Dez anos de “AM”, dos Arctic Monkeys: o disco que tudo mudou
Conseguem acreditar que já decorreram dez anos desde 2013? Eu não consigo. Parece que foi ontem.
2013 foi o ano em que passei do básico para o secundário (sou muito novo ou muito velho dependendo de quem lê isto) e comecei a tornar-me gente. E para me tornar gente, foi necessária banda sonora adequada. …Like Clockwork, dos Queens of the Stone Age. Pure Heroine, Lorde. O disco de estreia dos The 1975 (fez 10 anos no passado dia 2), CHVRCHES, HAIM. Modern Vampires of the City dos Vampire Weekend (sim, era um puto do indie — é lidar). Random Access Memories dos Daft Punk. e a lista continua.
2013 foi um ano excelente (e muito importante!) para a música. Mas de todos os lançamentos desse ano, nenhum se encontra tanto associado a 2013 como o quinto disco dos Arctic Monkeys, AM, lançado hoje — 9 de setembro — há dez anos.
Em dez anos, cabem muitas coisas e mudanças. Mudaram os Arctic Monkeys (e a culpa é de AM — já lá vamos), mudamos nós. De adolescentes viramos jovens adultos, com mais responsabilidades. De jovens adultos viramos adultos sem o adjetivo de jovem atrelado. Com um emprego, quiçá com filhos (nesta economia?) e com casa (rir para não chorar!). Mas AM não mudou tanto assim. É bom e mau. Permite que o disco funcione como uma cápsula de tempo para outrora, mas ao funcionar como essa cápsula, as lacunas do disco tornam-se ainda mais aparentes com uma década em cima.
Em 2013, tinha 15 anos. E ter 15 anos é um bom pretexto para achar que AM é um excelente disco. Ter 25 é um pretexto para achar que AM não é assim tão bom, mas continua a ter malhas que aguentaram o teste do tempo. É o disco que mudou os Arctic Monkeys e que elevou o rock alternativo e uma série de estéticas (olá Tumblr-core e Alexa Chung) para o mainstream. No espaço de um ano, os Arctic Monkeys passaram de headliners do Super Bock Super Rock (quando este dado ainda significava alguma coisa de relevante) para serem cabeças de cartaz no NOS Alive, em 2014, e terem 55 mil pessoas para os verem. E se os Arctic Monkeys tinham as canções para equalizar o seu recém-encontrado estatuto? Certamente. Poucas de AM, mas as necessárias para tornarem os Arctic Monkeys numa banda capaz de mover massas.
A realidade é a seguinte: AM é um disco recheado de melodias pop embrulhado em tons de rock’n’roll e grooves e atmosferas provindas do R&B e do hip hop. Os Arctic Monkeys — Alex Turner, Jamie Cook, Matt Helders e Nick O’Malley — nunca esconderam isso. Em julho de 2013, dois meses antes de AM ser revelado ao mundo, Turner contava à NME que o seu novo disco soava a um “beat do Dr. Dre” misturado com Ike Turner e deserto. À Entertainment Weekly, já em 2014, o líder dos Monkeys revelava que a ideia por trás de AM era agarrar na “perspetiva composicional de um produtor de R&B e aplicá-la a uma banda de rock com quatro elementos”.
A influência do R&B e do hip hop é possível durante toda a duração de AM. Pense-se como “Why’d You Only Call Me When You’re High?” é, essencialmente, uma música de Drake tocada pelos Arctic Monkeys, ou como “Do I Wanna Know?”, composicionalmente, soa mais próxima de uma típica canção de hip hop do que uma canção rock. E a incorporação de influências de hip hop não era algo incomum aos Arctic Monkeys. Estiveram sempre presentes desde o dia 1 de banda. O “cantar” de Turner em Whatever You Say I Am, That’s What I’m Not (2006), por exemplo, é muito mais Mike Skinner (The Streets) que Julian Casablancas (The Strokes). O que mudou foi como estas influências surgem na música da banda. Se antes eram incorporadas em canções rock, agora eram trabalhadas em canções cuja estrutura se assemelhava mais a uma canção pop, conferindo um maior destaque aos refrões das faixas e às suas grooves. Ao ter isso em conta com o percurso que os Arctic Monkeys delinearam no pós-Humbug (2009), pode-se entender AM como uma espécie de “apogeu” (aspas necessárias) criativo dos Arctic Monkeys, no sentido que é o culminar de tudo o que tinham feito antes. Nunca foi um desvio. Foi, sim, o decorrer normal da evolução da banda de Sheffield.
Em AM, escuta-se aquilo que os Arctic Monkeys exploraram em Humbug — ainda hoje o melhor disco da banda — e Suck It And See (2011). De um lado, a sensibilidade pop do segundo; do outro, o psicadelismo stoner, expansivo e sujo escutado no primeiro. Como recheio, outros fatores de união entre os dois predecessores de AM. Josh Homme (Queens of the Stone Age) foi o principal produtor de Humbug e surge como convidado em algumas faixas de AM. Depois, os locais de gravação. AM foi gravado entre o Rancho De La Luna – onde Humbug foi praticamente todo gravado — e Los Angeles, onde Suck It And See foi gravado e produzido por James Ford (curiosamente, também ele envolvido com alguma da produção de Humbug), o “quinto” macaco.
Aquando do lançamento do disco, Tim Jonze, a escrever para o The Guardian, notou como AM era o fio condutor capaz de ligar os “riffs musculares de Humbug com a pop melancólica de Suck It And See”. E nos seus melhores momentos, AM, ecoa a edge de Humbug — os riffs e a pujança de “R U Mine?”, a ambiência psicadélica de “One For The Road”, a sensualidade misteriosa de “Knee Socks” (mas ignorem a letra desta) — e a sensibilidade pop de Suck It And See (escutar “Snap Out Of It”, a canção mais estruturalmente pop do disco). Mas o problema principal de AM é que sofre do mesmo mal que também afeta Suck It And See: tem filler. E pior: é filler aborrecido. “I Want It All” não tem nada de interessante, só de irritante (é o pior uso da voz de Matt Helders, uma das armas escondidas da banda, na sua discografia). Depois, “Mad Sounds”, esquecível nas suas melodias, mas também na sua poesia simplista e sem sumo. Não existem idiossincrasias ou mistérios românticos à la “Cornerstone” ou “505” ou jovialidades interessantes à la “Fluorecent Adolescent” ou “A Certain Romance” quando Turner canta “Mad sounds in your ears / They make you get up and dance, they make you get up / All night long they reappear / They make you get up and dance / Yeah, they make you get up”. Simplesmente desaparece da memória tão depressa quanto aparece. Não há pior crime que esse.
Mas apesar dos seus defeitos, AM tornou-se o disco com mais sucesso dos Arctic Monkeys, e parte disso deveu-se à banda ter conseguido algo que almejava desde Humbug: make it nos Estados Unidos da América. Culpa disso é de uma pequena faixa intitulada “Do I Wanna Know?”, primeira faixa do disco e o primeiro single oficial de avanço do longa-duração (“R U Mine?” saiu primeiro, mas na altura era apenas um single solto).
Com o seu riff de proporções monolíticas, digno de um anúncio da Jeep, e a batida simplista, contudo extremamente eficiente, os Arctic Monkeys criaram uma das suas melhores — e mais emblemáticas — faixas. É uma canção pop rock praticamente perfeita, recheada de momentos prontos para serem cantados, com um videoclipe enquadrado perfeitamente na tensão sensual da cantiga. É um hit, ponto. Os Monkeys sabiam-no. Nós só ficamos de confirmar quando “Do Wanna Know?” foi lançada. E em 2013 (e 2014) era impossível escapar a “Do I Wanna Know?”. Tocava em todo o lado. Na Antena 3. Na Cidade FM. Na Rádio Comercial. Nos intervalos do liceu. Pessoas que não ouviam Arctic Monkeys, de repente, adoravam os manos de Sheffield (ou pelo menos, amavam “Do I Wanna Know?”). Foi um fenómeno. Muita gente ficou irritada (olá, indie bros da flanela), muita gente ficou deslumbrada (olá, girlies do indie) e queria ser tão fixe como Turner e companhia (entre outras coisas).
Ajuda tudo isto que AM surgiu numa altura em que o Tumblr encontrava-se no pico da popularidade (e numa altura em que a escrita musical estava em transição do rockismo para o poptimismo, que claramente influenciou a recepção muito calorosa ao disco, fora alguns iluminados, como Diogo Lopes na Altamont, que clamavam pelo regresso dos Macacos do Ártico à “rockalhada” — nunca mais regressaram). Quem andou por lá (eu andei, mas não muito — vivi o Tumblr mais como espectador através da minha primeira namorada), lembrará certamente, quiçá com alguma saudade, a simbiose entre AM e as estéticas que se desenvolveram no Tumblr à boleia da música de artistas como Lana del Rey, The Weeknd, Mac DeMarco, The Neighbourhood, Purity Ring… A lista continua. Aesthetic, dizíamos. Soft, exclamava-se. Escrever o nome das canções de AM em cigarros? Acontecia! Ter no armário uma t-shirt de AM ou um poster dos Arctic Monkeys? Bastante provável (eu não tinha nenhum dos dois).
Em retrospectiva, foram tempos estranhos. Com AM como banda sonora, estávamos todos a tornarmo-nos gente. Falo por mim. Sei que AM e os Arctic Monkeys foram grande parte da banda sonora do meu secundário, mesmo quando amigos discutiam comigo que o disco era o pior dos Monkeys (errado; essa honra recai mesmo sobre Suck It And See). AM não é tão bom quanto os seus fãs mais acérrimos — quiçá presos a uma nostalgia por tempos mais simples — o pintam — nem tão mau quanto os seus haters mais apaixonados o acham ser. A resposta está algures no meio: é ok. É melhor que Suck It And See e The Car (2022), mas pior que os restantes.
Mas entendo porque é que tanta gente continua a regressar a AM de forma assídua ou a tê-lo como o seu disco favorito dos Arctic Monkeys. No estado atual das coisas, em que há dias onde o niilismo triunfa, é natural que nos agarremos ao passado com força. Afinal, a nostalgia é uma droga. Se os tempos atuais são uma merda, mais vale relembrar-nos de quando tínhamos 16 anos e o vinil do AM rodava no canto do quarto enquanto memórias eram criadas. Éramos “felizes” — exceto que eu não era.
Lembro-me que não adorei AM quando foi lançado em 2013 — já era um fã extremo de Humbug, desculpem — mas que o disco era uma espécie de escape e refúgio para mim. Fazia-me imaginar uma vida que não a minha. Uma vida que, na realidade, desejava. Romantizava (talvez seja por isso que AM continua a fazer sentido na era do TikTok). Uma, como a NME descrevia o disco em 2015, de “telefonemas desperdiçados, bebedeiras e confissões noturnas”. As canções de AM são histórias noturnas, recheadas de desejo e saudade. O principal apelo pop do disco reside aí. Nós queríamos viver no mundo de AM. Mas não sei se o mundo de AM é o melhor mundo para viver em 2023 (mas pode ser que lá as rendas sejam mais baratas).
Em AM, canta-se sobre amores e desamores. Turner passa maior parte do disco cheio de saudade de alguém, a tentar entender como lidar com a sua perda — mesmo que isso cause situações como a booty-call descrita de forma direta em “Why’d You Only Call Me When You’re High?” — e a escrever coisas que eram perfeitas para a Tumblr era (e, curiosamente, para a TikTok era). Em “No. 1 Party Anthem”, faixa bowiesca que antecipa aquilo que os Arctic Monkeys exploraram no excelente Tranquility Base Hotel & Casino (2018) e no ok The Car (2022), Turner declama uma série de versos dignos de adolescente apaixonado pela sua Jordana Bevan: “Drunken monologues, confused because / It’s not like I’m falling in love, I just want you / To do me no good / And you look like you could”. Em “Arabella”, canção rock divertida, porém sui-generis (e é um rip-off assumido de “War Pigs” dos Black Sabbath), poesia digna de um adolescente que acabou de descobrir Bukowski. “She’s made of outer space / And her lips are like the galaxy’s edge / And her kiss the colour of a constellation / Fallin’ into place”. E quanto menos falarmos da musicalização do poema de John Cooper Clarke na forma de “I Wanna Be Yours”, faixa que termina o disco e que certamente terá sido cantada por tanto adolescente ao ouvido do seu queride. Afinal, quantas relações nascidas em 2013 ou 2014 terão esta canção como a canção da relação? Demasiadas…
Mas há momentos de AM em que Turner relembra que é um dos melhores escritores de canções dos últimos 20 anos, mesmo quando está a tentar construir canções mais generalistas comparativamente com outros trabalhos dos Arctic Monkeys. As sucessivas questões de “Do I Wanna Know?” — “Have you got colour in your cheeks?”, “Are there some aces up your sleeve?”, “Have you no idea that you’re in deep?, “How many secrets can you keep?” — são icónicas, mesmo que algo pretensiosas. Em “R U Mine?”, idem. Quando Turner cruza o lado melancólico que banha AM com o seu lado cool, apresentado em versos como “And I go crazy ‘cause here isn’t where I wanna be / And satisfaction feels like a distant memory”, consegue atingir um equilíbrio que eleva o disco. Pelo meio, alguns momentos de eterna beleza, como é caso de “Fireside”, onde Turner cruza a sua capacidade para pintar universos recheados de ânsia e saudade com o embrulho pop de AM (“There’s all those places we used to go / And I suspect you already know / But that place on memory lane you like still looks the same / But something about it’s changed”). É uma pena que estes momentos não ocorram tantas vezes quanto podiam ao longo do disco, mas quando ocorrem, os Arctic Monkeys tiram todo o partido deles.
Dez anos depois, acredito que exista muita gente com histórias associadas a AM. Terá sido a banda sonora da primeira relação e de todos os eventos que isso envolve (incluindo o término — afinal AM é um disco sobre relações que terminam), o disco escutado nas viagens casa-escola, escola-casa, nos tempos livres como fundo para uma tarde de videojogos com amigos. Se calhar, AM foi o disco que te introduziu ao indie e te fez o melómano que és hoje. É um disco intemporal, no sentido que continua a mudar vidas e a causar impacto a quem nele encontra refúgio, mas, simultaneamente, é um disco que é um produto de uma época passada, que apesar de fresca nas memórias, parece já tão distante. Não é um disco fenomenal, mas é o disco que tudo mudou. Para o indie. Para os Arctic Monkeys. Para muita, muita gente.