Quem é Manuel Sérgio, o guru teórico de José Mourinho e Jorge Jesus?

por Lucas Brandão,    9 Agosto, 2022
Quem é Manuel Sérgio, o guru teórico de José Mourinho e Jorge Jesus?
Manuel Sérgio em 2007 / DR
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Quando se abordam os mestres dos treinadores de futebol, por defeito, equacionam-se os nomes de outros técnicos. No entanto, e entre outros, quando se trata de nomes como José Mourinho ou Jorge Jesus, um desses (principais) mestres é Manuel Sérgio Vieira e Cunha, que o próprio Jesus acolheria no SL Benfica como conselheiro. Nasceu em Lisboa, a 20 de abril de 1933, licenciou-se em Filosofia na Universidade de Lisboa e é, hoje, conhecida referência da disciplina de motricidade humana, abrindo o seu campo científico no seu percurso de doutoramento e de professor. Mas o que é isso de motricidade humana? Não é mais do que o estudo dos fenómenos subjacentes à compreensão de tudo aquilo que a ação humana faz e origina, num olhar em que conflui a biologia, a psicologia e a sociologia. Na fusão de tudo isto, desta força motriz que é a motricidade, uma perspetiva filosófica, que leva além o principal objeto de estudo de Sérgio — o desporto.

Tendo, como base académica inicial, a Universidade Técnica da capital portuguesa, posteriormente, tornou-se um dos bastiões da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, para além de fundar a Sociedade Portuguesa de Motricidade Humana, assim como a Internacional. Amante do futebol e do desporto em geral, colecionou funções no seu clube, Os Belenenses, assumindo a sua Assembleia Geral e até a vice-presidência da sua direção. Ainda no desporto, também teve funções nos órgãos sociais das associações de basquetebol e de andebol de Lisboa.

Porém, como é que o seu caminho veio ter à motricidade humana? Filho de um casal de transmontanos, no qual o pai era soldado da GNR, os seus compromissos como criança eram com a missa dominical e com o futebol, nomeadamente com o Belenenses. Depois de uma passagem pela Marinha, que durou mais de 10 anos, em 1965, seria professor de Português, de História e de Filosofia, com sustento na licenciatura que havia feito. No entanto, em 1968, entrou no Centro de Documentação e Informação do Fundo de Fomento do Desporto, onde começou a embrenhar-se no mundo do exercício físico e do olhar a partir das ciências sociais sobre este. Foi com este olhar muito científico que assumiu a docência de Educação Física e até a presidência desse Fundo de Fomento. Estas experiências recentes permitiram-no associar-se à Fédération Internacional d’Éducation Phsyique e participar na redação da revista desta instituição.

Na década de 1970, em 1972, fez parte do Bureau Internacional de Documentation et d’Information d’Éducation Physique et Sport, um organismo associado à UNESCO. Porém, três anos volvidos, abraçou o desafio proposto pelo Instituto Nacional de Educação Física e começou a lecionar várias unidades curriculares em muito inovadoras em Portugal, a saber: Introdução à Política, Introdução à Educação Física e Filosofia das Atividades Corporais. Posteriormente, também seria responsável pelas aulas de Epistemologia da Motricidade Humana, já na recém-criada Faculdade de Motricidade Humana. A sua crescente reputação encaminhá-lo-ia a lecionar em Madrid e no Brasil, como na UNICAMP, em Campinas. Neste percurso, começou, também, a participar em literatura, como a coleção “Educação Física e Desportos”.

Esteve presente no I Congresso Nacional de Medicina Desportiva, que decorreu em 1981, e começou a participar numa vasta gama de outros simpósios e conferências, em muito associados à prática da Educação Física e ao enquadramento do desporto na sociedade contemporânea. Em muito se colocou a tónica na profissionalização dos seus professores e dos próprios membros das equipas técnicas das várias modalidades praticadas e em crescente consolidação técnico-tática. No decorrer da sua investigação, foi consolidando a sua área de estudos, a motricidade humana e o caminho da criação de uma área científica independente para esta, com uma investigação epistemológica bem assente em princípios científicos e filosóficos, na reflexão aprofundada sobre os fenómenos movidos e gerados pela atividade humana. Foi assim que, cada vez mais, se tornou um rosto do Instituto Superior de Educação Física (ISEF), associado à Universidade Técnica.

Em 1984, seria considerado sócio de mérito do seu clube do coração, os Belenenses, enquanto ia tendo um papel bastante ativo no dia-a-dia desta instituição, nos já referidos cargos. A sua popularidade também ia crescendo pelo Brasil, onde era convidado a palestrar e onde publicava pequenos opúsculos sobre os temas da sua investigação. No ano de 1986, com a orientação de João Evangelista Loureiro, à data vice-reitor da Universidade de Aveiro, defenderia a sua tese de doutoramento no ISEF: “Para uma Epistemologia da Motricidade Humana”.

É nesta que exorta para a fundação de um novo ramo científico, o da motricidade humana, num diálogo plural entre o desporto e a dança, no ponto de vista de esforços físicos, mas também com a ergonomia — a interação dos seres humanos com as demais variáveis existentes para a maior rentabilização e satisfação do seu trabalho — e a reabilitação. Desta forma, trata-se de um ponto de vista que transcende os habituais redutos da ciência, dualista e positivista, querendo aceder à complexidade humana. A esta, só poderia aceder com uma visão capaz de abranger, de integrar e de partilhar. Com a tese, inspira, de certa forma, a fundação da já indicada Faculdade de Motricidade Humana, que seria, essencialmente, protagonizada, institucionalmente, por Henrique de Melo Barreiros, à data responsável pelo Conselho Científico do ISEF.

O académico teria, de igual modo, um papel ativo na política portuguesa na década de 1990, já que presidiu e representou o Partido da Solidariedade Nacional no Parlamento nacional, de 1991 a 1995. Partido este vocacionado para a justiça social e para a integração dos reformados e dos mais velhos neste princípio, permitindo que estes não fossem esquecidos. Como feitos de carreira, depois de professor catedrático na Universidade Fernando Pessoa e no ISMAI, e como presidente do Instituto Superior de Estudos Interculturais e Transdisciplinares, seria galardoado, no Brasil, com a medalha de Mérito Desportivo (1990), e, em Portugal, com a Honra ao Mérito Desportivo (2007) e com a Comenda da Ordem de Instrução Pública (2017). Três anos antes deste, seria nomeado Provedor da Ética no Desporto. A própria Universidade Católica Portuguesa criaria a Cátedra Manuel Sérgio, sendo um dos seus proponentes o agora cardeal D. José Tolentino Mendonça, cátedra essa subordinada ao desporto e à ética e transcendência a si latentes. Mais recentemente, é o jornal A Bola que vem acolhendo as suas crónicas, elucidativas à imagem do seu restante repertório.

Algumas dessas suas referências literárias, que compilam o seu pensamento, são:

  • “Algumas Teses sobre o Desporto” (2007, um retrato sobre a evolução do desporto ao longo dos anos e do seu papel na sociedade);
  • “Filosofia do Futebol” (2009, onde aplica a sua teoria meramente ao futebol);
  • “Crítica da Razão Desportiva” (2012, uma outra obra sobre as transformações quanto ao conceito de desporto);
  • “O Futebol e Eu” (2015, uma obra que espelha a experiência do autor no mundo do futebol);
  • “Desporto em Palavras” (2016, em que se debruça sobre as expressões pensadas e raciocinadas sobre aquilo que é o desporto e o seu caminho ético e filosófico);
  • “Para um Desporto do Futuro” (2017, em que o desporto é uma espécie de berço educativo e formativo de seres humanos, sendo um olhar quase idílico sobre o seu potencial);
  • “Para uma Epistemologia da Motricidade Humana” (2018, a sua tese de doutoramento);
  • “Da Ciência à Transcendência” (2019, uma coleção de textos nos quais se desenvolve uma tentativa de desenhar uma filosofia do desporto em ligação com um modo de pensar a própria vida).

Para Manuel Sérgio, autor de todos estes trabalhos e mais alguns, esta motricidade é a materialização daquilo que é a energia humana na forma de movimento intencional da transcendência. Por outras palavras, trata-se da superação, que quer ir preenchendo a incompletude que força as várias áreas do saber a dialogarem e a encontrarem respostas para a ação humana. No fundo, esta interdisciplinaridade funda um novo paradigma, que é o pilar desta nova ciência, que se quer social e, fundamentalmente, humana. Os objetos de estudo deambulam entre a existência humana — a ontologia —, das próprias ciências, dos seus fundamentos e orientações — epistemologia — até alcançar o esforço físico que as coloca em conjugação e em unidade — a educação física. No ponto de vista da própria prática desportiva, mais ou menos profissional, a preparação do atleta é feita com um prisma humano, que assenta no modelo de jogo que é procurado estabelecer e incutir. É um modelo que transcende a mera realização, mas que passa por todo esse movimento intencional de ir além.

Desta forma, distancia aquilo que pretende que seja a ciência da motricidade humana do que é a pura e dura educação física, em rutura com o cartesianismo, apologista da mente e da matéria como independentes. Não obstante, é uma distância que não a exclui, já que as considera interdependentes, já que uma não existe sem a outra e vice-versa, unidas pelo que é entendido como educação física escolar ou educação motora. É, antes, um corte com as posições canónicas sobre a educação física que permite que esta possa encontrar um verdadeiro fundamento, fundamento esse que faz com que os atletas sejam seres humanos plenos, na sua dimensão biopsicossocial. O movimento intencional da transcendência não é um mero processo físico, mas antes, e em muito, mental, intelectual e espiritual. É isso que dota o esforço física da referida complexidade, que, no agregado de uma equipa, se torna um movimento até solidário; de igual forma, é isso que faz com que o desporto seja muito mais do que a prática materializada, mas que passa por todo o processo de aprendizagem.

Os dribles, os passes, os remates, os blocos, os demais movimentos. Todos eles não existem, mas antes os humanos que os executam. São movimentos plenos de intencionalidade protagonizados por esses seres humanos. O modelo de jogo, como referido, é mais do que a mera tática, mas a formação pessoal, nas suas diferentes vertentes. Para o treino, traz-se o indivíduo, o ser humano, carnal, mas também veículo de emoções, de sentimentos, de ambições, de impulsos. São materializações dessa vontade de transcender e que impulsionam a tal ideia de “periodização tática” (mas também antropológica, naquilo que é a preparação de quem faz e de quem protagoniza a tática), que mergulha o modelo tático nos recursos humanos à disposição, com caraterísticas psicológicas e emocionais que são incutidas e trabalhadas.

Daí a formação do atleta, que, nessa esfera psicossocial, cruzando com os talentos físicos, se transforma naquilo que o timoneiro (treinador/a, que se torna num verdadeiro educador e que deve priorizar mais dirigir e orientar do que comandar, liderar, ler o jogo, comunicar e conhecer os humanos com quem trabalha e que instrui) quer, em torno de uma ideia plural e que requer movimentos intencionais de transcendência em diálogo. Esse reconhecimento do outro fortalece, deste modo, a ética da própria prática desportiva, ao mesmo tempo que forma o indivíduo para o sentido competitivo do desporto, na otimização humana do treino. Um treino que é a unidade é organizado com as partes a servir o todo, com o estabelecimento de relações e de articulações na formação de um todo, relações essas conduzidas pela ação e pelo movimento.

Daqui também a tónica na dimensão valorística do desporto, isto é, na necessidade do desporto se sustentar em princípios éticos, que não são somente normativos, mas antes influenciadores desses movimentos intencionais. Na sua perspetiva, esta prática é, também, agente cultural, que aponta para o sentido da vida, já que se sustenta numa transcendência social, moral e espiritual, nos sentidos singular e plural humanos. De certa forma, aplica-se uma visão antropológica, já que, mais do que propriamente o atleta, está o ser humano, influenciado pela sua família, pela cultura em que se insere e pelas ideias e pelos valores que contém.

Trata-se de um espelho da verdadeira complexidade humana, mas cujo sentido transcendental acaba por ser influído pelo pensamento humanista cristão — também por esta premissa a criação da sua cátedra na Universidade Católica. É a materialização de uma grande crença de Manuel Sérgio, que também redigiu poesia com base nesses princípios e que se coliga em “Antologia Poética” (2017). Assim, é tacitamente criticado o pendor quantificador e estatístico dos desportos, em que os números (económicos e outros associados à performance do atleta) ditam aquilo que é o maior ou menor sucesso da prática desportiva.

A filosofia encarrega-se de servir como o eixo de reflexão crítica sobre a complexidade humana e sobre o movimento intencional em transcendência do ser humano. É, de certa forma, uma ponte entre as aludidas dimensões biológica e intelectual, que fazem parte dessa multidimensionalidade humana e que influenciam as várias expressões psicomotoras. É essa consciência filosófica, em muito submergida na linha de pensamento de vários vultos do século XX, como Gaston Bachelard, Michel Foucault, Maurice Merleau-Ponty, Jean Piaget, Thomas Kuhn, os membros da Escola de Frankfurt ou Edgar Morin, que humaniza a atividade e que permite que o ser humano se emancipe, se liberte de constrangimentos de ordem social, sexual e racial.

É uma consciência ativa, avessa à tecnocracia e antes antropocêntrica, em que é o humano o supremo. Não interessa a quantidade dos saberes, não obstante a importância do estudo e da diversidade de áreas sobre as quais este ocorre, mas antes a qualidade da sua absorção e do ser que se torna, refinando o poder crítico e inquisitivo dos protagonistas desta motricidade, desta movimentação. A capacidade de ir mais longe e de superar barreiras físicas, capaz de se desenvolver até em idades mais avançadas, mais longe da usual plenitude ósseo-muscular. Uma ciência que, apesar de todos os academismos, consegue ser arte e encontrar-se nessa arte, nessa realização que, contudo, é sempre humana.

Manuel Sérgio é uma das referências do pensamento científico e filosófico dos últimos anos. No entanto, o seu contributo para o pensamento dos fenómenos desportivos tornou-se ainda mais clarividente, em especial com o papel decisivo que teve na criação da ciência da motricidade humana. Uma ciência que tornou, de certa forma, o futebol amigo da academia, pese embora os obstáculos presentes, frutos dos tempos em que os números e as tecnologias têm ganho ao esforço meramente humano, a solo e em conjugação com os demais. São alertas que as suas obras, por muito científicas que se tornem, enunciam, alertas de quem amou e ama o jogo e de quem o vê como o exercício humano, impossível de ser somente obra mecânica. É a humanidade que movem palavras e pensamentos a serem inspiração de ações e movimentos, coordenados por quem assume a responsabilidade de formar. Mais do que atletas, humanos. Mais do que a prática do desporto, a vida.

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