O fantástico enquanto incómoda extensão do quotidiano nos contos de Samanta Schweblin

por Miguel Fernandes Duarte,    9 Agosto, 2018
O fantástico enquanto incómoda extensão do quotidiano nos contos de Samanta Schweblin
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Olhamos muitas vezes para o fantástico enquanto mera possibilidade de escape face ao mundo real, quer seja pela possibilidade de libertação face às amarras que a realidade nos impõe, quer pelas infindáveis possibilidades de o usar como contraponto para com o mundo real. Existem diversas formas de colocar o irreal ao serviço de uma história, mas, só quando o fantástico é utilizado enquanto nova possibilidade de quotidiano, se expandem as possibilidades de incómodo, porque há neste quotidiano fantástico algo que pode ser francamente arrepiante.

Passáros na Boca, segundo livro de contos (e único editado em português até ao momento) da argentina Samanta Schweblin, forma-se precisamente deste cocktail de terror quotidiano, tal como o primeiro e único romance da autora, Distância de Segurança, publicado no final do ano passado também pela Elsinore.

Não é que os contos de Schweblin tratem apenas o quotidiano, mas, tal como nesse romance, é precisamente a proximidade ao real do seu fantástico que traz o desejado efeito de incómodo, já que, não obstante a fantasia, tudo o que neles é relatado é inteiramente crível. Não há esforço para explicar o que está a ocorrer, relata-se o que se vai sucedendo como fazendo parte de uma realidade óbvia, e, assim, o absurdo torna-se insólito e o grotesco natural. Tudo isto em episódios como o de pais que se rendem ao hábito da filha de comer pássaros vivos, ou um método experimental de inverter um parto até se regurgitar o óvulo, ou um homem deprimido que faz toda a gente à sua volta feliz. Ou até um empregado de mesa pequeno que não consegue servir à mesa porque não alcança o frigorífico, tarefa que é da sua esposa que jaz morta no chão, ou um homem que fica refém de uma família por não ter dinheiro trocado para comprar um bilhete de comboio de regresso a casa, ou mesmo uma ocasião em que um homem vê a mulher que matou transformar-se numa obra de arte.

A autora

Os relatos nem sempre são alegorias ou metáforas de coisa alguma e a tensão está presente desde início, não chega através de uma abrupta mudança na narração. Desconcertam precisamente por isso, e também pela linguagem de Schweblin que, despojada de recursos estilísticos de forma quase estéril, permite uma narração através de um ponto de vista de espectador que impõe à narrativa a tal verosimilhança com o nosso quotidiano, que os impede de serem meros momentos insólitos.

Os pontos de contacto da escrita de Schweblin com uma certa legião de escritores argentinos, onde se inserem nomes como Julio Cortázar, são perfeitamente perceptíveis, e não há dúvidas de que Schweblin lhes deve uma larga parte do seu universo literário, principalmente nesta união entre o absurdo e o quotidiano. Mas, principalmente na fortíssima tensão sempre omnipresente ao longo das suas narrativas, Schweblin mostra-se claramente dona de uma linguagem muito própria.

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