Descolonizar museus é um processo em diálogo com os que foram colonizados, sublinha investigadora Elisabete Pereira

Investigadores de vários países reunidos até hoje na Figueira da Foz defenderam que a descolonização dos museus exige um trabalho científico multidisciplinar em diálogo com as comunidades titulares dos acervos.
“Sobretudo na Europa, onde temos processos de restituição a acontecer, há esse processo de diálogo que visa contribuir para mais conhecimento”, disse hoje à agência Lusa a investigadora Elisabete Pereira, da Universidade de Évora.
Especializada na área da museologia, a historiadora é uma das responsáveis pelo projeto TRANSMAT – “Materialidades transnacionais (1850-1930): reconstituir coleções e conectar histórias”, no âmbito do qual participam, desde quarta-feira, investigadores e profissionais de museus, num encontro no Museu Municipal Santos Rocha, na Figueira da Foz, distrito de Coimbra.
“O que temos discutido é a complexidade deste processo”, declarou, enfatizando a necessidade de os Estados, designadamente os países europeus com um passado colonial, “conhecerem os legados coloniais”.
Elisabete Pereira salientou que “descolonizar os museus e as coleções coloniais é muito mais do que restituir” objetos, espólios ou mesmo partes de monumentos aos povos a que pertenceram.
“Nestes processos, encontra-se por vezes alguma resistência a discutir o tema”, admitiu, ao explicar que o encontro internacional conta com a participação de especialistas ligados a universidades, museus e outras instituições de diferentes continentes.
Portugal, Brasil, Angola, Canadá, Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, África do Sul, Equador, Uganda, Holanda, Espanha, Bélgica, Tanzânia, Croácia, Zâmbia, Itália, Indonésia e Quénia são os países representados, para divulgar experiências, estudos e iniciativas internacionais, bem como “debater o que há a fazer em Portugal” neste domínio.
“Um objeto pode ter uma grande história por contar e, muitas vezes, as coleções não estão associadas ao colonialismo”, alertou a investigadora das universidades de Évora e Nova de Lisboa.
No caso do Brasil, independente de Portugal desde 1822, “na sequência do processo de aldeamento” e da colonização interna das comunidades indígenas, “as pessoas eram desapossadas dos seus objetos” em contextos de violência da parte do Estado e dos ocupantes das suas terras.
Nas coleções coloniais, “há toda uma história para contar e uma narrativa que é invisível”, sublinhou a responsável do projeto TRANSMAT.
“Este tipo de informação não existe na maior parte das coleções. Há todo um trabalho muito complexo e demorado para fazermos estes cruzamentos de dados”, acrescentou, ao realçar a necessidade de envolver os investigadores e outros membros das comunidades de origem das peças expostas.
Na sua opinião, importa “repensar a linguagem que é utilizada”, a fim de “construir uma outra narrativa nos museus”.
Relativamente a Portugal, Elisabete Pereira insistiu na importância de documentar os acervos coloniais do Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, e do Museu Municipal Santos Rocha, na Figueira da Foz, abrangidos pelo TRANSMAT.
“Ao longo de quatro anos, conseguimos documentar as duas coleções. É necessário saber de onde elas vêm, pois na base da [eventual] restituição está este trabalho”, adiantou.
Também no Brasil, confirmou Marília Xavier Curry, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, os museus “estão a passar por um processo semelhante, bastante enfático”.
“É uma questão global. Estamos no caminho de uma mudança nesse trabalho de reorganização das coleções procedentes de terras indígenas do país”, referiu à Lusa.
Para Marília Xavier Curry, “o diálogo e essa aproximação [aos povos indígenas] trazem informações de extrema relevância” para os museus brasileiros.
“É um trabalho que fortalece a democracia e a gente precisa de democracia. É um processo de construção numa perspetiva social”, acentuou.