Em ‘Be the Cowboy’, Mitski olha para dentro de si e de todos nós

por Bernardo Crastes,    2 Outubro, 2018
Em ‘Be the Cowboy’, Mitski olha para dentro de si e de todos nós
Capa do disco
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Mitski Miyawaki tem o condão de combinar palavras aparentemente simples em frases que se tornam acutilantes. A emoção desmedida que a artista transmite através das suas canções manifesta-se tanto pela afectação que muitas vezes aplica à sua voz, assim como pela música, que pode ser esparsa e melódica, ou ruidosa e abrasiva; mas sempre intensa. O seu álbum anterior, Puberty 2, foi um dos grandes statements artísticos de 2016. A épica “Your Best American Girl” é impossível de ignorar, pelo seu refrão com o poderio do black metal; enquanto que, no extremo oposto, a guitarra dedilhada de “A Burning Hill” fecha o álbum com muito menos ruído, mas igual sentimento. Na capa desse álbum, Mitski perscruta-nos de longe, mas a imagem cria a expectativa de uma aproximação sempre iminente, que acaba por acontecer quando e como menos esperamos.

Neste Be the Cowboy, Mitski confronta-nos com o seu olhar, urgindo a que nós próprios olhemos para o nosso interior, que nos confrontemos com as palavras que ela nos canta e descubramos como elas nos fazem sentir. Onde as suas letras costumavam contar mais histórias, são agora máximas que todos nós podemos dizer ou pensar, tornando ouvi-las numa experiência ainda mais pessoal. Relativamente ao veículo musical que a artista usa, esse acaba por ter várias vertentes, mas retém sempre uma certa simplicidade sem artifícios, com um foco nas melodias (em grande parte resgatadas ao piano do seu início de carreira). Isso até pode retirar o brilho de umas primeiras audições menos atentas, mas a curta duração das canções, a variedade de sons e – admitamos – o viciante single “Nobody” aumenta o poder de replay. E a recompensa é enorme.

Falemos mais da simplicidade musical: a melodia de “Lonesome Love” parece ser palhetada distraidamente pela artista, sem algo que a destaque especialmente; passa até despercebida, inicialmente. Então eis que “‘cause nobody butters me up like you / and nobody fucks me like me” ecoa pela canção, e este simples eco chama por nós. Depois, acabamos de voltar à melodia soalheira e uma guitarra mais estridente gorgoleja, abrindo espaço para “why am I lonely for lonesome love?”. A canção acaba por se impor, usando pequenos truques honestos e bonitos, que eficazmente passam a mensagem, que acaba por se evaporar. Importa dizer, tudo isto em menos de dois minutos.

“Two Slow Dancers” é uma balada construída à volta de um sintetizador lânguido, que avança lentamente ao comando da voz embaladora de Mitski, até chegar a um dos clímaces emocionais mais directos do álbum. É fácil de perceber porque é tão eficaz, com a sua beleza comovente. “Old Friend” incita à nostalgia com a sua letra de eventos passados e de um “blue diner” perdido algures num recanto da nossa mente, materializado pela melodia de cristal do sintetizador. Há pouco tempo, vimos um vídeo de um (prestes a ser) casal a caminhar até ao altar ao som de “Pink in the Night” e de palavras como “I know I’ve kissed you before, but I didn’t do it right / Can I try again” numa carta de amor sincera que rebenta numa repetição insistente de “try again and again and again”. Decerto será comovente para um artista ver o seu trabalho a entrar assim na vida das pessoas, e o facto de isso acontecer diz muito sobre ele.

Mas Be the Cowboy também se dança, como a já mencionada “Nobody” prova; é a canção triste mais feliz que ouvimos até agora, este ano. A entusiasmante “Washing Machine Heart” pega na deixa do título e faz do seu ritmo uma cavalgada louca que realmente sugere um ciclo de lavagem de uma máquina de lavar roupa – ou os constrangimentos de um coração palpitante. Esse ritmo e os sintetizadores sinuosos do refrão tornam esta música numa pérola electro rock e mostram uma face incomum de Mitski, presente ainda na propulsão mecânica de “Why Didn’t You Stop Me?”.

Mesmo canções mais ligeiras, quando comparadas com as restantes, acabam por se destacar, e em cada reprodução algo novo se evidencia. A cada volta do disco somos alguém diferente, mas há sempre algo para nos agarrar no meio desta mistura de estilos e humores. Poucos álbuns terão explorado tão bem a psique humana e os sentimentos. Este é mais um triunfo para Mitski e, facilmente, um dos melhores álbuns deste ano.

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