Dos pugilistas falhados e dos filmes escondidos
Richard Brody, o crítico de cinema da revista The New Yorker, escreveu há dias um texto sobre “Belarmino”. Gosto deste clássico do cinema português, realizado por Fernando Lopes, mas confesso que só o comecei a valorizar como deve ser anos depois de o ter visto. A memória das imagens começou a apoderar-se do meu imaginário cinéfilo sem que eu tivesse pedido, como se o meu próprio inconsciente alertasse “olha, vai lá ver isto outra vez, pequenino”.
Sei que provavelmente a redescoberta será como uma nova primeira vez, tal como me aconteceu com outra obra do cineasta, “Uma Abelha na Chuva”. Este é um caso em que passei mesmo do oito ao oitenta: de vê-lo numa aula de literatura portuguesa no liceu em que o detestei completamente, até à revisitação, há coisa de poucos anos, que me transformou num admirador total.
Mas fugindo aos apartes: fiquei surpreendido com a escolha de Brody pelo simples motivo de que, apesar do cinema português possuir uma certa estima pelo mundo fora, continua mesmo assim a estar “arredado” do resto do mundo. E sem razão, acrescento. Ao longo das décadas já demos provas suficientes de termos um cinema cheio de pérolas, dentro do circuito autoral e, também, do comercial. É claro que esta é uma dicotomia parva, mas ainda está presente na cabeça de muitos. Mas para aqueles que acham que o cinema português é isto ou aquilo, que se resume ao plano da árvore do Oliveira (que, já agora, é em movimento e só está no filme “Non ou a Vã Glória de Mandar”) ou ao filme quase todo a preto do César Monteiro, é questão de irem pesquisar um pouco e serem surpreendidas com muita coisa boa que há para descobrir. Prometo que não volto aos apartes.
Por isso foi com alegria que li as palavras de Brody, muito entusiásticas, sobre a odisseia do boxeur português que tem, dentro de si, todas as mágoas de uma certa Lisboa cinzenta, triste, vencida em todas as frentes. Mas admito que houve umas palavrinhas no texto que me fizeram confusão: “one of the hidden masterworks of cinematic modernism”.
Ao ler isto estive quase para activar a minha personalidade saída de um cliché revisteiro que só sai cá para fora quando tenho de defender a pátria, e gritar: “Oh filho! Só é ‘hidden’ p’ra ti, que cá a gente já percebeu que o filme existe há mais de cinquenta anos!”
Mas bem vistas as coisas, é normal que Brody descreva assim o filme. É o mesmo tipo de reacção que teríamos ao descobrir um realizador da Micronésia que nunca ouvimos falar. Talvez ele lá seja um campeão de bilheteiras, mas infelizmente, não existe para o resto do mundo. Quando raramente um filme de países com uma produção cinematográfica não tão divulgada chega aos quatro cantos do planeta, certifiquem-se se não houve alguém de Hollywood que o decidiu distribuir. Não gosto de espalhar o meu cinismo para vós, leitores, mas qualquer pessoa consegue perceber isso: os grandes comem os pequenos, já dizia o Padre António Vieira no sermão aos peixes, mas se os grandes gostarem dos pequenos, estes ficam mais protegidos do que os seus pares.
Mas é estranho ver alguém a desconhecer um filme que é “nosso”, não é? Quer dizer, creio que “Belarmino” ocupa um lugar cimeiro na História do cinema português, e a sua importância é quase incontestável, não só a nível crítico e académico, como a nível popular. Irra, até foi um dos eleitos da recente votação da Filmspot para eleger os 10 melhores filmes portugueses de sempre, ficando em quinto lugar!
“Belarmino” é um dos filmes portugueses mais falados além-fronteiras. O documentário do pugilista é quase sempre um dos filmes que vem à baila, quando falo com estrangeiros que conhecem o nosso cinema. Mas infelizmente, como nenhum senhor com muito poder pegou nele, como não foi nomeado ao Oscar de melhor filme estrangeiro (perdão, internacional) nem teve qualquer honra em Cannes, ele só continuou a existir para os portugueses.
Pareço exagerado nesta minha embirração, autêntico problema de primeiro mundo, mas também nos afecta. Quantas vezes não vimos já o que o país fica disposto a fazer para ter cá alguma celebridade estrangeira ou um evento internacional de alto gabarito? Nós também sofremos da síndrome “cinema não-americano só funciona se vier com um carimbo oficial de alguém de Hollywood com umas massas”. E em consequência, só damos valor aos artistas nacionais quando vão lá para fora e têm sucesso.
Sentimo-nos de ego inchado por nos tornarmos realmente pequeninos em relação aos outros. Desde Saramago, que só ao ganhar o Nobel é que se tornou bom para muita gente, até ao caso recente da realizadora Ana Rocha de Sousa, persona non grata para pessoas preconceituosas dentro e fora da área do cinema (“O quê? Uma actriz de telenovelas pode ser cineasta?”), que depois de ter sido premiada, há dias, no Festival de Veneza, teve os seus detractores a desaparecerem misteriosamente – talvez hoje até digam que sempre a apoiaram…
Enfim, escavar fundo nestas estranhas portuguesices daria pano para mangas, poderia resultar numa colecção de livros com muitos volumes, mas voltemos aos filmes que ganham projecção internacional. Às vezes parece que nos querem fazer confundir as intenções dos filmes com a sua qualidade. Isto também não é bom, tal como os que já fazem filmes a pensar em internacionalizações e que, por cumprirem todos os “requisitos”, lá conseguem agradar a quem toma as decisões. Mas nisto há óbvios efeitos positivos: quando um realizador “estrangeiro” se consegue infiltrar por Hollywood adentro, é uma oportunidade para tornar a dieta cinematográfica dos americanos um pouco diferente.
Vejamos Bong Joon-ho e o caso de “Parasitas”. É elementar que ter um filme da Coreia do Sul a triunfar nos prémios da Academia não é um indicador de nada. As desigualdades no meio do cinema e a hegemonia norte-americana continuarão a reinar para todo o sempre. Mas até que foi bonito ver aquilo a acontecer, não? Por cinco minutos ainda acreditei que alguma coisa fosse mudar… só que não.
O caso do cinema sul-coreano é exemplar na forma como juntou géneros cuja gramática todos conhecemos bem (policial/thriller, terror, etc) e temas, abordagens e pormenores que são inerentes à sua cultura. Isto fez com que fossem produzidos alguns filmes que, apesar de lidarem, por vezes, com alguns aspectos muito específicos da vida dos coreanos do Sul, se tornaram universais, mas – quero eu acreditar – sem que isso estivesse programado. Claro que a acessibilidade do cinema de género fez com que chegassem rapidamente ao resto do mundo, mas caramba… apesar de tudo isso, Bong e seus amigos também produzem óptimos filmes!
Lembrei-me dele porque vi “Mother” pela primeira vez. Mesmo que não se goste do realizador, é impossível negar que ele tem talento para o cinema, e esta é outra prova disso. E é interessante vê-lo depois do oscarizado de 2020, porque encontramos já algumas das preocupações que marcaram “Parasitas”: o conflito de classes, o poder das elites contra a impossibilidade dos pobres, o amor da família… está tudo lá, embora que, aqui, com outros contornos – mas igualmente perversos.
É um filme que tem géneros mas, ao mesmo tempo, lida com personagens nada banais, nem sacrifica o cinema em prol da acessibilidade da sua linguagem: as duas coisas conseguem estar interligadas na direcção de fotografia, nos planos que têm tanto dentro de si, nos actores, no argumento onde cada pormenor conta para o desenlace, e na montagem. Bong sabe que cada mudança de plano tem de ter um propósito, que um corte deve ser mesmo como um corte à navalha, e não apenas uma coisa flat e convencional como vemos, por exemplo, em muita da produção britânica muito limpinha e aprumada da actualidade.
Foi um filme facilmente internacionalizável? Sim. Caiu no goto de Hollywood? Com certeza, e foi graças a esse e a outros filmes que Bong lá chegou. Mas mesmo com isso tudo, é do caraças. Mesmo que ninguém o tivesse descoberto fora da Coreia do Sul, na época da sua estreia, e algum Richard Brody, em 2020, viesse dizer que era uma “hidden masterwork”. Portanto, ao dito cujo, só tenho a dizer o seguinte: está desculpado, mas aproveite e vá à tal lista da Filmspot conhecer outras obras de mestre que só andaram escondidas para quem não as quis ver.
Porque no fim, felizmente, e apesar de todas as intrigas, mesquinhices e outras “ices” que envolvem a internacionalização de alguns cinemas com menos mediatismo, o que conta são só os filmes.