Eminem matou Slim Shady, mas ele nunca abandonou Marshall Mathers
Eminem, um dos mais populares e influentes rappers do mundo, que se mantém como um dos artistas mais vendidos de sempre, lançou em meados de julho o seu 12.º álbum, “The Death of Slim Shady (Coup de Grâce)”. É um disco em que o artista de 51 anos se propõe a assassinar o seu alter-ego, o célebre Slim Shady, mas cujas intenções (e resultados) parecem mais dispersas do que isso. Acima de tudo, é certamente (mais) uma tentativa de Eminem reivindicar uma relevância que, por vários fatores, possa ter perdido com o passar do tempo.
Para contextualizarmos o homicídio de Slim Shady, talvez o melhor seja mesmo começarmos pelo início. Em 1996, Eminem estreou-se com “Infinite”, um disco independente no qual já mostrava o seu talento para a escrita mas que também evidenciava um artista em formato bruto, que só mais tarde iria atravessar um natural processo de lapidação. O álbum não teve o impacto desejado e esse fracasso acabou por resultar no aparecimento de Slim Shady.
Reza a lenda que Eminem — foi o próprio quem já o disse publicamente — estava sentado na sanita quando teve a ideia de criar Slim Shady, um alter-ego artístico. “Boom, o nome apareceu-me, e de imediato comecei a pensar em todas estas palavras que rimam com aquilo”, disse ainda nos anos 90, quando foi pela primeira vez capa da revista The Rolling Stone.
Descoloriu o cabelo — construindo uma imagem de pirralho rebelde num tempo em que muitas estrelas, por exemplo, do pop punk também o faziam — e agarrou-se a este alter-ego insolente para canalizar tanto o seu lado de comédia negra como a sua raiva e frustrações latentes. Era um cartoon, uma personagem com a qual podia explorar livremente os recantos mais obscuros do seu cérebro, escrevendo coisas chocantes e ofensivas sem se preocupar tanto com as consequências. E resultou.
Em 1999, Eminem apresentava o segundo álbum, “The Slim Shady LP”, o primeiro editado em grande, através da Aftermath de Dr. Dre e da Interscope de Jimmy Iovine. “My Name Is” era um single portentoso que evidenciava logo quem era este anti-herói protagonista, mesquinho e vingativo, brutal e violento, que naturalmente vendeu — e muito. Mas é claro que as linhas rapidamente ficaram turvas e a vida pessoal de Marshall Mathers misturava-se com o rap de Eminem sob a lente hiperbólica de Slim Shady. “99 percent of my life I was lied to/I just found out my mom does more dope than I do”, ouve-se no single, o que levou a um processo judicial interposto pela sua mãe, Debbie Mathers.
Eminem tornou-se numa super estrela mundial e rapidamente deu seguimento à sua carreira com os lançamentos de “The Marshall Mathers LP” (2000) e “The Eminem Show” (2002). Enquanto rapper branco a emergir de uma cultura negra — mas com a reputação de um talento inegável e um contexto social de pobreza e drogas que o tornava credível — captou todo um novo público que o próprio poderia depois muito bem descrever num tema como “White America”. Slim Shady era precisamente a persona que muitos pais e avós, brancos e conservadores, temiam enquanto influência para os seus filhos e netos. Mas não havia como travar este apetite, neste caso também alimentado por um certo sentido de identificação, por quem vinha de baixo e parecia não ter problemas em dizer o que bem lhe apetecia.
“Grande parte da controvérsia em torno dos discos anteriores de Eminem — ‘The Slim Shady LP’ e ‘The Marshall Mathers LP’ — veio das agora famosas letras em que ameaçava matar a sua mulher e a sua mãe ou onde expressava a sua homofobia. Acusado de ser um mau humano e uma influência tóxica, Eminem declarou-se inocente por razões de integridade artística”, escreveu a revista Time em 2002, aquando do lançamento de “The Eminem Show”. “Ele era um tipo chamado Marshall Mathers com um alter-ego do rap chamado Eminem, e esse alter-ego tinha um sósia lunático com o seu próprio nome, Slim Shady. Ele estava meramente a interpretar um papel (ou três). E o Slim Shady é a fantasia raivosa, uma projeção do pesadelo dos pais protetores e o diabo no ombro dos rebeldes adolescentes.”
No primeiro single desse álbum, “Without Me”, Eminem acaba por refletir sobre a preponderância de Slim Shady na sua carreira: “I’ve created a monster/ ‘Cause nobody wants to see Marshall no more/ They want Shady/ I’m chopped liver”. E quando Slim Shady aparece nesse tema, ele resume bem o seu apelo: “Little hellions/ Kids feeling rebellious/ Embarrassed their parents still listen to Elvis/ They start feeling like prisoners, helpless”.
Haja mais ou menos distâncias entre a persona de Slim Shady e o rapper que é Eminem — já nem vamos falar da pessoa que é Marshall Mathers, uma vez que a origem de todos estes alter-egos é a sua mente — certo é que foi Slim Shady, com as suas rimas ofensivas e exageradas, que acabou por vender e tornar-se responsável por grande parte do sucesso da sua carreira. Afinal, está mais do que provado, as pessoas adoram violência e choque. Por mais que seja verbal.
Ao longo dos anos, o rapper foi construindo uma discografia entre diferentes personas, entre as várias facetas da sua música. Slim Shady acabou mais associado à adição de drogas de que Eminem sofreu; e foi visível como nos últimos 16 anos, desde que ficou sóbrio, que o artista procurou de algum modo distanciar-se ou pelo menos oferecer algum contexto sobre a sua persona de troll.
“The Monster”, tema com Rihanna, talvez seja um dos melhores exemplos nesse sentido. Em álbuns como “Recovery” (2009) ou “Revival” (2017), assistimos a Marshall Mathers a tentar fazer algumas pazes com uma infância repleta de abusos e negligência. Mas, mesmo com mais temas dedicados a assuntos emocionais e sérios, com uma vertente mais introspetiva, Slim Shady nunca desapareceu completamente — e será que alguma vez vai?
A morte (anunciada) de Slim Shady
Chegamos, então, ao álbum em que Eminem anuncia — muito claramente, logo no título — em que iria assassinar o seu alter-ego. Por um lado, o rapper parece, de uma vez por todas, querer silenciar a pior versão de si mesmo. É essa a narrativa do disco, reforçada por alguns skits que vão intercalando as quase 20 faixas. Ao todo, é mais de uma hora de música.
Slim Shady rapta Mathers, e força-o a escrever o tipo de temas que o tornaram famoso em primeiro lugar. A primeira parte do álbum é precisamente essa reconstrução (e homenagem) do legado de Slim Shady, com rimas declaradamente exageradas e ofensivas de forma gratuita, o que ainda é mais chocante tendo em conta que — felizmente — vivemos hoje numa sociedade mais consciencializada e sensível.
“Fuck blind people” é o primeiro verso que ouvimos em “Trouble”. “Brand New Dance” é, essencialmente, uma faixa repleta de punchlines dirigidas a Christopher Reeve, ator que morreu em 2004. Certamente demonstra o potencial lírico e criativo que Eminem mantém, mas também o lado mais imundo de Slim Shady. Ao longo de vários temas, há uma série de referências jocosas a Caitlyn Jenner — e várias outras personalidades são mencionadas. Existem alguns aparentes ataques de fúria em relação aos pronomes, à suposta “cultura woke” e referências a “South Park”. Há ataques às pessoas obesas ou com problemas mentais. Inevitavelmente, todo este aparato mostra-nos um homem de meia-idade preso no seu tempo, certamente datado, mas aparentemente desesperado por enfurecer/captar a atenção da geração Z e dos protagonistas dessa cultura que alegadamente tanto repugna.
Mais do que um anti-herói por que as pessoas gostavam de torcer, este Slim Shady é o rebelde sem causa, o tipo estranho e irritante que diz coisas terríveis e provocadoras sem razão aparente, um super-vilão de dedo do meio levantado que veio do passado causar o pânico na era da alegada “cultura do cancelamento”. “Who’s to blame for my screwed-up brain?”, questiona-se Eminem em “Evil”. Essa pergunta pode ter várias respostas honestas, mas certo é que Eminem pareceu escolher recriar letras profundamente ofensivas e perturbantes sob o pretexto de lutar contra a persona de Slim Shady, na narrativa para este álbum.
“Guilty Conscience 2” é uma sequela da emblemática faixa que em 1999 o juntou a Dr. Dre. Na altura, interpretavam anjo e demónio nos ombros de uma série de personagens, apelando a isto ou àquilo, puxando pelo lado bom ou mau de cada pessoa. Neste segundo capítulo, o embate acontece entre Eminem e Slim. Estão presos numa batalha mental que acaba a analisar porque é que Eminem não se consegue libertar deste seu próprio lado. Slim Shady argumenta que é usado enquanto personagem para que Eminem possa utilizar palavras e ter comportamentos que não tem a coragem de fazer sozinho. Eventualmente, Eminem cumpre o destino anunciado e mata Slim Shady com uma bala — só para, depois, percebermos que não passava tudo de um sonho. “It was all a dream”, ouvimos.
Sendo assim, Slim Shady continua vivo? Parece-nos que, enquanto Marshall Mathers existir, tanto Eminem como Slim Shady vão continuar por cá. Por um lado, trata-se de um admirável exercício de auto-consciência, um mergulho dentro da mente do artista, por mais contradições e lados obscuros que esconda. E o rap sempre teve um forte lado performático, de utilização do exagero e da ofensa. Por outro, estamos a ouvir um homem que parece não mudar de todo, que mantém as mesmas referências e crenças desde o final dos anos 90, que terá amadurecido mas que continua a explorar uma personagem de alguma forma cruel? Mais uma vez, Slim Shady nunca foi verdadeiramente embora e parece-nos que também não será desta.
Num vídeo gravado para a Complex, Eminem prolongou ainda mais este diálogo mental consigo mesmo e extrapolou-o do álbum para uma conversa. Marshall Mathers e o seu alter-ego estão sentados frente a frente durante uma dúzia de minutos, trocando argumentos em estilos muito diferentes. E também há um certo ato de coragem numa exposição destas, temos de o admitir.
“Vamos ser sinceros: a música que tens feito tem sido um lixo desde que me mandaste embora”, afirma Slim Shady, que diz ser o grande responsável pelo sucesso de Eminem.
Já Marshall Mathers também deixa críticas ao seu alter-ego: “Qual foi a última vez que criticaste alguém que não fosse uma estrela pop, uma celebridade fora do rap ou alguém de uma comunidade marginalizada?” E deixa mais questões: “É entretenimento ser um otário e chatear as pessoas? Eu cresci, o meu público amadureceu, o mundo mudou, as pessoas estão muito mais sensíveis agora.”
Marshall Mathers volta também a contextualizar a própria existência de Slim Shady. “Eu inventei-te porque a minha vida estava fodida, a minha música não estava a ir a lado nenhum, e eu estava falido. És a razão por que tive de me automedicar, por ti quase perdi a minha carreira, a minha família e a minha vida.” Disse ainda que a sua vida tem estado muito melhor desde que se afastou daquela persona, referenciando a sua batalha com a adição. “Nós ambos fizemos o Eminem, ele é o melhor de nós os dois. E isto não é sobre mim e ti, é sobre ele e os fãs.” Talvez seja a melhor conclusão para este tríptico de personas cuja história originou um novo capítulo neste “The Death of Slim Shady (Coup de Grâce)”.