Em Leiria, há uma porta que não se fecha
Num ano em que, mais uma vez, o circuito de festivais de Verão se tem mantido fechado, o multidisciplinar festival A Porta teve a coragem de reanimar esse espírito veraneante em Leiria. O costume de espalhar as suas actividades pelas ruas da cidade teve de ser refreado de acordo com o cumprimento das normas de segurança estipuladas, tendo de, em vez disso, trazer a cidade até si ao longo de três fins-de-semana. Desta feita, ocupando o privilegiado espaço da (por ora) abandonada casa oitocentista Villa Portela, o festival reforçou a ligação com a comunidade local num contexto em que cada vez mais se exalta a importância do que nos é próximo.
Isso revelou-se em coisas tão simples como na disposição do recinto, que incentiva o público a explorar o mesmo e a perder-se nos seus recantos e detalhes. As instalações dos criadores Colectivo Til, ± MaisMenos ±, Tenório, Frame Colectivo e Patrick Hubmamn repensaram a forma como o espaço citadino pode ser aproveitado, de formas interactivas e visualmente apelativas, enquanto que os Jogos do Hélder revisitaram jogos tradicionais. Cartazes de aspecto oficial povoavam o recinto, apresentando pedidos de licenciamento feitos à Câmara Municipal de Leiria para utilizar o espaço da Villa Portela — com coisas tão variadas como um abrigo para animais abandonados, uma casa de unicórnios, um portal inter-dimensional ou mesmo aquilo que neste momento ocupa o espaço: “nada”. O público até podia votar na sua proposta favorita.
Este gesto em partes iguais interventivo e divertido representa bem o espírito que o festival pretende invocar nas pessoas. As conversas que se escutaram no primeiro fim-de-semana abordaram a intersecção entre a comunidade e a cultura, assim como a maneira como as crianças vêem a cidade de Leiria. Estes momentos potenciaram o debate e a expressão de opiniões nem sempre consideradas, trazendo à luz problemáticas e pontos de vista frescos. A importância deste cruzamento de ideias revelou-se no variado público do festival, que tinha uma incomum e refrescante prevalência de famílias com crianças.
Mas não só de conversas se fez o festival. Durante as amenas tardes do primeiro fim-de-semana, DJ sets intergeracionais (para miúdos e graúdos) permitiram ao público abanar o corpo. No que toca a concertos, o bissanense Braima Galissá demonstrou a sua mestria com a kora, fazendo-se acompanhar de dois músicos com melodias de guitarra intrincadas e bongós calorosos. Os sempre fiáveis Sensible Soccers quebraram o seu jejum de palcos de quase um ano, preparando-se para o iminente lançamento do sucessor de Aurora, disco que povoou a maior parte do alinhamento. Foi o funk de “Chavitas” e a progressiva “Elias Katana” que trouxeram de volta o sol que teimava em esconder-se, mas revisitar qualquer um dos sintetizadores da divertida banda nortenha é um prazer.
No final de sábado, foi o cinema nacional que tomou conta do recinto. O ciclo dedicado à obra do cineasta Pedro Neves arrancou com “Os Esquecidos”, documentário que conta as histórias de “gente que tropeçou no entulho e na desilusão, na privação, na perda, na angústia”, vivendo nas franjas da sociedade. A curta-metragem “Casa de Vidro”, de Filipe Martins, foi também exibida.
O espírito resiliente da organização revelou-se num enorme apreço tanto pelas pessoas que frequentaram e esgotaram o festival — gratuitamente, mas com lugar reservado previamente — como pelos seus próprios voluntários, repetida e merecidamente louvados. A resposta à adversidade enfrentada pela cultura nestes últimos dois anos está patente no mote do festival A Porta para um 2021 frustrante: insistir, resistir e existir.
O festival tem decorrido ao longo destes primeiros fins-de-semana de Julho, repetindo a estrutura, mas nunca as actividades. Os três últimos dias de festival (16, 17 e 18 de Julho) contarão com concertos de Ece Canlı, Arianna Casellas, Sunflowers e Herlander, mais DJ sets familiares, conversas sobre comunidade e cultura, assim como outras actividades lúdicas e educativas.