Em “Fetch the Bolt Cutters”, Fiona Apple demonstra estar em controlo

por Bernardo Crastes,    17 Abril, 2020
Em “Fetch the Bolt Cutters”, Fiona Apple demonstra estar em controlo
Capa do disco
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A cada álbum, Fiona Apple adiciona um ano ao hiato que separa os seus projectos. Desta vez, oito anos separam o mais recente Fetch the Bolt Cutters do excelente The Idler Wheel… — lançado em 2012 e com um nome tão longo que a notação com reticências é a mais utilizada. Essas pausas criam expectativa e aumentam a mística à volta do fenómeno que é a artista que se encontrou sob as luzes da ribalta com apenas 18 anos, idade com que lançou o seu devastador álbum de estreia, Tidal. A sua vida pessoal conturbada e vícios aumentavam o receio pela segurança de Apple, que afirma agora ter deixado de beber há um ano e parece encontrar-se mais confiante e saudável que nunca. Isso reflecte-se na música de Fetch the Bolt Cutters, com a sua percussão aguerrida e crueza que demonstra a confiança da artista no trabalho, sem precisar de um exterior excessivamente trabalhado.

“I Want You to Love Me” começa delicadamente, com um piano resplandecente que parece ecoar por um sumptuoso salão de baile e com a voz da artista numa valsa ao seu ritmo. A meio, a canção abre violentamente as janelas do salão com percussão, uma pianada mais atabalhoada que nos leva de volta aos clássicos de lounge bar da sua carreira e à versão mais ríspida e comandante da sua voz. Esta segunda metade do tema é mais representativa do resto do álbum, que atira quaisquer ilusões de submissão pela janela fora: Fiona Apple quer, pode e manda.

Em “Under the Table”, não se cala mesmo quando a manutenção das aparências o pede (“Kick me under the table all you want / I won’t shut up”). A história é bastante directa: o parceiro de Apple leva-a a um jantar com pessoas de quem ela não gosta muito. Quando eles dizem algo de que ela não gosta, não será o vinho que apagará o fogo que fervilha dentro dela. Por mais que ele amue, ela não se calará. As suas analogias e metáforas permanecem acutilantes, como “I’d like to buy you a pair of pillow-soled hiking boots / To help you with your climb / Or rather, to help the bodies that you step over, along your route / So they won’t hurt like mine”. Para terminar com as citações de um dos pontos altos do disco, “I would beg to disagree / But begging disagrees with me” é uma frase que sintetiza a sua fogosidade da forma poética e clara a que Fiona Apple nos habituou.

Os fantasmas de relações passadas de Apple são exorcizados nestas canções, seja ao estender a sua simpatia a alguém que passou pelo mesmo que ela (“It’s a shame, because you and I didn’t get a witness / We’re the only ones who know / We were cursed, the moment that he kissed us”, canta em “Newspaper”) ou vociferando acusações a quem pratica violência contra mulheres, como no coro harmónico e percussão agitada de “For Her”, que quebra com a frase penetrante “You raped me in the same bed your daughter was born in”. O condão destas exposições tão pessoais é nunca soarem a vitimização, mas sim ao empoderamento que está na raíz do movimento Me Too, tão deturpado por negacionistas e pessoas com interesse em manter a cadeia de poder delineada ao longo de décadas.

Fiona Apple reconhece ser difícil não ser vingativa quando se vê confrontada com aquilo que acredita ser o mal, comparando-o a um desporto de estafetas em “Relay”, em que acabamos todos por participar numa passagem do testemunho maléfico de mão em mão. É, por isso, a epifania “But I know it if I hate you for hating me / I will have entered the endless rage” que deve guiar-nos, pois o mal gera o mal. A cantautora admite não ser perfeita ao longo destas canções, mas tem a clara noção do que está mais correcto — pelo menos para si mesma. E é isso que a faz soar tão confiante e que causa uma impressão tão grande.

Apesar das percussões tinirem e vibrarem de forma electrizante ao longo de praticamente todo o álbum, há momentos designados para acalmar os ânimos. “Cosmonauts” traz uma toada mais jazzy e um refrão a lembrar The Idler Wheel…, mesmo depois acabando por crescer até um clímax gritado. A pequena “Drumset”, escrita durante uma discussão com a sua banda, é uma meditação minimalista sobre o rescaldo do final de uma relação. “Fetch the Bolt Cutters”, a tranquila faixa-título, tem uma pequena participação da sua cadela Mercy e da actriz e modelo Cara Delevingne. É uma revisão da sua rápida ascensão à fama, que resultou na submissão da sua carreira a controlo externo e numa vilificação por contemporâneos e jornalistas. Mas agora Apple pede que lhe passem os alicates, pois finalmente encontrou a sua voz e não vai ficar confinada aonde quer que a coloquem (“Fetch the bolt cutters / I’ve been here too long”).

Este é um álbum de uma artista em controlo da sua arte. Seja pela capa e métodos de gravação do-it-yourself, ou até pela campanha publicitária simplista e contida — sem singles, grandes entrevistas ou sessões fotográficas grandiosas — Fiona Apple sabe que o valor do seu trabalho reside na música que faz, deixando-a falar por si.

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