Em “Santiago, Itália”, o activista Nanni Moretti evoca o golpe de Pinochet e pensa no presente
11 de setembro. A data terá para sempre um peso histórico tremendo. No entanto, será injusto olvidar o seu impacto político antes mesmo da tragédia de 2001, há precisamente 18 anos. É que precisamente 18 anos antes, ou seja, a 11 de setembro de 1973, ocorria no Chile o golpe de estado que substituiria a democracia do governo democraticamente eleito de Salvador Allende pela ditadura militar de Augusto Pinochet, prolongando-se durante 17 anos. Independentemente da inusitada (e equidistante) curiosidade histórica talvez percebamos a urgência de Nanni Moretti em auscultar o seu próprio ativismo político no documentário Santiago, Itália, que agora estreia, sobretudo numa altura em que a sua Itália parece regressar às eternas e nefastas contradições políticas.
É então no eco profundo das celebrações da tragédia americana de 2001 que recordamos o ‘golpe’ chileno de 1973, e percebemos até a ingerência política da fatídica administração americana de Richard Nixon (11 meses antes da sua resignação motivada pelo escândalo Watergate). Curiosamente (lá estão as datas de novo!) é precisamente em 1973 que Nanni Moretti inicia a sua carreira de cineasta (com a curta La Sconfita), mas também a de interveniente nos seus filmes, nessa forma de prolongamento corpóreo e umbilical de si próprio. Apesar do documentário ser uma exceção na sua filmografia (La Cosa, em 1990, no período em que o PCI Partido Comunista Italiano decide mudar de nome e se torna na ‘coisa), a regra tem sido Moretti a ‘dar a cara’ nesse cinema fortemente ancorado na realidade.
Santiago, Itália é um filme de memória, de evocação do passado, sobretudo da reflexão que refugiados em Itália fazem do período em que o sonho deles se transformou em pesadelo e de como a embaixada italiana em Santiago se solidarizou durante o golpe de estado facilitando o asilo de inúmeros chilenos perseguidos pela polícia. Naturalmente, o registo é dominado (e limitado) por ‘cabeças falantes’, interligadas por imagens de arquivo da época, que incluem a declaração fatídica de Allende, já a 11 de setembro, o ataque da força aérea ao palácio presidencial La Moneda, ou ainda os banhos de multidão e o clamor da contagiante alegria popular que o antecedeu. Foi mesmo num verdadeiro ‘estado amoroso’ que foi acolhido o ainda candidato Salvador Allende (e também o poeta amigo Pablo Neruda), na recordação de empresários, operários, advogados, professores, tradutores e cineastas, como Carmen Castillo, Miguel Littín e sobretudo Patricio Guzmán, que dedicou a sua vasta filmografia à memória do Chile – e com quem tivemos a oportunidade de uma entrevistar este ano em Cannes a propósito do seu documentário mais recente A Cordilheira dos Sonhos.
Por outro lado, percebe-se também como a personalidade omnipresente do realizador, na maior parte da sua ficção, se remete agora para uma mais discreta presença, apenas interrompida quando mantém a sua voz para perguntar a um dos entrevistados: “Como recorda os seus anos de militância?” – “Maravilhosos” é a síntese depois do momento de sufoco pela emoção.
Não deixa de ser curioso como Moretti parece refletir o seu próprio passado, e em particular a aproximação rara ao documentário, se bem que o seu DNA criativo nasça de um assumido realismo político, mesmo quando aligeirado (Querido Diário, de 1993, Abril, de 1998). Talvez daí o jogo possível do título Santiago, Itália possa remeter tanto para os chilenos naturalizados italianos, como para a aproximação da Itália de 2019 ao Chile de 1973.
Pelo menos percebe-se que o atual projeto parece completar esse desejo enorme de auscultar a realidade. Embora à sua maneira e nunca de forma imparcial. De resto, a expressão “não sou imparcial” é usada quando interpela um militar preso e condenado por tortura e homicídio, que por sua vez se defende com o jargão do ‘cumprimento do dever’ que mais não é do que uma réplica da ‘banalidade do mal’ evocada por Hannah Arendt, no seu estudo sobre o nazi Eichmann. Esta comparação serve e até á justificada pelos inúmeros sobreviventes nazis refugiados no Chile no final da 2.ª GM e que perduraram até à ditadura militar.
Mesmo na impossibilidade estética de evitar o peso do registo de depoimentos, somente aqui e ali complementado por imagens de época, percebe-se que Santiago, Itália é profundamente um filme Moretti. Não só pelo incontornável lado ideológico, mas também pelo vontade de celebração oferecida pelo adequado momento musical que nos remete de novo para a sua obra, em particular, o recorrente musical do pasteleiro trotskista na Itália dos anos 50, evocado em alguns dos seus filmes, como Palombella Rossa ou Abril.
É essa vontade de celebrar a memória e de vincar o presente que pertence a essa qualidade de documentadores, como Patricio Guzmán, cuja obra faz parte dessa gesta política. Embora o peso da encenação da realidade na obra do italiano Moretti seja igualmente – se não mesmo superior – à do chileno Gusmán. Porque existe entre estes dois cineastas essa premissa de dedicação ao seu povo que aqui encontra o devido encontro. É esse também o encontro dos chilenos em Itália, filhos de um país (que se converteu num mau padrasto, como comenta um dos intervenientes) e que encontraram na Europa a um país “próximo do que sonhara Allende nessa época”. Embora acrescente que hoje a Itália se “assemelha cada vez mais àquilo que o Chile tem de pior”. É também esse encontro que nos deixa a pensar no papel que poderemos (deveremos) também ter nas causas que defendemos.
Crítica de Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt