“Drive My Car”, de Ryusuke Hamaguchi: a angústia dos criadores
Este artigo pode conter conter spoilers.
“Drive my car de Ryusuke Hamaguchi”, o mais recente vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro e do prémio do Festival de Cannes 2021 para melhor argumento, está disponível na plataforma de streaming Filmin.
Sinopse rápida? Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) é um ator/encenador cujas complexas relações afectivas e artísticas servem de combustível para uma produção multilinguística da peça O Tio Vanya de Anton Tchékhov. Inglês, coreano, japonês, telugo, mandarim, indonésio, malaico, alemão e linguagem gestual coreana: parabéns à(s) equipa(s) de legendagem.
Há uma cena sobre a qual quero escrever. Na Filmin começa aos 55min15s. Num estúdio de dança estão a decorrer audições para a produção teatral dirigida pelo protagonista. Dois atores representam um excerto do segundo acto: um diálogo entre a velha ama Marina e o professor reformado Serebriakov. Kafuku observa a acção atrás de uma secretária. A seu lado está o diretor da companhia, Gong Yoon-soo (interpretado com honestidade por Jin Dae-yeon) e uma assistente. Este é o primeiro de três castings e não está a correr bem: após uma falha de comunicação entre os atores, Yoon-soo sorri e Kafuku, aparentemente, não reage.
A sua reação estava guardada para o casting de Koshi Takatsuki (fascinante Masaki Okada) e Janice Chang (Sonia Yuan). A proximidade do plano e o tempo dedicado à primeira troca de olhares entre as Takatsuki e Kafuku induz uma tensão imediata: eles já se conhecem, talvez mais do que gostariam neste momento.
Chang é falante nativa de mandarim, mas apresenta-se num inglês perfeito. Está a fazer audição para o papel de Yelena, a jovem esposa do professor. Takatsuki irá desempenhar o médico Astrov, mas não entende inglês ou mandarim: apenas japonês. Contracenar em duas línguas diferentes já é um desafio para qualquer par de atores: mas é no desconhecimento da língua à qual se responde que Kafuku quer reinterpretar o clássico russo.
Este filme é uma adaptação de um conto homónimo de Haruki Murakami, publicado no livro “Homens sem mulheres”, editado em Portugal pela Casa das Letras. As quarenta páginas do escritor japonês fizeram metade do caminho. Ryusuke Hamaguchi assumiu o volante e, durante três horas, conduz-nos por uma via alternativa: examinamos a angústia existencialista do seu protagonista, agora, através da intertextualidade com a peça de Tchékhov.
Os atores improvisam todas as marcações desta cena do terceiro acto. A atenção dos responsáveis pelo casting está completamente focada nos dois atores: a leveza foi substituída por apreensão. A imprevisibilidade das acções de Takatsuki e as reacções genuínas de Chang fazem o texto ganhar vida. Dançando entre o sexy e o violento, a proximidade física é interrompida por Vanya. Isto na peça: no filme é interrompida por Kafuku que, perante um beijo semi-forçado, levanta-se ruidosamente da cadeira. Inconscientemente, o ator/encenador assumiu o papel que antes tinha recusado: o da personagem titular da obra de Tchékhov.
A intertextualidade gerou ironia dramática. O argumento cria paralelos entre a peça russa e a vida do encenador japonês. Nunca é claro em que situações o texto poderá servir para despoletar uma catarse ou apenas avançar a narrativa: isto gera tensão cada vez que alguém o lê. As detalhadas reacções das personagens são a chave para cada um destes momentos. Afinal de contas, é o próprio Kafuku que afirma: “(…) o texto lê-nos e revela-nos a nós mesmos.”
O último casting é de Lee Yoon-A (uma forte Park Yu-rim). Muda, usa a língua gestual coreana para comunicar as palavras de Sonya: filha do professor e sobrinha de Vanya. O diretor da companhia compreende a língua gestual, servindo de intérprete para Kafuku. Durante esta cena do quarto acto, Sonya pede a Vanya que suporte a tristeza inerente à sua condição. A interpretação da atriz é intensa, os seus movimentos ora graciosos ora incisivos, nunca a fazem desviar os olhos do encenador. A perspectiva da câmara para coloca Kafuku, novamente, no lugar da personagem que se recusa a interpretar. O turbilhão de emoções e memórias despoletadas pelo texto no protagonista fica para a imaginação de cada um.
Douglas Laman escreve no seu artigo “How ‘Drive My Car’ Uses a Classic Play to Illuminate Its Characters’ Inner Lives” para o Collider: “As obras de Anton Tchékhov eram produções notoriamente ambíguas que abordavam assuntos pesados, sem nunca oferecer resoluções ou moralidades ao público das suas peças. A vida não oferece curas milagrosas para os males do mundo: por isso as obras de Tchékhov também não.” O dramaturgo russo deixou reflexões universais sobre a condição humana: as suas contradições, os seus desejos, os seus medos… O que Hamaguchi fez com este filme foi tornar cinematográfica a angústia de todos os criadores: eternamente a rever as suas lutas mais íntimas num novo objecto/projecto artístico, tentam encontrar a catarse que precisam através da partilha da verdade. Em troca, o texto influencia diretamente as vidas de todos os que lhe tocam.
Em 2014-2015 fiz parte do elenco de uma adaptação da mesma peça, produzida pelo SinCera – Grupo de Teatro da Universidade do Algarve. De seu nome “Sopa com Massa”, teve encenação do mordaz Pedro Monteiro (diretor artístico do Te.Atrito), que me confiou o papel do professor reformado Serebriakov do alto dos meus 21 anos. Todos os atores estavam em cena, cubos grandes (re)organizavam-se para formar o cenário e o subtexto era detalhado pela contracena contínua. Esta produção venceria dois prémios no FATAL (Festival Anual de Teatro Académico de Lisboa) mas, tal como em “Drive My Car”, o fatalismo de Anton Tchékhov metamorfoseou-se para a vida real: esta seria uma das últimas peças apresentadas pelo SinCera, um grupo com 25 anos de atividade.
Contrariando a ironia de Tchékhov, há notícias de um reerguer deste grupo, importantíssimo para o atual sector cultural e criativo algarvio. Ryusuke Hamaguchi também encontra uma espécie de catarse, não no final, mas em cada olhar trocado, cigarro acendido e abraço não dado. Há uma tensão que se acumula e silenciosamente se liberta em cada cena deste bonito filme. É um “espelho de um espelho da realidade”: e o reflexo final é um poema em que a arte e a vida, falando línguas diferentes, finalmente se entendem.