Primavera Sound Porto 2024: análise do cartaz sob três ângulos

por Tiago Mendes,    10 Maio, 2024
Primavera Sound Porto 2024: análise do cartaz sob três ângulos
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É invariavelmente apresentado de rajada, como uma peça inteira, ficando à mostra desde o primeiro minuto a identidade sónica que irá caracterizar aquela edição. Há um certo encanto nesse gesto de divulgação do cartaz completo do Primavera Sound Porto, de uma só vez, opção seguida por poucas organizações de festivais de música no panorama português. Antever-se com muitos meses de distância essa visão holística do arco de três dias de música é simultaneamente um acto de respeito pela programação e pelo público.

O Primavera Sound Porto tem-nos habituado a grandes cartazes desde a sua primeira edição, numa história que se vai escrevendo já há doze anos. Para além disso, tem vindo a metamorfosear-se, diversificando os géneros musicais a que dá palco. As mudanças de identidade, ora mais ora menos orgânicas, são acolhidas em festa por uns e com revolta por outros; e assim aconteceu com a passagem para o paradigma do new normal, em 2019, que podemos dizer que caracteriza até hoje o festival.

Propomos, neste artigo, um mergulho no cartaz da edição de 2024 do Primavera Sound Porto. E fazêmo-lo de forma metódica, propondo um exercício de perspectiva que processa o cartaz à luz de três vértices diferentes, que identificámos como sendo pontos agregadores de uma série de artistas no cartaz. São estes pontos o folk, o rock e o experimental. Nem todos os artistas que gostamos e queremos ver no festival se situam necessariamente numa destas caixinhas, ora porque a extravasam ora porque se situam em territórios híbridos entre elas. A título de exemplo, ficam fora desta análise Lana del Rey, os American Football, Ethel Cain, os The National ou Billy Woods – todos artistas que despertam o nosso interesse e que queremos ouvir entre os dias 6 e 8 no Parque da Cidade, em Matosinhos.

Mas propusemo-nos esta análise a partir destes três vértices, que interpretam grandes tendências no cartaz do festival. E convidamos todos os ouvintes a seguirem connosco este roteiro.

O ÂNGULO FOLK

A aclamação crítica do seu segundo álbum de estúdio, constante em muitas listas dos melhores álbuns do ano passado, faz de Joanna Sternberg um dos mais fortes nomes na undercard do Primavera Sound Porto deste ano; talvez até o nome que mais expectativas temos de ver entre todos os que figuram em letrinhas pequenas no cartaz. Joanna Sternberg é vocalista e multi-instrumentista das suas composições, que transpiram autenticidade e vulnerabilidade em abundância. A estrutura das suas canções tem uma roupagem tradicional que nos atira para outros tempos, mas no seu âmago tem uma abordagem original, curiosa, com ideias estimulantes. É isso que faz da sua música uma abordagem contemporânea ao folk. Sternberg criou uma espécie de fórmula relativamente simples, que repete de música para música (alternando entre o piano, a guitarra e outros instrumentos de cordas); embebendo as canções num romantismo excessivo e quase caricato, mas absolutamente encantador. Uma frontalidade e genuinidade inspiradora. Esperamos que o público acolha tudo isto com o carinho que merece.

This is The Kit – o nome pelo qual é conhecida a britânica Kate Stables – é uma artista que, apesar de ter vindo a trilhar a sua carreira de forma relativamente discreta ao longo dos últimos vinte anos, merece a nossa atenção pela sua abordagem sensível e melódica à música folk, com pitadas de rock calmo à mistura. Ouvir o seu mais recente trabalho, “Careful of Your Keepers” (2023), ou o que se lhe antecedeu, “Off Off On” (2020), que apreciamos particularmente, mostra uma mestria particular em convocar um ambiente sereno e agradável. Nem aborrecido nem redundante, pelo contrário: arranjos criativos, progressões harmónicas que volta e meia nos surpreendem, não raro com o apoio das belíssimas texturas dos sopros de metal. Com a sua voz particular, e explorando esse espaço entre o minimalismo e a expansividade sónica e emotiva, This is the Kit é um dos nomes a que gostávamos de assistir próximo da hora do pôr do sol.

Uma outra banda que vai marcar presença no Primavera, com raízes folk bem distintas destas, são os Lankum. O grupo, cujo álbum “False Lankum” foi muito bem recebido pela crítica em 2023, cria a partir de uma base de música folk tradicional irlandesa, mas cruza-a com uma abordagem mais pesada: adicionando elementos de neo-folk (com uma abordagem mais negra e densa), drone (com longas notas suspensas sobre as melodias) e a experimentalidade e estruturas criativas do avant-folk. Os Lankum têm tudo para ser autores de um dos momentos mais especiais do Primavera Sound Porto deste ano: uma sonoridade muito diferente de tudo o resto, alternando entre uma abordagem mais contemplativa e uma energia pulsante e contagiante nas suas músicas. Haverá espaço para dança meio ritualista? Para nos sentirmos em fusão com a terra? É difícil antecipar um guião de sentimentos para um concerto tão fora dos padrões do festival.

Há outras expressões folk neste vértice do festival. Julie Byrne promete apresentar a sua abordagem chamber folk, não totalmente distante da ambient pop também, com linhas pacíficas e sentimentais; o seu mais recente trabalho tinha uma aura atmosférica que temos curiosidade de provar ao vivo. Ana Lua Caiano traz os mundos que tão bem tem vindo a construir, a partir das suas bases vocais tão fundadas na musicalidade folk portuguesa, digivoluídas por meio da técnica e da electrónica. Os Expresso Transatlântico, que a partir da guitarra portuguesa exploram avenidas novas, desbravando caminho numa progressividade folk que é já muitas outras coisas ao mesmo tempo. São alguns dos nomes, não todos, da via folk que detectámos como linha coesa e ao mesmo tempo diversificada no Primavera Sound Porto.

O ÂNGULO ROCK

Começamos por um nome que temos dificuldade em discernir onde situar, neste eixo entre o vértice do rock e do folk. Isso é também reflexo da caleidoscópica carreira que Mitski tem vindo a construir: a sua ascenção meteórica de popularidade não tem condicionado a ambição criativa da cantautora americana que tantos tem emocionado com a sua música radicalmente exposta. Camaleónica, a sua energia tem uma ambição, ritmo e expansividade sónica que a situa neste território de um rock frequentemente largo, de altos decibéis, alternado ao longo dos seus trabalhos por canções em que a fragilidade é expressa através do sussurro. Mas mais do que essa dinâmica, o que hipnotiza muitas vezes na composição de Mitski é o rumo das progressões harmónicas, essa criatividade sem freios no rumo das notas, e a expressividade dos acordes de escala menor. Figura de culto de toda uma nova geração, não só de fãs de música alternativa, Mitski figura como co-headliner da primeira noite desta edição do festival em que se estreou num palco pequeno na edição de 2017. Expectativas muito altas para este espectáculo!

Destacamos, logo a começar, a criatividade que brota da música dos Tropical Fuck Storm, espelho da diversidade das diferentes abordagens ao rock constantes no cartaz desta edição do Primavera. A música desta banda australiana é composta por uma fusão de diferentes experimentalidades, atestada, de resto, pelas capas dos seus dois primeiros álbuns. Dois dos seus membros fizeram parte dos The Drones, banda que desde o princípio do século já tinha lançado uma discografia que sedimentava o colectivo como um dos projectos que melhor têm vindo a executar um cruzamento estranho entre o punk e o blues rock; dando ainda espaço ao psicadélico e ao noise rock. Com uma atitude assumidamente despreocupada, uma seriedade que vai sendo questionada e desconstruída pela diversão inerente aos seus ritmos e escalas. A voz de suporte feminina, de Fiona Kitschin, adiciona uma camada bem-vinda de claridade e horizonte à expressão vocal de Gareth Liddiard. Estamos em crer que os Tropical Fuck Storm têm os ingredientes para oferecer ao público um concerto tão hipnotizante como estimulante.

Já que trilhamos territórios experimentais, referência para outra banda cujo último trabalho editado no ano passado, “Everyone’s Crushed”, tornou o seu nome mais conhecido. Os americanos Water from Your Eyes têm uma sonoridade que poderíamos até considerar prima da dos Tropical Fuck Storm, talvez mais electrónica e com uma pitada extra de mistério e dissonância. Há uma ansiedade e densidade na música deste grupo, catalisada pela performance da vocalista Rachel Brown (cuja atitude é desconcertante), e se coaduna com a base instrumental que constrói estes estranhos universos rock. Música difícil de descrever; e que bom é assim ser.

Há outras avenidas rock, é claro, a explorar no Primavera Sound Porto, como aliás é costume de ano para ano. Teremos nomes históricos como PJ Harvey e Pulp, com a sua abordagem artística e alternativa ao género, como cabeças de cartaz. Mannequin Pussy a trazerem um indie rock enérgico e cru. A lista não é exaustiva. Não haverá falta de guitarras eléctricas expressivas no Parque da Cidade do Porto, estejam descansados.

O ÂNGULO EXPERIMENTAL

Mandy, Indiana talvez sejam um dos nomes mais interessantes das letrinhas mais pequenas do cartaz do Primavera Sound Porto. O álbum de estreia da banda, i’ve seen a way, foi um dos mais bem cotados discos de 2023 em termos de crítica. A mistura inusitada de batidas dançáveis, distorção, sintetizadores penetrantes e uma entrega vocal que vai de um lounge francês a uma cave hardcore tornam os Mandy, Indiana num dos pináculos da música experimental do cartaz. Por mais que sejam normalmente associados ao rock, a sua música troca as guitarras por algo mais industrial e mecânico que transcende fronteiras de género musical. Canções como “Drag [Crashed]” ou “Peach Fuzz” prometem fazer parte de alguns dos momentos mais aguerridos do festival e colocar o nome desta banda britânica no circuito alternativo em Portugal.

Por esta altura, o nome de Arca já não deverá ser desconhecido para quem segue o circuito de música electrónica (e não só). A produtora venezuelana que, nos últimos 10 anos, tem trazido um toque de noise e transgressão a canções de artistas como Björk, Kanye West e FKA twigs, é uma força musical por si só. Os seus variados trabalhos de estúdio são autênticas montras de todas as tendências da música electrónica mais experimental, que aponta a um futuro trans-latino cada vez mais ubíquo na cena clubbing. O formato da segunda apresentação de Arca no Primavera Sound Porto (a primeira foi em 2018) ainda é desconhecido, até porque cada espectáculo seu tem sempre um enorme elemento de imprevisibilidade. Podem esperar performance artística à la drag queen, reggaeton aguerrido, batidas desconstruídas e até Madonna ou Kylie Minogue, tudo passado por um filtro de experimentalismo e noise.

A música de Tirzah é um mutante difícil de resumir a um único género. Enquanto que, no início da sua carreira, a artista britânica apontava à pista de dança com batidas pujantes e sintetizadores industriais, o seu primeiro álbum de originais surpreendeu com um R&B leve e ocasionalmente etéreo, dedicado a expressões de amor devocionais. O inesperado sucesso da sua música surtiu o efeito contrário ao que muitas vezes acontece: Tirzah virou-se para dentro. No seguinte álbum, Colourgrade, usou a electrónica para deformar canções íntimas, tornando cada vez mais sinuosas as vias pelas quais canta delicadamente sobre amor. Rodeando-se de ruído e dissonância e recorrendo a drum machines cavernosas, a artista mergulhou ainda mais fundo na cratera para trip9love..?, o seu mais recente álbum — que apresentou recentemente em Lisboa (reportagem). O concerto no Primavera Sound Porto, sendo em âmbito de festival, talvez exija uma maior alusão às suas origens, mas não duvidamos que o concerto de Tirzah será uma calorosa surpresa para os fãs de música mais experimental.

Mas as ofertas de música experimental e mais extrema não se ficam por aí. Eartheater é mais um dos nomes que caracteriza uma nova vaga de R&B alienígena (à qual se associam nomes como Sevdaliza ou FKA twigs), em que elementos de diferentes esferas musicais são moldados para criar algo vagamente familiar, mas desconcertante. Outro nome a não perder são os Wolf Eyes, banda veterana que se pode encaixar na caixinha do noise, mas que se estica até aos terrenos do metal, música de improvisação e até electrónica.

Estes três ângulos representam três rotas coesas que descobrimos no cartaz do Primavera Sound Porto. Pode fazer sentido escolher uma delas como bussola orientadora do percurso pelo festival; ou cruzar a nossa experiência, porque estes caminhos não são propriamente paralelos. Tudo dependerá dos horários dos concertos, que deverão ser divulgados em breve pela organização. Até lá, que estes menu sirvam de inspiração para descobrir um par de bandas que poderá compor o bouquet único e original da vossa experiência no Primavera.

Artigo escrito em colaboração com Bernardo Crastes.

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