Do poder
A inércia natalícia apoderou-se por completo do meu pensamento durante a interrupção para as festividades. Como tal, não escrevi uma crónica conclusiva sobre o ano que passou. 2022 foi marcado, entre outras coisas, pelo lançamento do meu disco “Águas paradas não movem moinhos” para sexteto de violas, assim como pelo início deste segmento no Comunidade Cultura e Arte. Os primeiros devaneios redigidos relacionaram-se exclusivamente com o trabalho artístico presente neste álbum de homenagem ao José Mário Branco e ao respectivo concerto de 6 Violas no CCB (Novembro 2022). Os restantes textos serviram sobretudo para partilhar convosco, atentos leitores, inúmeras músicas distintas na estética e na história.
Em 2023 vamos continuar nesta senda de escuta e descoberta musical. Espero que as minhas sugestões vos agucem a curiosidade.
Despertemos os nossos ouvidos para o disco “Of Power” (2021) do violinista americano Curtis Stewart.
Eu tive o privilégio de conviver e de tocar com o Curtis, durante a minha vida em Nova Iorque. Conheci-o num workshop com o excepcional violinista de jazz Billy Contreras. Na altura fiquei impressionado com a sua destreza técnica e linguística na improvisação. E depois houve uma empatia imediata que abriu a porta para futuros encontros musicais, desde gravações de discos a concertos. O Curtis foi um dos primeiros intérpretes da minha música, inclusivamente.
Também conheci os seus pais, ambos músicos. E sem ser através do filho. Toquei algumas vezes com a mãe, a violinista de jazz greco-americana Elektra Kurtis que infelizmente faleceu há dois anos. O pai é o importante e histórico tubista de jazz, Bob Stewart.
Desde do meu regresso a Portugal que tenho acompanhado a evolução musical deste companheiro à distância.
O Curtis demonstra nas suas opções musicais uma conjugação despretensiosa, natural, entre o seu conhecimento profundo do repertório clássico para violino com uma proficiência jazzística, alicerçada no bebop de Parker ou no modalismo de Coltrane. Neste disco tanto somos surpreendidos por um solo de Ysaye (que compôs inúmeras peças virtuosas para o violino), como por uma base rítmica proveniente do hip-hop, suportada por progressões harmónicas que nos remetem para o gospel.
Nestas duas improvisações (aqui e aqui), distinguimos com entusiasmo o diálogo constante entre a técnica violinística convencional (Paganini) e as nuances de fraseado típicas do jazz:
E logo a seguir, uma versão arrojada do standart “Scrapple from the Apple”:
Em 2010 Stewart fundou o PubliQuartet, um dos quartetos mais requisitados, actualmente, nos Estados Unidos, sobretudo no campo da música contemporânea e da nova criação. O PubliQuartet, à semelhança de Curtis, divulga peças e orientações musicais fundadas na mistura já aqui explicada. Vale a pena verificar também (aqui).
Mas regressemos ao disco “Of Power”. O título não é, de todo, casual. Este álbum é igualmente uma convocatória. É um apelo ao pensamento multirracial, à emancipação artística, à liberdade, à resistência contra as correntes sistémicas que dominam a sociedade ocidental colonialista e racista. Mas também é uma profunda observação sobre a dor, o sofrimento humano. Ouvimos, a meio do álbum, uma voz que diz “Vulnerability is change”. Aqui o “poder” transmitido pela fusão entre a música clássica, o jazz, o spoken word e o hip-hop, advém de uma vulnerabilidade que provoca a mudança, ou como o próprio Curtis questiona no final da segunda improvisação: “Hey…do you ever feel so strong in one realm of your life, like, when you walk out on stage, or when you’re in front of a full classroom of crazy kids (risos)… you get home and kick off your shoes, and check the mail and you rip up that letter or pick up the phone, and all of a sudden, it all changes.”
Tradução livre: “Hei…já alguma vez te sentiste tão forte num certo lugar da tua vida, como (por exemplo), quando sais do palco, ou quando estás numa sala de aulas cheia de miúdos tolos… chegas a casa e tiras os sapatos, e verificas o correio, e abres aquela carta ou atendes o telefone e, de repente, tudo muda.”
Termino esta crónica com a brilhante interpretação do Curtis da obra “Louisiana Blues Strut – A Cakewalk” (2002) do compositor afro-americano Coleridge Taylor-Perkinson: