham menos profissionalismo agora do que na altura. À segunda tentativa, em “Nancy Tries to Take the Night” a banda elogia a paciência do público e diz que, caso não corra bem ou se a guitarra não mantiver a afinação, para pensarmos: “just think of it as a unique gig“!

E teve mesmo sabor a isso. Houve espaço para diálogo entre público e banda. Tempo para a banda se sentar no chão e brindar com vinho verde (“in the UK green wine is not really a thing”, comentava Charlie Wayne). Um carinho muito particular por parte de quem assistia. O final de “Turbines/Pigs” causou mais do que meros arrepios, e eis o testemunho deste que escreve esta reportagem: até as pernas me ficaram ligeiramente dormentes da emoção, de tão cheio soou. E May Kershaw, talvez um dos membros mais discretos e humildes da banda na sua forma de estar em palco, foi uma grande surpresa: ficou à vista o seu talento bruto. Poderia estender este elogio aos restantes membros da banda; bem como à violinista Nina Lim (em substituição de Georgia Ellery, dos Jockstrap), que também ofereceu uma performance competente.

Do Bairro Alto os BC,NR seguem agora para o Meco, onde na primeira noite do SBSR terão oportunidade de se apresentar diante de uma plateia, esperamos, bem mais vasta. Vai ser uma oportunidade de podermos testemunhar — agora ao ar livre e com menos calor, embora com uma maior distância em relação aos músicos — a magia que esta etapa de reinvenção dos BC,NR tem para oferecer. Na sala da ZDB, o guitarra Luke Mark deixou uma promessa brincalhona de que a próxima passagem por Portugal deverá ser num inverno, com uma temperatura mais suportável. Amor do lado do público não lhes faltará. O concerto desta quinta-feira à noite em Lisboa deixou explícito que não são só os BC, NR que são “friends forever”; também fazemos parte, e os músicos em cima do palco bateram palmas connosco no fim. Vivemos a música juntos.

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