Diagnóstico e terapêutica de uma quase-carreira
O que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de media independente, progressista e dissidente e foi originalmente publicado em www.fumaca.pt.
[Este episódio foi produzido para ser ouvido, não apenas lido. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio.]
Parte I
Quando Joana Madureira estava a terminar o 12.º ano, numa escola secundária em Tondela, no distrito de Viseu, a sugestão do serviço de psicologia e orientação que ajudava os alunos a escolher o curso superior enviava-a para Jornalismo. “Era aquilo que se enquadrava comigo”, disse-me, há menos de um mês, em dezembro de 2018, quando nos recebeu em sua casa, em Coimbra.
Estávamos em 1997: António Guterres era primeiro-ministro; Jorge Sampaio presidente da República; Bill Clinton começava o segundo mandato como líder dos Estados Unidos da América; foi também o ano em que a princesa Diana morreu, o filme Titanic estreou e avançava a todo o vapor a construção da Expo 98. Sim, já se passaram mais de 20 anos.
Não foi Jornalismo que Joana seguiu – basta estar umas horas com ela para se perceber que não é do tipo de fazer o que lhe mandam, só porque mandam. Foi para Coimbra e escolheu Radiologia (a área da medicina responsável por fazer TACs, radiografias ou ressonâncias magnéticas) com o objetivo de ajudar no diagnóstico e tratamento de pessoas. “Fotografia de interiores”, descreveu-me uma vez um radiologista. Na altura, profissões como a radiologia e outras que lidavam com tecnologia hospitalar, como a fisioterapia ou as análises clínicas, ganhavam especial importância com os avanços tecnológicos.
Joana Madureira:
Eram profissões que estavam em ascensão, que o desenvolvimento tecnológico estava a ser gigante e, na verdade, era isso que nos era passado, também, quando víamos alguma coisa sobre estas profissões.
“Estas profissões” são as dos chamados Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica (ou TSDT), responsáveis por quase todos os exames complementares de diagnóstico, e que auxiliam também no tratamento de doentes. Uma classe, 18 profissões.
Joana Madureira:
Radiologia, fisioterapia, radioterapia, análises clínicas, dietética, ortótica, farmácia, análises clínicas, cardiopneumologia…
E ainda outras nove.
O curso de Radiologia em que Joana se inscreveu era administrado em Institutos Politécnicos, e ainda hoje é. Segundo o espírito da Lei de Bases da Educação, aprovada em 1986, era suposto o ensino politécnico ser mais prático e o ensino universitário mais teórico. Até 1997, quem se formava nos politécnicos apenas conseguia o bacharelato, e não a licenciatura.
Neste tempo, conta Joana, alunos fechavam escolas em protesto, exigindo poder ser reconhecidos como licenciados – ela estava lá.
O então ministro da Educação, Marçal Grilo, começou um processo de – nas suas palavras – “credibilização e dignificação do ensino superior politécnico” e, finalmente, a alteração à Lei de Bases da Educação permitiu que Institutos Politécnicos passassem a poder conferir o grau de licenciatura.
A vitória, para os TSDTs, só aconteceu dois anos depois, em 1999, no segundo governo Guterres. Maria de Belém era ministra da Saúde e Alfredo Jorge Silva secretário de Estado do Ensino Superior, quando assinaram a Portaria n.º 505-D de 1999, que criava um conjunto de cursos de licenciatura para as áreas da Tecnologia da Saúde. Assim, Joana entrou para fazer um bacharelato de três anos e acabou por estudar mais um, saindo licenciada. Mas com o tempo, apercebeu-se de que ter esse diploma, que parecia importante na teoria, não tinha efeitos, na prática. Nada parecia ter mudado.
Joana Madureira:
Comecei a perceber, à medida que os anos foram passando que, de facto, tínhamos um reconhecimento teórico e científico das escolas mas, depois, não o tínhamos, na prática, no dia-a-dia, no trabalho, nem na remuneração que tínhamos.
Ainda em 1999, aprovaram-se os Decretos-Lei n.º 320 e n.º 564. Vinham “regulamentar as profissões técnicas de diagnóstico e terapêutica” e estabelecer “o estatuto legal da carreira” desta classe.
Joana Madureira:
O Estado criou uma carreira em 99 em que admitia que já era obsoleta, que já estava desadequada às competências destes profissionais. Ou seja, no ano em que deu a licenciatura, deu também… regulou uma carreira que admitia que já era obsoleta. O decreto-lei de 99 refere mesmo esta palavra: que esta carreira era “obsoleta” para as competências destes profissionais e que devia ser revista no maior… menos… menor curto espaço de tempo, o que não aconteceu.
Não é exatamente “obsoleta” a palavra usada no Decreto-Lei, mas o que Joana diz é verdade. No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 564, de 1999, o tal que estabelece a carreira dos TSDTs, lê-se: “A alteração pontual da carreira que ora se leva a efeito tem subjacente o reconhecimento da necessidade de uma reestruturação mais aprofundada que compatibilize o respectivo exercício com o processo de reforma do ensino em curso, entretanto reflectido no novo grau académico (…) e que proceda à reavaliação das designações, quer da carreira quer das profissões que a integram, de modo a torná-las mais consentâneas com o seu grau de desenvolvimento (…) Do mesmo modo será essencial ter em conta, nessa reestruturação, uma definição de conteúdos funcionais, (…) manifestamente desactualizados”. Ou seja, a carreira que ali se aprovava, estava desajustada em relação às recentes mudanças levadas a cabo na formação superior e que atribuía diplomas de licenciatura a estes profissionais.
Joana Madureira:
O Estado deu a licenciatura a estes profissionais e regulou-a. Mas, depois, no exercício da profissão, não o fez.
Os anos foram-se passando e a carreira, desajustada e desatualizada, continuou igual. Mas a verdade é que, por esta altura, a classe de TSDTs pouco fazia em relação a isto, diz-nos Joana. No início da sua carreira, pelos anos 2000, a falta de profissionais licenciados nestas áreas, com pouco ou nenhum desemprego, fazia com que os profissionais não tivessem mãos a medir. Faziam horas extraordinárias, noites e fins de semana e conseguiam chegar ao fim do mês com um bom salário. Mas a situação mudou.
Joana Madureira:
E eu passei de, inicialmente, em início de trabalho, a ganhar 1300€ para agora ganhar 800€, limpos.
Vinte anos depois, Joana ganha menos do que ganhava quando iniciou a carreira. A “carreira desatualizada” de 1999, continua por ajustar. E, apesar de trabalhar na função pública, há 18 anos, nunca foi promovida.
Joana Madureira:
Até hoje, fiquei sempre na base. Ganho o mesmo agora que alguém que inicie agora funções.
Ricardo Esteves Ribeiro:
E que é quanto?
Joana Madureira:
1020€.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Portanto, alguém que, hoje, entre a seguir à licenciatura num hospital para fazer o serviço que tu estás a fazer, ou que estavas a fazer na altura em que iniciaste, ganha o mesmo que tu ganhavas na altura.
Joana Madureira:
Sim, 1020, sim. E que continuo a ganhar, que continuo a ganhar…
Numa altura em que o setor da Saúde fervilha, com médicos e enfermeiros a reivindicar melhores condições de trabalho e financiamento do Serviço Nacional de Saúde, a luta dos Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica tem passado despercebida. Há mais de duas décadas que exigem a revisão da sua carreira pelo Estado e que os seus salários sejam equiparados aos de outras classes da função pública. Na peça “Diagnóstico e terapêutica de uma quase-carreira”, explicamos o pára-arranca negocial dos últimos anos com sucessivos governos e ministérios da Saúde.
Seja toda a gente bem vinda ao Dois Pontos, a atualidade explicada. Eu sou o Ricardo Esteves Ribeiro.
Parte II
Ana Catarina Oliveira:
Chamo-me Ana Catarina Oliveira, sou Técnica de Radioterapia, desde 2000.
Ana Catarina é da mesma geração que Joana. Entrou no curso em 1997, em Lisboa, e completou os 4 anos que lhe deram a licenciatura. Foi para Coimbra, em 2000, trabalhar no IPO – o Instituto Português de Oncologia, que trata pessoas com cancro. Ainda hoje trabalha lá, no departamento de Radioterapia.
Ana Catarina Oliveira:
Portanto, eu tenho 19 anos de serviço, sempre em Coimbra. Comecei com contrato e entrei no quadro, celebrei um contrato de funções públicas, em 2002. Portanto, só tive dois anos em contrato, em 2002 entrei para a função pública, para os quadros da função pública.
Ricardo Esteves Ribeiro:
E quando é que progrediste na carreira?
Ana Catarina Oliveira:
Nunca, nunca.
Nos anos 2000, a carreira em vigor dos Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica – mais uma vez os TSDTs – previa subidas automáticas de escalão (e portanto, de remuneração), a cada três anos, se a sua avaliação profissional fosse satisfatória. Assim, como Ana Catarina entrou para o quadro do IPO em outubro de 2002 subiria um novo escalão, ganhando mais 44,74€, em setembro de 2005. Não fosse isto ter acontecido…
João Figueiredo:
Senhor presidente, senhoras e senhores deputados. A proposta de lei n.º 25, que o governo apresenta à Assembleia da República, tem como objetivo que o tempo de serviço prestado por todos os trabalhadores e demais servidores do Estado, até 31 de dezembro de 2006, não conte para efeitos de progressão, em todas as carreiras e categorias, incluindo as integradas em corpos especiais. Como se sabe, estas progressões têm um caráter praticamente automático no processo de evolução salarial. Como se sabe também, tais mecanismos induzem um crescimento da massa salarial e, portanto, das despesas de pessoal das administrações públicas, em valores muito superiores aos que, inclusivamente, são objeto de negociação com as associações sindicais, constituindo, no final de cada execução orçamental, uma verdadeira surpresa no plano do controlo das finanças públicas.
As eleições legislativas de fevereiro de 2005 tinham dado maioria absoluta ao Partido Socialista e José Sócrates chegava a Primeiro-Ministro. Campos e Cunha era Ministro das Finanças. Menos de quatro meses depois das eleições, o programa de governo tinha alterações profundas. O Programa de Estabilidade e Crescimento de 2005 veio trazer uma série de medidas novas como: a criação de um novo escalão de IRS para rendimentos anuais superiores a 60 mil euros; um plano de privatizações; a subida do IVA, de 19% para 21%; e, como apresenta à Assembleia da República João Figueiredo – na altura Secretário de Estado da Administração Pública – o congelamento das progressões nas carreiras da função pública.
João Figueiredo:
Com a medida que o governo agora apresenta, pretende-se tocar num dos aspetos mais criticáveis do atual sistema remuneratório da função pública, ao mesmo tempo que se anuncia rever até ao fim do próximo ano, o sistema de carreiras e remunerações.
Durante a discussão desta proposta, dezenas de pessoas que se sentavam nas galerias do plenário, mostraram cartazes com a frase “NÃO APROVEM O ROUBO”, até terem sido expulsas pelo presidente da Assembleia da República, Jaime Gama.
Jaime Gama:
Os nossos trabalhos estão interrompidos e reabrem às 15 horas. Está encerrada a reunião. [ouvem-se gritos] Pedia para mandarem evacuar as galerias. [gritos]
A proposta, aprovada apenas com os votos a favor do PS, abstenção do PSD e CDS e votos contra do PCP, Bloco de Esquerda e Os Verdes, era provisória, até dezembro de 2006, para que o sistema de carreiras e remunerações fosse revisto, no ano seguinte. Mas, adivinhem…
Jaime Gama:
O governo determina a prorrogação da vigência das medidas aprovadas pela Lei 43-2005 de 29 de agosto até 31 de dezembro de 2007. Votos a favor? Abstenções? Aprovado. Votos favoráveis do PS, votos contra, restantes bancadas.
Estávamos em dezembro de 2006: o congelamento era prolongado até final de 2007 e o sistema de carreiras e remunerações não tinha ainda sido revisto, como prometido. Isso aconteceu no início de 2008, com a entrada em vigor da Lei n.º 12-A. Por esta altura, foi também aprovado o novo sistema da avaliação da função pública, o SIADAP, de que vamos falar mais à frente.
A Lei dividia as carreiras em dois tipos: carreiras gerais, para pessoas cujos postos de trabalho podiam servir várias áreas do Estado, como alguém que faça limpeza, por exemplo; e carreiras especiais, cujos postos de trabalho servem apenas um ou alguns serviços, como por exemplo as Polícias, militares, professores, enfermagem ou, claro, os TSDTs, que passaram a ter de ser licenciados para poderem trabalhar no Estado. Ser bacharel já não chegava.
Todas as carreiras tinham de ser revistas em 180 dias, para se adaptarem à nova legislação. Mais uma vez, não aconteceu.
Até ao final de 2009, embora com o novo sistema já aprovado e com as carreiras, em teoria, descongeladas, era virtualmente impossível progredir na carreira. Ainda em 2009, em ano de eleições, o governo de José Sócrates aprovou o maior aumento da função pública da década, incluindo para os Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica.
José Sócrates:
Finalmente, senhores deputados, o orçamento contém a verba necessária para que o aumento do salário dos funcionários públicos se faça acima da inflação prevista. É uma medida mais do que justa para os trabalhadores da Administração Pública, agora que o Estado a pode tomar sem pôr em causa as contas públicas do Estado.
As legislativas de setembro de 2009 deram a vitória ao PS, ainda que sem maioria absoluta e, em 2010, vieram mais congelamentos, ao contrário do que prometia o programa eleitoral socialista e reafirmava o programa de Governo.
Jornalista:
São os primeiros a sentir o peso do défice. Os funcionários públicos vão perder poder de compra este ano. O governo decidiu congelar os salários.
Fernando Teixeira dos Santos:
Irei propor aos representantes sindicais da Função Pública, a não atualização de salários em 2010.
E em 2011.
José Sócrates:
E se me permitem, começo pela mais difícil: e essa medida é uma redução de 5% da despesa total com salários em todo o setor público.
E em 2012, já com o governo de PSD/CDS, liderado por Passos Coelho.
Jornalista:
O governo quer congelar os salários em 2012. A proposta já foi apresentada aos sindicatos da função pública. O governo quer ainda manter a proibição de valorizar as remunerações por via de promoções e de progressões.
E em 2013.
Jornalista:
Já que os congelamentos salariais em vigor são para continuar na função pública também em 2013.
E em 2014.
Jornalista:
Cortes nos salários, cortes nos subsídios, cortes nas pensões. Desde logo, nos ordenados da função pública.
O congelamento geral das carreiras na função pública foi prolongado até 2018. Na prática, em alguns casos, como o dos TSDTs, até hoje. Ana Catarina Oliveira, que ouvimos há pouco.
Ana Catarina Oliveira:
Portanto, eu nunca subi. Eu estou, desde 2000, exatamente no mesmo índice remuneratório, que teve as subidas normais da inflação. Portanto eu, neste momento, com 19 anos de serviço, estou com 1020 ilíquidos, ou seja, líquidos, eu levo 830€/820€, sim.
Ana Catarina e Joana Madureira ficaram impossibilitadas de subir de escalão e com uma carreira por regular, desde 1999. Pelo caminho, a profissão ficou mais exigente e passou a obrigar a uma licenciatura. Mas a maioria dos TDST ficou a ganhar o mesmo, independentemente da formação ou dos anos de serviço. Até hoje, passados 19 anos.
Ana Catarina Oliveira:
É que eu não assumo que nós tenhamos estagnado. Eu assumo que a nossa carreira foi desvalorizada. Foi desvalorizada por quem nos governa. Porque nós merecíamos muito mais. Quer dizer, então a nível académico é-nos exigido mais, a nível académico nós correspondemos ao mais alto nível, temos uma licenciatura com 240 unidades de crédito, tal e qual uma licenciatura de engenharia física, tal e qual uma licenciatura de nutrição, tal e qual uma licenciatura de psicologia, tal e qual. E todas estas têm um reconhecimento de carreira, de profissão, menos a nossa.
Nas últimas duas décadas, foram muitos os TSDTs que emigraram, denunciam os sindicatos, ainda que sem terem números oficiais. Ana Catarina, decidiu ficar.
Ana Catarina Oliveira:
Se calhar, se na altura em que eu comecei a trabalhar alguém que me tivesse elucidado, que me tivesse alertado de como é que tudo isto poderia vir a acontecer, eu se calhar teria emigrado, sim, sem dúvida alguma.
Parte III
No último ano do governo de Passos Coelho intensificou-se a luta dos TSDTs. Em fevereiro de 2015, uma greve de dois dias levou centenas de profissionais para a rua.
No mês seguinte, em março, depois de mais um pré-aviso de greve – desta vez por tempo indeterminado -, o Ministério da Saúde aceitou reunir-se com os sindicatos. Depois de várias reuniões, num processo negocial longo, o governo publicou, a menos de um mês das eleições de 2015, uma proposta de revisão da carreira dos TSDTs para ser discutida publicamente e, mais tarde, aprovada em Conselho de Ministros. O Sindicato Nacional dos Técnicos Superiores de Saúde das Áreas de Diagnóstico e Terapêutica – ou STSS -, que liderou as negociações, escrevia em comunicado, por essa altura – e estou a citar – : “Um bom acordo? Um mau acordo? No nosso ponto de vista, o acordo possível (…) sem a conclusão desta fase negocial, com o que possa resultar do próximo processo eleitoral, corríamos o risco de voltar à “estaca zero”, num processo que se arrasta há 15 anos”.
E foi isso mesmo que aconteceu, voltou-se à estaca zero.
Eduardo Ferro Rodrigues:
A moção de rejeição apresentada pelo PS foi aprovada com 123 votos a favor e 107 votos contra [aplausos].
Depois das eleições terem dado a vitória à coligação PSD/CDS, sem maioria absoluta, o segundo governo de Passos Coelho não aguentou nem um mês. O programa de Governo foi chumbado no Parlamento e nascia a chamada “geringonça”, que tornaria António Costa o novo primeiro-ministro.
Para Joana Madureira, apesar da queda do governo PSD/CDS significar o falhanço das negociações que duravam há meses, o novo governo dava-lhe esperança.
Joana Madureira:
Eu tinha uma nova expetativa quando saiu o Passos Coelho e houve esta coligação. Eu votei nesta coligação e no António Costa e, portanto, eu depositei todas as minhas expectativas nesta coligação. Foi um dos dias muito felizes para mim, quando eles decidiram coligar-se e governar.
As expetativas saíram furadas, pelo menos durante o ano de 2016. As reuniões entre sindicatos e governo resultavam em sucessivos falhanços negociais. Em outubro, os TSDTs ameaçaram greve, o Secretário de Estado da Saúde, Manuel Delgado, respondeu com uma reunião. Nada foi acordado. Em novembro, houve mesmo greve por tempo indeterminado. Ao quinto dia, o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, falou.
Adalberto Campos Fernandes:
Sabe-se perfeitamente quais são as expectativas e [que] as preocupações que esses profissionais têm são legítimas, merecem todo o acolhimento.
Mas foi preciso esperar até 6 de julho de 2017, oito meses e duas greves depois desta declaração, para que se fizesse luz, como anunciou, a ministra da presidência, Maria Manuel Leitão Marques, em conferência de imprensa, depois do Conselho de Ministros desse dia.
Maria Manuel Leitão Marques:
Foi também aprovado o regime especial para Técnicos Superiores das Áreas de Diagnóstico e Terapêutica, bem como os respetivos requisitos de habilitação profissional…
O Decretos-Lei n.º 110 e 111 de 2017 entrariam em vigor em setembro de 2017. Fernando Zorro, hoje vice-presidente do sindicato, fazia já parte da direção, na altura. Entrevistei-o no passado dezembro, em Lisboa.
Fernando Zorro:
Repare uma coisa: a carreira que nós aprovámos com o governo do Dr. Passos Coelho é praticamente a mesma do que aquela que aprovámos agora. É exatamente a mesma. E este governo, quando faz a pergunta “porque é que caiu aquela proposta?”, porque este governo, na altura, não quis dar seguimento àquilo que foi acordado. Ganhou aqui quase mais um ano. E essa é a grande questão. Nós tivemos de voltar às lutas de rua para conseguir, com este governo, tentar negociar o mesmo, basicamente o mesmo, do que aquilo que tínhamos negociado com o governo do Passos Coelho. No fundo, isto é um bocadinho jogar, baralhar, e dar o mesmo.
Apesar do sindicato ter gritado vitória com a aprovação desta nova legislação, na prática…
Ricardo Esteves Ribeiro:
O que é que mudou, na prática, no teu trabalho?
Joana Madureira:
Nada. Nada, porque falta publicar as três matérias fundamentais, que são: as transições, a forma como transitamos para a nova carreira; a tabela salarial; e a avaliação de desempenho. Portanto, enquanto isso não estiver publicado, nada mudou, na prática, estamos igual, estamos de igual forma, nada mudou.
Os três pontos de que Joana fala – as tais “três matérias fundamentais” -, estão definidas no Decreto-Lei anunciado pela Ministra da Presidência (que ainda agora ouvimos) de uma maneira bastante clara:
Sobre a transição da carreira antiga, de 1999 (falámos dela atrás), para a carreira nova agora aprovada, lê-se que “faz-se nos termos a definir no diploma que venha a estabelecer o regime remuneratório aplicável à carreira aprovada nos termos do presente decreto-lei, permanecendo os atuais trabalhadores na categoria atualmente detida, e continuando sujeitos ao mesmo conteúdo funcional”.
Sobre os salários para esta carreira revista, que já reconhece os TSDTs como técnicos superiores e, portanto, licenciados, lê-se: “A determinação do número de posições remuneratórias e a identificação dos respetivos níveis remuneratórios faz-se por diploma próprio”.
Sobre a avaliação de desempenho, lê-se: “A avaliação de desempenho dos trabalhadores integrados na carreira especial de TSDT rege-se por sistema de avaliação adaptado do SIADAP, a aprovar por portaria no prazo de 90 dias após a entrada em vigor do presente decreto-lei”.
Ricardo Esteves Ribeiro:
E o que é que aconteceu?
Joana Madureira:
Nada, nunca as publicaram.
Notícia TVI:
Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica manifestaram-se em frente ao Ministério da Saúde, em Lisboa. Estes profissionais começaram hoje uma greve por tempo indeterminado.
Notícia TVI:
Os técnicos de diagnóstico e terapêutica estão em greve há 8 dias, e prometem acabar com o protesto só quando o governo ceder.
Notícia RTP:
Mais de 100 mil doentes já terão sido afetados pela greve dos Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica.
Notícia TVI:
A greve dos Técnicos de Diagnóstico está a provocar confusão no hospital Santa Maria…
Notícia RTP:
Os técnicos de diagnóstico e terapêutica estão de volta às ruas para uma manifestação junto aos hospitais de Lisboa, Coimbra e Porto.
A greve iniciada em novembro de 2017 durou 24 dias e terminou como prometido: com a cedência do governo. Manuel Delgado, Secretário de Estado da Saúde, assinava a 24 de novembro um protocolo negocial da carreira dos TSDTs com os sindicatos e também com o Ministério das Finanças. Nos 45 dias seguintes, discutiam-se as matérias que ficaram por resolver.
Mas… já sabem, nesta história há sempre um “mas”…
Notícia TVI:
É uma remodelação em modo relâmpago, e com o Primeiro Ministro ausente do país. A notícia da demissão do Secretário de Estado da Saúde, Manuel Delgado, surgiu perto das 4 da tarde desta terça-feira, através de uma nota do gabinete de António Costa, onde comunica que aceita o pedido de exoneração, e que propõe o nome de Rosa Zorrinho.
Manuel Delgado demitiu-se a 12 de dezembro por causa do seu envolvimento no chamado “caso Raríssimas”, depois de uma investigação da TVI ter denunciado a gestão danosa de dinheiro vindo de subsídios do Estado por parte da associação. Manuel Delgado, que tinha sido contratado pela Raríssimas entre 2013 e 2014, recebeu um total de 63 mil euros como consultor.
Ana Leal, jornalista TVI:
Quanto ao facto de ter sido pago com subsídios do Estado desviados dos apoios dados a crianças com doenças raras, Manuel Delgado não acha imoral?
Manuel Delgado:
Oh Ana, eu tenho um contrato assinado com uma entidade que me contratou para ser consultor e, portanto, não eu não vou dizer “não recebo”.
Para substituí-lo na secretaria de Estado, entrava Rosa Zorrinho que, claro, precisava de tempo para estudar a pasta dos TSDTs. Voltávamos à estaca zero.
Parte IV
As negociações recomeçaram no início de 2018 mas as várias reuniões entre os sindicatos e a nova Secretária de Estado não produziam resultados significativos. Pelo menos, é isso que se deduz ao ler os comunicados do STSS (o sindicato de que Fernando Zorro, que ouvimos há pouco, faz parte). Já para o Ministro das Finanças, Mário Centeno, a história é outra.
Mário Centeno:
Sabe que… Sabe que, senhor deputado, concluímos a negociação coletiva com os Técnicos de Diagnóstico e Tratamento que já estava em curso há mais de uma década?
Centeno queria dizer “terapêutica”, e não “tratamento”. Isto foi dito a Ricardo Baptista Leite, deputado do PSD, médico, e porta-voz nacional do partido para a saúde, numa audição do Ministro das Finanças sobre os pagamentos em atraso nos Hospitais, em abril de 2018, um dia antes do STSS classificar a proposta do governo como “inegociável e insultuosa”.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Até maio pediu-vos um tempo, a partir de maio, vocês aperceberam-se que isto não ia a lado nenhum…
Joana Madureira:
Ela fechou a negociação. Ela fechou.
Ricardo Esteves Ribeiro:
O que é que isso quer dizer, fechar a negociação?
Joana Madureira:
Ela fechar a negociação diz que é isto que eu tenho para vos dar, é esta tabela. “Querem, querem. Não querem, meus amigos, vai ser publicada em Diário da República e é com isto que vão ficar”. Entretanto, fizemos outra greve e ela reabriu as negociações. Aceitou negociar novamente. Claro que eu acho que é só para ganhar tempo, não é?! Estão a ganhar tempo connosco. Ao fecharem, depois abrem, depois voltam a fechar, depois voltam a abrir. Estão a ganhar tempo com todas as classes e estão a empurrar o problema para a frente e para mais próximo das eleições.
Nas negociações com o ministério da Saúde discutia-se aquilo que, ainda há pouco, Joana Madureira chamava de “as três matérias fundamentais”. Mas vamos explicar o que está realmente em causa:
Primeira “matéria fundamental” – o sistema de avaliações e o descongelamento de salários:
O sistema de avaliação dos profissionais da função pública chama-se SIADAP – o nome completo é “Sistema Integrado de gestão e Avaliação do Desempenho na Administração Pública”. Se ele foi desenhado para que não se percebesse como funciona, digo-vos, foi um trabalho muito bem feito. Passei horas e horas a tentar percebê-lo. Para já, isto é o que precisam de saber:
De uma maneira geral, funciona assim:
Existem categorias e escalões. As categorias representam mudanças hierárquicas. Por exemplo, no caso dos TSDTs, existem três categorias: técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica; técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica especialista; e técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica especialista principal. As subidas de categorias – muitas vezes chamadas “subidas verticais” – trazem mudanças nas funções e aumentos substanciais nas remunerações, mas só podem ser feitas através de concursos públicos, que são raros, nesta área.
As chamadas “subidas horizontais”, por outro lado, são as subidas de escalão. Ou seja, dentro da mesma categoria, tendo as mesmas funções, é possível aumentar o escalão, aumentando assim a remuneração. Mas para progredir na carreira, ganhando mais, é necessário, segundo o SIADAP, ter uma avaliação positiva. Quanto maior a pontuação, mais escalões se podem subir. A cada 10 anos, somam-se os pontos conseguidos nas avaliações anuais e, por cada 10 pontos, sobe-se um escalão.
O problema, para os TSDTs, é que apesar do SIADAP existir desde 2008, nunca se definiu como é que estes profissionais seriam enquadrados neste sistema de avaliação, o que devia ter sido feito há uma década. Ou seja, a estes profissionais nunca foi atribuída nenhuma pontuação. Estão num limbo. Até agosto de 2017, quando é revista a carreira, eram avaliados com “Satisfaz ou Não Satisfaz”, e progrediam de três em três anos, caso a avaliação fosse satisfatória. A partir de 2017, deveriam, pelo menos teoricamente, ser avaliados pelo SIADAP.
Mas – há sempre um mas – esta é uma das tais “matérias fundamentais” que nunca foi regulada até hoje.
Joana Madureira:
Nós começámos a contestar e a achar que o tempo tinha passado, e os descongelamentos estavam a começar a ser feito e começámos a questionar de que forma é que eles iriam ser feitos, de que forma é que nós iríamos ser descongelados por uma tabela e por uma carreira que, supostamente, já não existia desde agosto de 2017, ou se iríamos ser descongelados por uma tabela que já tínhamos mas que não estava totalmente regulada.
Portanto, quando o atual governo anunciou que iria descongelar as carreiras da função pública a partir de 2018, Joana e muitos outros TSDTs começaram, literalmente, a fazer contas à vida. Até que receberam um comunicado com a sua pontuação desde que começaram a trabalhar. À Joana, foi-lhe atribuído 1 ponto e meio em 2004; 1,5 em 2005; 1,5 em 2006; 1,5 em 2007; e, a partir de 2008, 1 ponto em cada ano, num total de 15 pontos desde 2004.
Joana Madureira:
Nós fomos descongelados à revelia. Houve colegas a terem 1 ponto e meio, outros têm 1 ponto, outros não têm pontuação nenhuma até hoje. Aliás, nós achamos que isso é uma das inconstitucionalidades da nossa… desta proposta e daquilo que nos estão fazer. É estarmos a ser descongelados por uma coisa que nunca foi regulada mas não foi, não porque nós não quiséssemos, mas porque o próprio Estado não o fez no tempo que tinha para o fazer, que foi desde 2008.
O caso de Ana Catarina Oliveira foi ainda mais caricato. Em julho, quando foi ao portal de avaliações, reparou que lhe foram atribuídos 21 pontos, desde 2004. Mas, em outubro de 2018, quando foi novamente ao site ver a avaliação, já só tinha 16 pontos. Cinco tinham desaparecido sem justificação.
Aquilo que diz a Lei do Orçamento do Estado para 2019, no seu artigo 17º, é que para as carreiras especiais, como é o caso dos TSDTs, as progressões e os descongelamentos devem ser – e estou a citar – “objeto de negociação sindical, com vista a definir o prazo e o modo para a sua concretização, tendo em conta a sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis”.
Aliás, Marcelo Rebelo de Sousa abriu um precedente em relação a este assunto, vetando, há menos de um mês, o Decreto-Lei sobre o descongelamento dos professores, exatamente por não ter havido acordo com os sindicatos. A carreira de professor, tal como a de Técnico Superior de Diagnóstico e Terapêutica, é considerada uma carreira especial da Função Pública.
Notícia SIC:
Para Marcelo Rebelo de Sousa, não chegam as duas rondas negociais que, por decisão do parlamento, voltaram a pôr, frente a frente, governo e professores mas que, no final, não impediram António Costa de avançar com o Decreto que contabiliza, para efeitos de progressão na carreira, apenas 2 anos, 9 meses e 18 dias.
Ainda assim, e mantendo-se a proposta do governo, o descongelamento dos salários será feito de forma faseada, o que quer dizer que apenas em setembro de 2019 os TSDTs passarão a receber novamente o salário a 100%. Mas que salário?
Essa é a segunda “matéria fundamental”: a tabela salarial.
Uma das grandes reivindicações dos TSDTs, desde 1999, é serem reconhecidos como licenciados.
Joana Madureira:
Ou seja, reconhecia-se, sim, que o nosso ensino já estava ao nível do ensino universitário mas, na prática, em termos práticos, profissionais, não reconheciam que as nossas competências tinham o mesmo valor hora – se o podemos dizer assim – do que os outros licenciados da função pública. Falta esse reconhecimento.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Portanto, o reconhecimento, quando tu falas em reconhecimento queres dizer que vocês ganhavam muito menos do que outros, por exemplo, e tinham uma progressão de carreira muito menos interessante e apelativa do que os outros? (JM) Sim, também. (RR) E quem eram os outros?
Joana Madureira:
Os outros? De tudo, desde enfermeiros, a médicos, a professores, a assistentes sociais, a psicólogos, a todos os outros profissionais da função pública. Todos, sem exceções. Todos eles tinham progressões de carreira muito mais atrativas e salários muito mais atrativos do que as nossas profissões tinham.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Portanto, vocês eram a licenciatura que tinha menor salário, de todos eles?
Joana Madureira:
Somos a que tem menor salário. Éramos, somos e, pelos vistos, querem que continuemos a ser.
A verdade é que, se compararmos com todos os restantes licenciados da área da saúde da função pública, os Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica são, ainda nesta altura, os únicos a ganhar, no escalão mais baixo, menos de 1201€ brutos, por mês. Por exemplo, para os Farmacêuticos o valor mais baixo é de 1613€; para os Enfermeiros é de 1201€.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Parece que existe uma luta de classes dentro do Serviço Nacional de Saúde.
Ana Catarina Oliveira:
Sabes porquê? Isso é tudo estratégico, isso é tudo estratégia política. “Dividir para reinar”. Ou seja…
Ricardo Esteves Ribeiro:
Achas que os governos têm tentado colocar as classes umas contra as outras.
Ana Catarina Oliveira:
Ah, sem dúvida alguma, sem dúvida alguma, Ricardo. A partir do momento em que governo reúne com a classe médica e cede, a partir do momento em que o governo reúne com a classe de enfermagem, não cede, agora, mas em 2009 entraram em acordo, com a Leonor Jorge [o nome correto da Ministra da Saúde da época é Ana Jorge], e cede. A partir do momento em que ele entra em acordo apenas com determinadas classes, em detrimento, e deixa outras de lado, é óbvio que é estratégico. “Dividir para reinar”, não tenhas qualquer dúvida disso.
Segundo o sindicato, a nova tabela salarial proposta pelo governo coloca os TSDTs também num mínimo de 1201€/brutos, mas com progressões. Ainda assim, muito menos apelativas que as da carreira de enfermagem, por exemplo. Para Fernando Zorro, para já, não é essa a grande divergência com o governo.
Fernando Zorro:
Nós não concordamos com a tabela salarial, não vou dizer que concordamos com a tabela salarial, mas uma tabela salarial é algo que nós podemos, a todo o momento, e volvidos dois anos, votar a negociá-la e aproveitar uma nova situação mais benéfica, inclusivamente, e tentar melhorá-la. Aquilo que nós não concordamos, e vou-lhe dar um exemplo muito concreto, é que um profissional que trabalha há 20 anos, e que vai receber, agora, 1200€, vá auferir o mesmo que um que entrou hoje, já a ganhar os 1200€. Isso eu não consigo… Nós não… Nenhum profissional consegue perceber. A nossa grande divergência é esta. É nas transições, é a primeira divergência.
Terceira “matéria fundamental”: as transições para a nova carreira.
Com o Decreto-Lei de 2017, os TSDTs passaram de ter uma tabela com cinco categorias para ter uma tabela com três categorias. Portanto, era necessário recolocar todos os mais de 8000 profissionais nesta nova ordenação. Segundo a proposta do governo, os profissionais que hoje se encontram na categoria 5, a de topo – os técnicos especialistas de 1.ª classe -, passariam para a categoria 2 da nova carreira, a categoria intermédia. As restantes quatro categorias, passariam todas para a categoria de base, a 1, com os vencimentos mais baixos.
Fernando Zorro:
Eu tenho 34 anos de profissão. Eu vou para uma base de carreira. Eu e outros como eu, que ainda têm mais tempo do que eu.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Como se tivessem acabado agora…
Fernando Zorro:
Como se tivesse acabado agora. Claro que… é exatamente a mesma coisa.
A acontecer isto, pelas contas do sindicato, 97% de todos os profissionais iriam para a categoria de base. Apenas 3% vão para a categoria intermédia. Ninguém iria para a categoria de topo. Zero. Mesmo tendo décadas de experiência, serviço e responsabilidades. Ana Catarina Oliveira:
Ana Catarina Oliveira:
Como é que o governo, aquilo que tem para me dizer é ‘tu, que tens 19 anos de serviço, que te especializaste, que fizeste a tua formação contínua, vais agora para 1201€, e um colega teu, que acaba de entrar ao serviço, vai para 1201 também’. Um colega que eu lhe terei de lhe dar formação.
E se a antiga carreira permitia progressões de três em três anos, a nova, que agora se negoceia, apenas permite progredir de 10 em 10 anos. Joana Madureira.
Joana Madureira:
Significa que só daqui a 10 anos é que voltaria progredir. Ou seja, o meu tempo de serviço é muito curto. Neste momento, eu atingi praticamente metade da minha vida profissional, portanto eu nunca vou conseguir atingir um patamar como atinge… A minha expetativa profissional é totalmente diferente da de um colega que inicia agora. Esse colega que inicia agora ainda tem 40 anos de trabalho pela frente que pode progredir. Eu já não tenho esse tempo pela frente e, portanto, eu entendo que eu não posso estar a ser colocada como profissionais que têm uma vida pela frente que eu não tenho e outros colegas já não têm.
Mas mesmo que existam concursos para as tais subidas verticais, que podiam fazer com que estes profissionais fossem promovidos, há uma pergunta que fica por responder.
Ana Catarina Oliveira:
Mas isto é tão surreal que a proposta do governo… Portanto, a nossa carreira tem 3 categorias. 97% dos profissionais vão para a base.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Não tem, neste momento três categorias, é o que é proposto.
Ana Catarina Oliveira:
Sim, é o que é proposto. Vão para a base. Os restantes, vão para esta categoria intermédia. E não vai ninguém para o topo, Ricardo, não vai ninguém para o topo! E agora eu pergunto, então, como é que estes profissionais que estão aqui nesta categoria intermédia vão subir? Quem é que os vai avaliar? Médicos? Não pode. Ilegal.
Fernando Zorro:
O grande objetivo é não haver concursos. É não haver progressões. O grande objetivo do governo é não haver progressões. É as pessoas nascem aqui, perdoem-me a expressão, e morrem aqui.
Portanto, como nenhuma das “três matérias fundamentais” parece perto de estar resolvida – avaliação profissional, tabela remuneratória e transição para a nova carreira definida pelo Estado – continuam as negociações.
Parte V
Em outubro de 2018, depois de mais de três meses sem reuniões, um novo encontro entre o sindicato de Fernando Zorro e o Ministério da Saúde tinha sido marcado para o dia 19 desse mês. Mas…
Notícia TVI:
É uma dança de cadeiras no governo a menos de um ano de terminar a legislatura. A TVI sabe que as mudanças foram precipitadas com a saída de Azeredo Lopes da pasta da Defesa. A remodelação estava pensada para acontecer depois do Orçamento do Estado. A grande surpresa é Adalberto Campos Fernandes, que tem estado debaixo de fogo por causa da degradação do Sistema Nacional de Saúde. Deixa o ministério para dar lugar a Marta Temido, subdiretora do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa e foi presidente do Conselho Diretivo da Administração Central do Sistema de Saúde.
Com a saída de Adalberto Campos Fernandes, saiu também a secretária de Estado, Rosa Zorrinho. Foi a própria ministra Marta Temido que passou a liderar as negociações, ao contrário do que acontecia antes, em que as discussões eram feitas pelos secretários de estado da saúde.
Fernando Zorro:
É ela que vai às reuniões, é ela que vai às reuniões. E é uma pessoa afável, obviamente, é uma pessoa cordial, mas que não trouxe nada de novo ao processo.
Na verdade, o assunto não é novo para a nova ministra. Em fevereiro de 2016, quando Manuel Delgado era secretário de Estado da Saúde e Adalberto Campos Fernandes liderava a pasta, Marta Temido sentava-se já à mesa das negociações com os sindicatos, na qualidade de presidente da Administração Central do Sistema de Saúde.
Segundo o STSS, a nova ministra apresentou exatamente a mesma proposta que o anterior ministro tinha colocado em cima da mesa. Por esse motivo, os TSDT’s voltaram à luta. Marcaram 12 dias intercalados de greve no mês de dezembro. No dia 10 houve reunião entre as estruturas sindicais e Marta Temido. Segundo um comunicado do Sindicato Nacional dos Técnicos Superiores de Saúde das Áreas de Diagnóstico e Terapêutica, Marta Temido terá anunciado – e cito – “a intenção unilaterial de encerrar a negociação”. Mas, ainda nessa semana, a 12, no Parlamento, perante os deputados da Comissão da Saúde, a governante contou outra versão:
Marta Temido:
O caminho que, reconhecemos, que é necessário continuar a prosseguir, e que está longe de estar concluído.
Fernando Zorro:
Aquilo que a senhora ministra quis dizer, ninguém percebeu, porque a senhora ministra voltou a reafirmar, hoje mesmo, numa ronda com outros sindicatos, que iria fechar as negociações. Hoje mesmo, dia 28. Nós seremos recebidos no dia 2. Mas hoje mesmo ela disse que iria encerrar as negociações. Com mais uns pózinhos em qualquer coisa.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Mas aos jornalistas não é isso que diz.
Fernando Zorro:
Pois, eu acho que essa pergunta é uma pergunta que a senhora ministra vai ter de responder. Nós próprios vamos fazer essa pergunta, o que é que ela quis dizer com isso. Porque não é, para nós, credível, que se diga uma coisa aos jornalistas e se faça outra coisa na prática.
O Fumaça fez esta e outras perguntas à Ministra para confirmar a versão do Sindicato, perceber como têm decorrido as negociações e que propostas está o Governo a fazer. Contudo, até à data de publicação deste Dois Pontos, a 17 de janeiro de 2019, nenhuma resposta chegou.
Novamente, Joana Madureira:
Joana Madureira:
Eu acho que é só para ganhar tempo, não é. Estão a ganhar tempo connosco. Ao fecharem, depois abrem, depois voltam a fechar, depois voltam a abrir. Estão a ganhar tempo com todas as classes e estão a empurrar o problema para a frente e para mais próximo das eleições.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Acha que isto vai estar resolvido até ao final da legislatura?
Fernando Zorro:
Olhe, eu lamento muito se não estiver resolvido com um desfecho favorável até ao final da legislatura. Temo que esteja resolvido até ao final da legislatura com, mais uma vez, estes profissionais a serem prejudicados. Mas, se isso acontecer, o meu sindicato, sobretudo, irá encetar outras formas de luta, que podem passar por lutas políticas e por lutas judiciais. Nós achamos que há aqui problemas… Nós não. Temos juristas a trabalhar connosco que acham que há aqui problemas de inconstitucionalidade, e nós iremos recorrer a tudo o que for, da nossa parte, possível, para que não mais estes profissionais sejam injustiçados.
Receção do Sindicato:
Aguarde só um momentinho, por favor, não desligue, só um momento. (RR) Ok.
Apesar das negociações estarem, segundo o sindicato, virtualmente fechadas, havia uma reunião agendada com o ministério para o dia 2 de janeiro deste novo ano. Fernando Zorro descreveu-a como “um convite para uma reflexão”, não uma negociação. Liguei para o STSS no dia 7.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Fernando?
Fernando Zorro:
Sim, bom dia.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Daqui fala o Ricardo Esteves Ribeiro, do Fumaça.
Fernando Zorro:
Olá, como está? Tudo bem, bem disposto?
Ricardo Esteves Ribeiro:
A Silvia deu-me o seu número. Será que tem dois minutos?
Fernando Zorro:
Tenho com certeza.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Então, queria perguntar-lhe. Houve nova reunião com a ministra, não foi?
Fernando Zorro:
Exatamente.
Ricardo Esteves Ribeiro:
O que é que aconteceu?
Fernando Zorro:
Nada de novo. Não aconteceu rigorosamente nada, tudo a ficar igual. A ministra vai publicar a carreira conforme está. Não há qualquer avanço nem abertura por parte do ministério.
Ricardo Esteves Ribeiro:
Ok. E o Fernando esteve na reunião?
Fernando Zorro:
Estive na reunião, sim. Estive na reunião.
Ricardo Esteves Ribeiro:
E o que é que a ministra responde às coisas em que ainda não existe acordo?
Fernando Zorro:
A ministra diz que há uma coisa que nós não podemos querer manteiga dos dois lados do pão. É ipsis verbis. Ao que eu respondi que é verdade, mas que o problema é quando não se tem manteiga de nenhum dos lados do pão.
Ricardo Esteves Ribeiro:
E o que é que a ministra diz que vai acontecer? Há algum prazo para que isto seja publicado em Conselho de Ministros?
Fernando Zorro:
Diz que será rapidamente, provavelmente até final do mês, vai ser aprovado em Conselho de Ministros, daquilo que ela nos disse.
A luta dos TSDTs não parece ter fim à vista. Se a publicação desta nova legislação resolveria problemas urgentes, seria apenas um penso rápido numa hemorragia que se alastra há duas décadas. Mas, a nove meses das eleições legislativas, já se sabe, pode sempre haver um novo “mas”.
Parte VI
Este episódio foi escrito por mim, Ricardo Esteves Ribeiro. O Pedro Miguel Santos fez a edição do texto. O Bernardo Afonso fez a edição de som, a música do genérico e a banda sonora original que acompanha toda a peça.
Fazem ainda parte da equipa Fumaça Ana Freitas, Frederico Raposo, Maria Almeida, Sofia Rocha, Tomás Pereira e Tomás Pinho.
Todas as entrevistas que fizemos para esta peça – com Joana Madureira, Ana Catarina Oliveira e Fernando Zorro -, estão disponíveis na sua totalidade num novo feed de podcastsque criámos. Vai à tua aplicação de podcasts e procura Extras, do Fumaça, para ouvires estas e outras entrevistas em bruto.
Muito obrigado à Joana Madureira, por nos ter contactado, falando sobre esta luta. Foi da mensagem que nos enviou e denúncia desta realidade que surgiu esta peça. Se tiverem sugestões de histórias que devamos contar, enviem-nos email para equipa@fumaca.pt.