‘Eliete’ não é capaz de entregar o que inicialmente promete

por Miguel Fernandes Duarte,    27 Dezembro, 2018
‘Eliete’ não é capaz de entregar o que inicialmente promete
“Eliete”, de Dulce Maria Cardoso
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Para quase todos nós, a vida cingir-se-á quase sempre a um rol de banalidades mais ou menos esperadas, numa vida sem grande coisa que a distinga das restantes que se lhe assemelham. Mas será alguma vez possível contentarmo-nos, a longo prazo, com uma vida vulgar? Com um trabalho que nos dê satisfação mediana e no qual não vejamos grande valor para a sociedade? Com um casamento mediano com alguém que, como nós, possui uma série de defeitos? Com um dia-a-dia mediano, em recorrentes trajectos de casa para o trabalho, para fazer compras e cuidar dos filhos?

Depois do enorme sucesso literário de O Retorno, romance de 2011 sobre um jovem retornado que regressava de Luanda à metrópole, Dulce Maria Cardoso regressa agora (após um livro infanto-juvenil e outro de contos), com a sua nova ficção, Eliete – A Vida Normal, ainda pelas mãos da Tinta-da-China.

Eliete é precisamente sobre aquilo que o título e subtítulo indicam: uma mulher de 42 anos, de nome Eliete, que leva uma vida vagamente normal, sem grandes ambições. É agente imobiliária, casada e com duas filhas, e vive nos arredores de Cascais. Não interessa que as suas relações familiares se vão deteriorando, Eliete vê os anos a avançar e vai aceitando a vida que leva sem grandes entraves, nunca se questionando mais que o indispensável.

É quando Portugal joga a final do Campeonato Europeu de Futebol de 2016 contra a França e Éder marca o golo da vitória, no entanto, que Eliete se apercebe verdadeiramente da sua condição de solidão. Mesmo perante a euforia generalizada, nada sente, incapaz de se conectar com aqueles que, à sua volta, se excedem nos festejos: com o seu marido Jorge que se embebeda e adormece no chão da sala, com a sua avó cuja demência aumenta a passos largos, com a sua melhor amiga Milena que só falava no seu mais recente parceiro amoroso, ou com as filhas, uma de Erasmus em Itália e a outra reservada nos seus problemas adolescentes.

Dulce Maria Cardoso / Gustavo Bom – Global Imagens

A percepção dessa solidão e do descontentamento que tem com a vida levam-na, então, a tomar todo um rol de decisões: a principal das quais é aderir ao Tinder e, sobre o perfil falso de uma tal de Mónica, com fotos que Eliete rouba ao perfil de uma australiana que encontra no Facebook e acha vagamente parecida consigo, começar a aumentar a sua auto-estima com aquilo que lhe vai sendo dito pelos homens com quem vai estabelecendo, primeiro, conversas virtuais e, mais tarde, encontros.

A narrativa vai, então, sendo subjugada àquele que é, afinal, o grande foco de Dulce Maria Cardoso neste livro – o mundo da Internet – e, quanto mais o livro avança, mais o gás e a frescura se perdem, e sucedendo-se as páginas em que discorre sobre o modo como este está a condicionar a vida actual.

Se, por um lado, é refrescante falar de problemas não tão abordados na ficção contemporânea quanto prevalentes na sociedade, as reflexões que a autora faz não são capazes de acrescentar muito mais ao já expectável. O constante olhar para o telemóvel, que faz ignorar o que está à volta, a constante vigia das contas de Instagram da filha e do Facebook do marido, que vai trocando em comentários em público com outras mulheres, mas sobretudo o Tinder, sobre o qual páginas e páginas discorrem, numa descrição exaustiva da utilização de Eliete desta aplicação de encontros românticos, nunca vão além das conclusões relativamente fáceis de tirar acerca dos mesmos. O Tinder é como um jogo, e o carácter dissimulador que nele se tem serve para ilustrar a solidão e a forma como se esconde entre as aparências que se dão aos outros, desde as fotografias da vida perfeita que não se tem, às personagens que se criam, mas acaba por não servir para muito mais. Eliete quer romper com a sua vida normal, mas a forma como o faz acaba também ela por ser perfeitamente normal.

No entanto, o capítulo inicial é realmente bom, e é isso que torna tudo agridoce. Tudo parece encadeado para um grande romance quando tomamos contacto com esta personagem que nos vai discorrendo sobre a sua infância, a sua relação com a mãe e a avó, a forma como morreu o seu pai, o incidente da avó que sai de casa em direcção ao centro de Cascais para lá cair, aquilo que tanto mãe como filha sentem no hospital perante a nova realidade do estado da avó. Mas tanto a urgência como a pungência desse capítulo inicial se vão perdendo ao longo dos restantes, e a preocupação do livro em ser contemporâneo fá-lo simplesmente ceder perante as expectativas criadas nesse início. Talvez mais interessante que a relação de Eliete com o marido, as filhas e as redes sociais, seria sobretudo a relação dela com as duas mulheres duras da sua família – mãe e avó, que se odeiam mutuamente -, com quem Eliete sempre teve dificuldades de conexão. Talvez, mais do que os novos problemas de conexão provenientes das redes sociais, o interesse se mantenha naqueles que sempre cá estiveram e, afinal, estes novos obstáculos à conexão (que existem) sejam apenas uma forma de arranjarmos um álibi para a nossa incapacidade de resolver os outros, aqueles que por cá se vão arrastando.

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