Dia de aniversário: vou ali e já venho
Ontem fiz anos. Uma belíssima forma de encetar um texto que tudo reunirá para espoletar uma certa catástrofe do ponto de vista da autoestima. Qualquer floreado vocabular mais rechonchudo do ponto de vista semântico para sinalizar um facto – sem importância alguma – seria, a meu ver, uma massagem longa e profunda no próprio ego, um banho relaxante numa banheira de vaidade efervescente ou outra excentricidade que nunca tive oportunidade de experienciar. Portanto, limito-me a dizê-lo desta forma desinteressada, pardacenta mesmo. Pensei em adornar o momento com os balões em forma de número e, posteriormente, colocar uma fotografia nas redes sociais em jeito de celebração, mas a minha progenitora ordenou que fosse lavar a loiça do jantar e passou ao esquecimento.
Parto do princípio que o defeito habite em mim. É viável. Ou nos meus pais, se algum dia decidir culpabilizar a hereditariedade. Celebrar aniversários começou, a partir de uma idade (a precisão não é uma qualidade), a causar pirraça. Quando se é inocente, imberbe e se caminha pé ante pé para a infelicidade – o termo “feliz” impossibilitava a aliteração – festejar o “nosso dia” assumia um contorno eletrizante: lembro-me, na altura, de me considerar único, de impingir certas coisas que no resto do ano não aconteciam, de ser o foco da atenção, de dominar o comando da televisão como ninguém, de ficar desperto até às horas interditas. Aqui, entra a teoria do prazo de validade. Até aos – entremos no campo da suposição – 12 anos, a celebração felizarda é grátis. A partir daí, a renovação da certidão é realizada de ano a ano e com cumprimento de pagamento da taxa correspondente ao juro “sentir-se único”. A minha caducou e renová-la será uma missão espinhosa, provavelmente.
O problema adensa-se aqui: celebrar um aniversário é, simultaneamente, celebrar a proximidade progressista com a morte, o fim. Ou seja, desde o princípio, desde a concepção e futuro advento que tinha tudo para correr mal, que celebrar o que quer que fosse era um ato vão, inócuo de significado. Acresce a esta frustração o facto de os médicos constituírem a gama espetadora – um serviço público deplorável, diga-se de passagem – e a mãe evocar as dores e o mal-estar, quando se pensava que o parto era a metáfora perfeita da alegria. A Filosofia é uma área encantadora e o seu statuos quo é mutante, mas aflorar temáticas que inquietam de modo irrevogável parte da população mundial, realmente, não parte da sua competência. Se Jean-Paul Sartre e o seu existencialismo são matéria de estudo com afinco, por que razão não posso sê-lo?
Outro aspecto sobre o qual os aniversariantes se devem debruçar: as tias. Um problema estruturante, sem dúvida. “Estás tão crescido”, “como o tempo passa”, “ainda há pouco te pegava ao colo”, “vá, hoje podes abusar um bocadinho na bebida”, “então, como é ter mais um ano?”, “agora a responsabilidade é maior”, “juízo”, “enviei uma notinha, tu já sabes o que é”. A arte de revirar dos olhos é inerente, mas inferior ao autocontrolo que tenho porque o radar dispara com receio de levar um “calduço” dos responsáveis por este desenho borratado. Aliás, em tempos, tive uma certa esperança que me dissessem algo capaz de me alegrar – já que é “o meu dia” – mas a verborreia é uniforme.
Identificado o problema estruturante, volvemos a mim. Pagava para ver a minha cara quando me felicitam. Nunca sei como reagir a uma mensagem que na sua forma e conteúdo é praticamente inalterável. Ou quando me cantam os parabéns: aí, sim, é difícil conter o ruborizar do rosto pela vontade imensa de perpetrar uma fuga. As palmas e o engate da melodia penosa. O ambiente à luz de umas velas que, só de me contemplarem, assumem o desejo de se apagarem, evitando assim a trinca e a cara de enjoo aquando da mesma. Se o objetivo é fazer sentir-me bem, comecemos por uma transformação ao nível do estilo musical. Passo a passo. Não vamos queimar etapas…
“Quero agradecer a cada mensagem recebida pela felicitação de aniversário e por contribuírem para que fosse o dia mais especial.” Vi isto, gostei, transpus para este desabafo. Aqui surge outra dúvida: se uma pessoa colocar o que se encontra supracitado no Facebook dois anos consecutivos, de que forma descobre qual foi o dia mais especial? O meu palpite recai sobre o número de mensagens. E o vosso?