Dias de café sem leite com as piadas de Slavoj Žižek
Esta é a célebre piada de Ninotchka, que pertence a Ernst Lubitsch (actor e realizador alemão, falecido na década de 1940, na América): “Empregado! Traga-me, por favor, um café sem natas!” Ao que responde o empregado: “Desculpe, não temos natas, só leite. Pode ser um café sem leite?” Fiquei a conhecer a chalaça através do mais recente livro do polémico filósofo esloveno, que há muito admiro e sigo, Slavoj Žižek — A Pandemia Que Abalou o Mundo (Relógio D’Água, 2020). A piada serve para ilustrar o estado em que muitos de nós vivemos durante a pandemia. Quando deixámos de poder escolher o isolamento (antes era uma opção, uma pessoa isolar-se se lhe apetecesse, não era uma obrigação), ficámos sem qualquer espécie de negação implícita. Por outras palavras, continuámos a ter o mesmo café, o que mudou é que deixou de ser café sem natas para passar a ser café sem leite. Ou seja, a negação implícita que é apresentada fez com que um café simples passasse a ser um café sem leite.
Slavoj Žižek partilha outras piadas neste livro como paralelismo para o estado actual. Por exemplo, aquela sobre um homem que julgava ser uma semente e que é levado para um hospital psiquiátrico. Os médicos tentam convencê-lo de que não é uma semente, mas um ser humano. Quando finalmente conseguem persuadi-lo, dão-lhe autorização para abandonar o hospital. Mas ele regressa imediatamente, a tremer de medo. Conta que viu uma galinha mesmo à saída do edifício e que ela o ia comer. “Caro amigo”, diz o médico, “o senhor sabe muito bem que não é uma semente, mas um homem.” “Sim, eu sei”, responde o paciente, “mas será que a galinha sabe?” Žižek criou uma piada em versão corona, a partir desta história da semente. Ao reparo de um dos seus amigos, que o questionava sobre o uso inútil da máscara (à data, dito como inútil pelas autoridades de saúde, mas, entretanto, mudado o parecer, afinal as máscaras protegem), Slavoj respondeu como o homem-semente: “Sim, eu sei que as máscaras não têm utilidade, mas será que o vírus sabe?”.
O humor acompanha as épocas mais negras da História, funciona como bóia de salvação, embora seja um frágil recurso perante o horror ou o desconhecimento. O tom ligeiro de Žižek para falar de coisas sérias não é novidade, trata-se de uma característica sua. E se as páginas deste livro nos fazem rir aqui e acolá, serve o riso para permitir que entrem pensamentos mais complexos. Há muito conhecida como mecanismo da tragédia, Shakespeare, por exemplo, era um mestre nesta arte — pôr o espectador a rir, descontraído, para que se sujeitasse desprevenido à estocada do texto.
A tragédia que auspicia Žižek nas páginas finais deste livro é o desfecho provável da pandemia num novo capitalismo, ainda mais bárbaro. “Que muitos velhos e fracos sejam sacrificados e abandonados à morte; que os trabalhadores tenham de aceitar padrões de vida muito inferiores; que o controlo digital das nossas vidas passe a ser permanente.” Cá está. Depois das piadas, vemos melhor o que não tem graça nenhuma nestes dias de café sem leite. Ninguém se ri.