Émile Durkheim, o legitimador da sociologia

por Lucas Brandão,    13 Setembro, 2017
Émile Durkheim, o legitimador da sociologia
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Como uma das referências da sociologia, tanto na sua amplitude conceptual como prática, surge o francês Émile Durkheim. Ao lado dos nomes de Karl Marx, Auguste Comte, e de Max Weber, a sociologia deste gaulês deu o mote para a constituição das ciências sociais, suficientemente organizadas e estruturadas para se apresentarem cientificamente. Aproveitando o mote positivista do seu compatriota Comte, conferiu extensão a uma linha de pensamento devidamente fundamentada e articulada, assumindo, como mote, o estudo da sociedade como um todo. Entre induções e deduções, são mais certezas que dão volumetria e simetria a um trabalho de mérito e de primazia no legado sociológico deixado às humanidades e ao pensamento humano.

Quem é?

David Émile Durkheim nasceu a 15 de abril de 1858, tendo falecido cinquenta e nove anos depois, no dia 15 de novembro de 1917. Grande parte do trabalho do gaulês centrou-se na funcionalização das sociedades, em especial no modo em como estas se mantêm coerentes e íntegras. No surgimento de novas instituições sociais, superando as arcaicas de cariz religioso e social, Durkheim problematiza-as em duas obras de destaque. “The Division of Labour in Society” (1893), e “The Rules of Sociological Method” (1895) dão o mote para se torne no primeiro professor de sociologia francês, e no fundador do pioneiro departamento referente à área no continente europeu. Criador da edição “L’Année Sociologique” (1898), antecede-a com uma investigação polémica sobre o suicídio – “On Suicide: A Study in Sociology” (1897) – na qual estudou as percentagens de ocorrência desse fenómeno em populações de convicções católicas e protestantes.

Foi à luz desta atividade que deu forma e mote à criação da investigação moderna em ciências sociais, à luz dos postulados positivistas de Comte – em que a ciência, o empirismo, e os factos devidamente verificáveis assumem a preponderância e o fundamento da realidade, ao invés da especulação romantista e religiosa. Durkheim, no entanto, vai mais longe, e destrinça a sociologia da psicologia e da própria filosofia política. Para o consolidar, e novamente apoiado na religião, edita e lança “The Elementary Forms of the Religious Life” (1912), onde compara o modus vivendi e a cultura das sociedades modernas e das indígenas.

Uma das suas maiores preocupações foi a de legitimar a própria sociologia, apontando-a como a ciência das instituições, sustentada no realismo epistemológico, e no modelo hipotético-dedutivo de criar hipóteses, e obter dados com os quais trabalhar, investigar, e validar/refutar as propostas inicialmente. A sociologia operaria, desta feita, com especial atenção voltada para as crenças e modos de comportamento coletivos, passíveis de serem estudados por uma espécie de funcionalismo estrutural. Aqui, acasala a antropologia com a sociologia, esta num papel holístico e amplo, deixando de se limitar ao estudo de ações específicas de indivíduos.

Até à sua morte, o teórico apresentou uma série de palestras e de ensaios relativos a uma vastidão de temas, tais como a estratificação social, a educação, a justiça, a moral, o conhecimento sociológico, e a própria formação de uma consciência coletiva, capaz de entrever a evolução das diferentes sociedades existentes. Como base, existiam três objetivos a serem cumpridos durante a carreira do sociólogo. Estes consistiam na legitimação da sociologia no meio académico; na análise da manutenção da integridade e da coerência das várias sociedades nos nossos dias, na dissipação de valores étnicos e religiosos; e na perceção das implicações práticas do conhecimento científico, em especial na integração social. Sobre isso, escreveu que a unidade seria o reflexo da articulação das várias funções existentes em cada plano social, que não aconteceu por falta de vontade de todas as partes envolvidas para se comungarem num objetivo comum.

As inspirações

Para além do já aludido Auguste Comte, e do seu positivismo científico, Durkheim sentiu-se atraído, enquanto estudava na universidade, por dois pensadores que adotaram a filosofia do alemão Immanuel Kant. De seus nomes Charles Bernard Renouvier e Émile Boutroux, foram injeções de racionalismo e de moralidade aplicada à ciência, aumentando a oposição ao existente utilitarismo e à educação secular. Quanto à metodologia, abrangeu o método científico do historiador Numa Denis Fustel de Coulanges, conducente ao positivismo de Comte. Esse vento científico foi o mote que Durkheim precisava para pensar a sociologia como ciência, aplicando o método das ciências naturais às sociais, como havia sido feito por esse positivista. A partir do empirismo, ou seja, dos dados provenientes da experiência e da investigação, a ciência social poderia, à imagem da ciência natural, constituir leis e teses afiançadas no seu suporte formal e metodológico. Daí em diante, o método sociológico refutou a presença da metafísica e da filosofia, embora considerasse Comte como algo especulativo nesse sentido.

Uma outra grande influência no trabalho do gaulês foi o realismo social, que reforçou o cariz objetivo e epistemológico com o qual visualizava as relações dentro das sociedades. Realidades sociais existem externamente, estando independentes da perceção individual, premissa que se opõe ao empirismo e ao positivismo enunciados anteriormente. Para Durkheim, a sociologia, para além de descobrir as eventuais leis, seria capaz de descobrir a natureza inerente da sociedade, através da ampliação do objeto de estudo para o coletivo, ao invés de se restringir ao indivíduo.

O estabelecimento da sociologia como área temática

O europeu, ao querer esclarecer e autonomizar a sociologia, procurou conferir-lhe e assegurar-lhe a metodologia capaz de se afastar liminarmente da psicologia ou da filosofia. No núcleo do seu estudo, estiveram os fenómenos que ocorreram nas sociedades estudadas, fenómenos que reforçavam essa separação em relação às áreas aludidas. Visando descobrir factos sociais estruturais, o seu legado estendeu-se para uma série de pensadores e académicos, de várias áreas e ramos, tais como o linguista Ferdinand de Saussure, o pós-modernista Michel Foucault, o psicólogo Jean Piaget, e o antropólogo Claude Lévi-Strauss, o proponente do estruturalismo na sua área.

A metodologia

Para o estabelecimento e entendimento da sua metodologia de pensamento e de trabalho, Durkheim redigiu “The Rules of Sociological Method”, onde se propôs a apresentar um em que a cientificidade se tornasse incontestável na sociologia. Uma das problemáticas é o sublinhar da presença da objetividade do investigador, i.e. se as condições estão reunidas para que a observação seja imparcial, impessoal, e pragmática. Embora se sinta que uma observação totalmente sem viés é impossível de se obter, importa mais estudar a relação entre factos do que um facto em específico, alimentando as ligações e as comparações em detrimento dos dados independentes e soltos.

Ao lado do inglês Herbert Spencer, um dos precursores do funcionalismo, foi um dos primeiros a explicar, de forma rigorosa, a existência de várias partes constituintes de uma sociedade, qualificando-as a partir da função exercida por cada uma. De Spencer, acabou por importar a ideia de uma analogia orgânica, estabelecendo a comparação entre sociedade e um organismo biológico vivo. Mais do que a soma das partes, afirma-se como um sistema, capaz de integrar e de envolver todas as funções e partições. Assim, e opondo-se aos alemães Max Weber e Ferdinand Tönnies, não se focou naquilo que eram as ações individuais, mas nos factos sociais.

“Hence we are the victims of an illusion which leads us to believe we have ourselves produced what has been imposed upon us externally.”

“The Rules of Sociological Method”

Os factos sociais

Esse conceito é apresentado, por Durkheim, como qualquer ação capaz de exercer um certo constrangimento externo no indivíduo, embora independente deste, e que se generaliza nos elementos de uma dada sociedade. A sua autonomia é o que permite que os fenómenos sociais se distingam, indiferentes da constituição individual, podendo evidenciar um poder coercivo em relação àqueles que constituem a própria sociedade. Podendo-se professar em forma de leis ou regulações, também se podem manifestar como crenças, normas religiosas e familiares, princípios tácitos, etc. Os factos sociais são desencadeados, normalmente, por antecedentes que a história traz, e que constitui o legado de uma sociedade, inserindo-se em categorias de fenómenos.

Estas entidades não são reduzíveis aos planos biológicos e psicológicos, pois podem ser divididos em factos materiais – objetos – e imateriais – significados, com estes a terem a hipótese de provir dos próprios elementos físicos. No entanto, maior parte delas não assumem forma material, prendendo-se mais com valores e sentimentos. Um dos factos sociais existentes é o próprio suicídio, que o francês entende como passível de estudar uma dada sociedade, por despoletar a partir da influência da realidade vivida. Por mais que um indivíduo não possua essa vontade nem essa propensão, o facto aqui exposto não deixa de existir no seio de uma sociedade; com a sociologia a surgir como essencial no estudo característico e qualitativo desse e de outros tantos que assolam a sociedade estudada, tanto através de trabalhos estatísticos e quantitativos – aos quais Durkheim dava grande ênfase – como de cariz experimental.

A cultura e a consciência coletiva em mutação

O sociólogo apresentou a sociedade, a partir das instituições sociais existentes, como passível de ser explicada através dos factos sociais. Essa análise, feita a partir da perspetiva industrial e institucional, é feita em “The Division of Labour in Society”, e procura responder à questão do fundamento da criação de sociedade, e sobre aquilo que a sustenta. Mesmo que o ser humano se revele, intrinsecamente, egoísta, existem normas, crenças e valores que, juntas, se condensam numa consciência coletiva de suporte moral e ético ao comportamento de cada um. Assim, esta entidade funciona como o grande pilar de uma sociedade, reforçada pelas interações estabelecidas entre os vários seres humanos. Através disto, os indivíduos tornam-se conscientes do seu papel como seres sociais, com a emoção a ultrapassar as barreiras individualistas normalmente existentes. Esta vinculação cultural permite que a interação social se torne o meio moral e normal através do qual a construção de uma sociedade se dá.

É neste prisma que a cultura surge como essencial na construção de uma identidade grupal, à qual se associam várias emoções. O interesse pela questão da diversidade cultural aumentou, no sentido em que essa mesma variedade falha na destruição de uma dada sociedade. A resposta que propôs foi a de que qualquer diferenciação a este nível era sobrepujada por um sistema inerente a todos os constituintes de uma sociedade, indiferentemente do seu traçado cultural, e pela própria lei. A evolução das próprias sociedades acompanhou esta crescente diversidade, partindo de uma dinâmica mecânica para uma outra orgânica, advinda da existência de necessidades mútuas. A divisão do trabalho, porém, veio substituir a construção de uma consciência coletiva, para além das tradições e laços que ligam os mais íntimos entre si. Na perspetiva de uma sociedade moderna, a crescente especialização necessitou de uma proporcional cooperação, associada e complexificada por essa necessidade combinada. Na solidariedade mecânica, existindo uma autossuficiência elevada, não existia a necessidade de integração, urgindo mais a regulação dos envolvidos. Acompanhando o crescimento da população e da sua densidade, surgiu essa orgânica solidariedade, para além de mais elaboradas relações sociais. A justiça surge, mais do que corrigir, reforçar e reunificar, num papel apontado ao indivíduo, de reparação dos danos eventualmente desencadeados.

“Methodological rules are for science what rules of law and custom are for conduct.”

The Division of Labor in Society

A nova sociedade trouxe uma maior individuação, com os próprios factos sociais a refletirem a maior focalização em cada um. Assim, mais do que o coletivo, é o ser humano que se torna o foco dos direitos e deveres, para além do centro de rituais públicos e privados de uma dada sociedade, ultrapassando a religião. Neste “culto do individual”, Durkheim apontou o seu fundamento como resultado da própria sociedade, que divinizou o singular como suserano de outros, que surgem como vassalos, à boa imagem medieval. Consoante a sociedade cresceu em número, também a própria complexidade da mesma se adensou, com o aumento da competitividade entre os vários indivíduos, cada vez mais anónimos no seio do seu contexto social. A divisão do trabalho acresceu essa especialização, com um desenvolvimento e funcionalização cada vez mais autónomo e diferenciado de cada um. As instituições burocráticas e as instâncias individuais superiorizam-se, em grau de pertinência, à religião e às instituições morais. A competitividade também se reflete na própria necessidade de cada um de classes sociais mais baixas se mostrar como similar aos das classes mais altas, sendo o vestuário uma premissa resultante e expositiva desse cenário, de forma cíclica, e de acordo com as tendências da moda.

Patologias sociais, o crime e o suicídio

Apesar da integração social se proporcionar, normalmente, com estabilidade, existem várias patologias que a podem perturbar. A primeira delas é a anomia, que diz respeito a um estado em que, num expansivo crescimento demográfico, a interação grupal diminui, o que leva a uma menor perceção dos valores inerentes à conduta e contacto humanos. A segunda trata da divisão forçada do trabalho, onde os órgãos de poder, e as figuras que os assumem, se tornam tão obcecadas pelo lucro e pelo material, que podem gerar descontentamento no seio do local de trabalho, e frustrações que destabilizam a sociedade. Quanto à eventual ocorrência de um crime, Durkheim entende-o como uma disrupção das noções convencionais da sociedade, embora não perca de vista as mesmas. Constatando, em si, uma função social inerente, aponta para as fragilidades sociais demonstradas, o que leva a que mudanças sejam efetivadas. O francês corrobora-o com o julgamento do filósofo grego Sócrates, em que a independência da sua linha de pensamento serviu para criar uma nova articulação moral, e para findar com eventuais tensões sociais existentes. A autoridade, nestes casos, não deve ser excessiva, dando margem para a expressão mais ou menos sustentada da originalidade daquele que perpetra esse incidente, sem lesar física ou psicologicamente o outro.

Para a discussão, o gaulês traz o suicídio, constatado e escrutinado na sua obra “On Suicide: A Study in Sociology”. Tal como Weber, o também europeu trouxe à argumentação a dialética protestante-católica, embora com contornos distintos. Durkheim avaliou o controlo social em ambos os meios, e considerou que era no católico que se sucedia menos esse tipo de casos. Enquanto aqui, de acordo com as suas observações, existiam níveis normais de integração, já no protestante, os níveis eram bem abaixo, fundamentando com as ligações interpessoais dos seus grupos, para além da falta de regulação comportamental. Tudo isto ultrapassando os próprios sentimentos e motivações individuais, gerando, em torno do suicídio, uma conceptualização de facto social.

Mais do que a vida individual, e do que todas as suas intempéries pessoais e logísticas, considerou o suicídio como advindo de um desvio social, na forma de uma transgressão de normas estabelecidas em sociedade. Para destrinçar melhor os vários tipos em discussão, e duas variáveis – regulação social e integração social – através das quais os tipos se expressam. Começando pelo egoísta, este provém de um nível baixo de integração social, o que leva a que o indivíduo sinta que já não efetua diferença nenhuma no próximo. No entanto, o seu oposto, que se prende com integração social excessiva, leve, também, a ser uma tipologia, conhecida por altruísta. O suicídio anómico provém de uma insuficiência na regulação social, em que o desespero e a falta de metas se expressam como consequências da incapacidade de se saber com o que se pode contar da vida. O último é o fatalista, que resulta de demasiada regulação, numa rotina, aos olhos do ser humano, incontornável, e que leva a que o seu horizonte se torne pouco percetível. Aqui, o gaulês enquadra o suicídio de maior parte dos presidiários, que se veem sufocados pela regulação social existente.

“Man cannot become attached to higher aims and submit to a rule if he sees nothing above him to which he belongs. To free him from all social pressure is to abandon him to himself and demoralize him.”

On Suicide: A Study in Sociology”

Este estudo tornou-se um dos mais notáveis a nível sociológico, embora bastante discutido e posto em causa pelas gerações subsequentes. A partir de dados levantados pelo italiano Henry Morselli, e pelo alemão Adolph Wagner, estes tornaram-se questionados pelos mesmos, que se preocupavam em generalizar a recolha. Quanto aos dados propriamente ditos, investigadores futuros apontaram a restrição da amostra, apenas limitada aos germanófonos, e inseridos nos contextos católicos e protestantes. Apesar das falácias que lhe foram imputadas, Durkheim foi a principal base da criação da teoria do controlo, para além de reforçar a legitimidade e a independência da sociologia como ciência socio-humanística.

Religião

No trabalho sobre a religião, o enfoque volta a uma obra supramencionada, e escrita no século XX, de seu título “The Elementary Forms of the Religious Life”. O propósito do autor, com esta obra, foi o de identificar a origem social e a função da própria religião, tentando confirmar a sua teoria de que era uma fonte de camaradagem e de solidariedade. Para além disso, procurou descortinar ligações entre religiões no seio de diversas culturas, à procura de um denominador comum. Mais do que perceber os conceitos de espiritualidade e de Deus, Durkheim quis desvendar o aspeto empírico e social da religião, o tal que unificasse todas, embora sem as pôr ao serviço do mesmo.

O francês aproveitou para definir religião, considerando-a como um sistema que reúne crenças e práticas relativas a elementos sagrados, envolvidos por uma comunidade moral e comunitária, normalmente conhecida por Igreja. A definição tenta colocar de lado referências metafísicas, por não poderem ser explicadas cientificamente, e serem, naquele tempo, bastante recentes. É nessa perceção, contudo, de tudo ser sobrenatural que o sociólogo conduz a proximidade das religiões entre si, na ideia do sagrado, i.e. das ideias que não podem ser explicadas, mas que inspiram uma aura em seu torno. Mais do que as crenças, as práticas, e a comunidade moral, ressalvam-se estas ideias coletivas, que se geram a partir de objetos materiais, mas que se professam como sentimentos e sensações despertos para lá do mundo tangível.

O pensador apontava a religião como a instituição social mais fundamental da humanidade, podendo amplificar outras expressões sociais. A religião reforça o sentido de consciência coletiva, advindo da tradição de caça e de coleta das sociedades primitivas. As emoções, em grande efervescência no seio de grupos crescentemente numerosos, levavam os membros destas a comportarem-se de novas formas, para além de redescobrirem a força associada ao interior de cada um. Enquanto os recortes emocionais foram ganhando simbologia, e as interações se tornaram ritualizadas, a religião tornou-se organizada e formalizada, levando a uma distinção entre o sagrado e o profano. No entanto, no olhar atento de Durkheim, também via a religião como cada vez menos essencial, tendo em conta o culto do individual da sociedade moderna, para além do desenvolvimento da ciência.

“The most barbarous and the most fantastic rites and the strangest myths translate some human need, some aspect of life, either individual or social.”

“The Elementary Forms of the Religious Life”

Apesar desta desvalorização na contemporaneidade, não deixava de dar o mote para a fundação de uma sociedade moderna, para além daquilo que norteia as relações existentes nesta. Não havendo força equivalente à produzida pela religião na dinâmica social, fez por colocar em dúvida a modernidade, vendo-a como um período de transição e de emergente mediocridade moral. A sua análise e compreensão da realidade, à imagem de todos os outros, e no seu entender, tornava-se influenciada pela religião, que deu o mote para que as construções sociais se tornassem categorizadas coletivamente. Enquanto as sociedades se criam, estas categorias acompanham o processo de fundação das mesmas, de forma quase inconsciente ao ponto de passar ao lado da experiência individual. Toda a perceção humana é, assim, formatada por factos sociais, tal como o tempo calendarizado, ou o espaço cartografado. Em especial o primeiro, é referenciado por datas e efemérides religiosas, o que leva a que a religião tenha contribuído, grosso modo, para a sua perpetuação referencial. Para Durkheim, a religião foi a progenitora de grande parte das bases essenciais da vida em sociedade, para além de influenciar os próprios intentos científicos.

No livro acima nominalizado, o europeu fala do totemismo, crença associada aos australianos e americanos nativos, como uma das mais ancestrais religiões, e que se sustentava numa simplicidade que facilitava toda a discussão do fulcro desse corpo conceptual e de crenças. Mais do que o clã, a figura do totem despertava toda e qualquer impressão relativa à vida dos seus membros, anunciando os suportes básicos da sua rudimentaridade. Todo o trabalho feito pelo sociólogo neste prisma conheceu várias críticas, em especial pela forma como retratou as comunidades indígenas e as primeiras formas de religião, mas reforçou a vontade de vários teóricos se debruçarem sobre as diferentes gerações de expressão grupal e comunitária, com base nessa tessitura de crenças.

Sociologia e Filosofia

Parte do trabalho desenvolvido por si também abordou a própria formação de uma sociedade do conhecimento. É também a obra citada no ponto anterior onde Durkheim perspetiva esta realidade, que tenta desvendar as origens sociais e o impacto da formação da sociedade na linguagem e no pensamento lógico. Assim, e a partir de uma estrutura de trabalho à boa maneira kantiana, no sentido em que tentou entender conceitos e categorias na linha de pensamento, propôs que o espaço e o tempo não fossem entidades a priori. Na sua ótica, o espaço dependia do agrupamento social, e do próprio uso geográfico do mesmo; já o tempo, estava relacionado com o ritmo social de um dado grupo. Foi com isto que tentou combinar racionalismo com empirismo, discernindo que alguns aspetos do pensamento lógico resultavam da vida em coletivo, não sendo nem universais, nem adquiridos a partir da experiência individual. Isto fundamentava-se pela variabilidade dos conteúdos categorizados de sociedade para sociedade.

Essa reunião coletiva desencadeia a formação de representações coletivas, que são os símbolos e imagens que transmitem as ideias, valores e crenças elaborados por uma certa comunidade, e que não podem ser reduzidos à individualidade. Estas podem ser ideias, palavras, símbolos, lemas; e ser despoletados por objetos, como uma pena, uma cruz, uma rocha, uma foice, etc. As representações nascem a partir de uma atividade social intensa, resultando da partilha coletiva, e inserem-se no contexto individual a partir da integração e ação no seio de uma dada sociedade. Uma das mais pertinentes é a linguagem, que se trata de uma ação coletiva resultante e constituída por várias gerações de história e de conhecimento e experiência assimilados e integrados com o tempo, construindo sentidos dentro da sua herança. A realidade é transformada e penetrada pela construção de uma linguagem, que capacita e estrutura a experiência de cada um, embora, a este, esteja sempre subjacente uma sociedade na qual atua e se desenvolve. Precisamente a estruturação seria tema de discussão e de escrutínio por parte do filósofo francês Michel Foucault, durante o século XX.

À filosofia, está sempre inerente a moralidade, que, no parecer de Durkheim, significa um sistema de regras aplicadas à conduta humana. Muito marcado por Kant, e pelo seu conceito de dever, não deixou de ser crítico à teoria deste sobre o conceito. Concordando com ele no sentido da autoridade moral e do caráter obrigatório ligado a si, Durkheim evidencia que a moralidade não está presente numa espécie de imperativo categórico, pois as responsabilidades morais só surgem em sociedade. Para além do caráter coercivo da moral, também é algo que é desejado pelo indivíduo, com este, acreditando servir o bem comum, a aceitar voluntariamente a conduta instituída pela sociedade em que se presencia. Para alcançar isto, o gaulês volta a importar a religião, que legitima qualquer traçado moral efetuado, e exorta para que se alimentem os recursos, o respeito e a capacidade de cultivar essa missão cívica de responsabilidade e de moralidade, de forma, como sempre, coletiva.

Émile Durkheim deu cartas naquilo que foi a legitimação e a formalização da sociologia como uma das ciências sociais mais marcantes do século XX. Envolvendo uma série de temáticas nos seus postulados, complementados por obras literárias de vulto, estabeleceu um caminho marcante e de destaque para os sucessivos pensadores, tanto na área da antropologia, como na própria psicologia, nas ciências naturais, e até na política. A visão sistémica e social com a qual perspetivava o mundo, nas suas diferentes expressões e consagrações, permitiu à sociologia despojar-se da sombra que ocupava fazia muito tempo, e ganhar asas sustentáveis e autónomas para voos independentes e condizentes com a sua credibilidade. Por investigações fora, Durkheim, com bases filosóficas, arredou caminho para o campo da ciência, que tanto admirava, e transformou a ciência da humanidade como bem presente e influente no auge da realidade.

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