Enrico Fermi: a arte de conjugar teoria com experimentação
Enrico Fermi foi um dos mais notáveis físicos do século XX. Conjugou tanto a componente teórica como a experimental, desenvolveu trabalhos em diversos ramos da Física e o seu nome encontra-se associado a vários conceitos científicos. Contudo, e apesar da sua enorme polivalência enquanto cientista, Fermi ficaria fortemente associado à construção do primeiro reactor nuclear, sendo muitas vezes descrito como o “o pai da era nuclear”, era essa que viria a culminar com o Projecto Manhattan que levaria ao desenvolvimento da primeira bomba atómica. Num século fortemente marcado pelos avanços revolucionários nas mais diversas áreas da Física, onde teóricos e experimentalistas se dividiam, Fermi teve a proeza de conjugar as duas componentes, tornando-se num dos cientistas mais importantes de sempre.
Nascido em Roma no dia 29 de Setembro de 1901, Enrico Fermi foi o terceiro filho de Alberto Fermi, um inspector do ministério de telecomunicações, e de Ida de Gattis, uma professora primária. Consta-se que a morte de um dos seus irmãos mais velhos, quando Enrico tinha apenas 14 anos o afectou psicologicamente, e uma das maneiras de aliviar a dor dessa perda era fazer pequenas experiências científicas simples. Talvez este tenha sido o começo de uma brilhante carreira de um dos maiores físicos de sempre. Começou por ser orientado por um engenheiro amigo da família até 1918, altura em que deixaria Roma e matricular-se-ia na Scuola Normale Superiore em Pisa. Nesta altura, Fermi era visto como um aluno de excelência, mas também como alguém irreverente e indisciplinado, tendo sido várias vezes repreendido e castigado pelas diabruras e partidas que fazia aos seus colegas. Trava uma forte amizade com seu colega e físico Franco Rasetti e, para além das aulas que tinha de frequentar, acaba também por estudar por si mesmo tópicos avançados de Física como relatividade geral, mecânica quântica e Física atómica. Assim, conseguiria elaborar os seus primeiros artigos científicos ainda antes de se ter licenciado.
Durante o seu doutoramento, feito na mesma universidade, acaba por passar algum tempo na Alemanha, em Göttingen, onde trabalharia com Max Born e conheceria Wolfgang Pauli e Werner Heisenberg. Porém, o estilo filosófico da Física na escola alemã eventualmente não o entusiasmou, não ficando assim por lá durante muito tempo. Quando Wolfgang Pauli anunciou seu princípio da exclusão, em 1925, que permitia deduzir a distribuição dos electrões nas diferentes orbitais de um átomo, Fermi respondeu com um artigo sobre “a quantização de um gás ideal monoatómico”, onde aplicou o princípio desenvolvido por Pauli num gás perfeito. O mesmo raciocínio desse artigo foi desenvolvido independentemente por Paul Dirac, que viria a originar a famosa estatística de Fermi-Dirac. Dirac criou a convenção de que as partículas que obedecem ao princípio da exclusão são chamadas “férmiões” (relativo ao nome de Fermi) e as que não obedecem são denominadas por “bosões” (relativo ao nome do físico Satyendra Nath Bose). Fermi começava assim a ter o seu nome associado a importantes conceitos na Física, e este era apenas e só o início.
Fermi ainda tivera uma breve passagem pela Universidade de Leiden nos Países Baixos em 1924, numa bolsa conduzida por Paul Ehrenfest, cruzando-se também com Albert Einstein que foi convidado a dar aulas na mesma universidade. Após o seu doutoramento, Fermi lecciona Matemática em diversas universidades de Itália como Florença e Cagliari. Regressa a Roma onde se torna a principal figura de um grupo de jovens cientistas denominado por “Rapazes da via Panisperna” (I ragazzi di Via Panisperna), nome associado à rua onde ficava o Instituto de Física da Universidade de Roma La Sapienza e cujos membros possuíam alcunhas alusivas à sua personalidade e postura. O grupo teve como mentor o director do Instituto de Física, Orso Mario Corbino (cuja alcunha era “Deus todo-o-poderoso”) e, para além de Fermi (“O Papa”), faziam parte deste grupo Edoardo Amaldi (“Rapazinho”), Bruno Pontecorvo (“Cachorro”), Franco Rasetti (“Cardeal Vicario”), Emilio Gino Segrè (“Basilisco”), Oscar D’Agostino (o único químico do grupo), e ainda Ettore Majorana (“O Grande Inquisidor”), um dos físicos teóricos mais promissores da época, responsável pelos trabalhos teóricos notáveis sobre o neutrino e que viria a desaparecer misteriosamente em 1938. O ambiente neste grupo era bastante agradável feito de partidas uns com os outros e de grande animação, mas a genialidade de Majorana, que sempre fora reconhecida por Fermi, muitas vezes criava atrito entre ambos. Este grupo de cientistas realizaram a famosa descoberta dos neutrões lentos, que viria a ser uma das mais importantes descobertas da Física nuclear. A história destes rapazes originou em 1988 um filme intitulado com o nome do grupo, realizado por Gianni Amelio.
É também no seu regresso a Roma que Fermi conhece e casa-se com Laura Capon, uma estudante da Universidade. Numa altura em que o fascismo imperava na Itália, Fermi ter-se-ia filiado no partido fascista em 1929 e apontado nessa mesma altura como membro da Real Academia de Itália pelo próprio Benito Mussolini. Porém, as leis raciais impostas em 1938, que se assemelhavam às da Alemanha Nazi, forçaram Fermi a abandonar o país partindo com a sua mulher, judia, e com os seus filhos para o estrangeiro. Essa mesma lei acabaria também por condicionar boa parte do seu grupo de laboratório e Fermi não teria outra alternativa senão abandonar Itália. É também nesse mesmo ano que a Real Academia Sueca reconhece o trabalho conduzido por Fermi e lhe atribui o Prémio Nobel da Física, “pela demonstração da existência de novos elementos radioativos produzidos pelo bombardemento de diversos elementos como neutrões, e pela descoberta de reações nucleares provocadas por neutrões lentos”.
Imediatamente após receber o Prémio Nobel, Fermi e a sua família mudam-se para os Estados Unidos da América e chegam a Nova Iorque em Janeiro de 1939. Com várias propostas na mesa, aceita a posição de Professor na Universidade de Columbia, nessa mesma cidade, onde já estivera como professor convidado no Verão de 1936. Ainda a aprender o inglês, Fermi começa a dar continuidade ao trabalho desenvolvido pelos “Rapazes da Via Panisperna” em Roma. Numa altura em que já se equacionava o desenvolvimento da bomba atómica, que ainda iria precisar de uma investigação profunda para que se conseguisse tal feito, Fermi começa por trabalhar com os físicos Leo Szilard, John von Neumann, Edward Teller e Hans Bethe. Embora ainda como estranhos rivais, Fermi e Szilard planearam o primeiro reactor nuclear na Universidade de Columbia. Para tal iriam necessitar de um grelha de hastes de urânio mergulhadas em blocos de grafite (a grafite serve de moderador, reduzindo a velocidade dos neutrões de forma a tornar a reacção mais propensa). O plano consistia também em utilizar hastes de cádmio como forma de controlar a absorção de neutrões, o que permitira assim controlar a reacção em cadeia. Tendo como fonte o urânio, um dos produtos deste reactor viria a ser o plutónio, um outro elemento químico radioactivo descoberto em 1940 por um grupo de cientistas na Califórnia, e cuja sua obtenção viria a ser determinante no fabrico de armas nucleares.
Em 1942, o trabalho fora transferido para a Universidade de Chicago numa altura em que o Projecto Manhattan, dirigido por J. Robert Oppenheimer, e que tinha como principal foco o desenvolvimento da bomba atómica já estaria a decorrer. Em Chicago, Fermi e a sua equipa, que já estavam dentro do projecto, tinham acesso a mais recursos para a execução do reactor bem como também um departamento de Física forte e uma localização mais viável para a sua construção. Estava assim tudo pronto para aquele que viria a ser o primeiro reactor nuclear. Em Novembro desse mesmo ano Fermi baptizou o reactor apenas e só com o nome “pilha”, o famoso Chicago Pile-1. Apesar de banal, este seria o título da sua maior invenção e que impulsionaria a era nuclear que estava prestes a chegar. A sua execução viria a ter como supervisor Arthur Compton, Prémio Nobel da Física de 1927 e um dos físicos com maior conhecimento em radiação e física nuclear da época. Em Dezembro, dar-se-ia início à primeira reação nuclear artificial autossustentada no Chicago Pile-1, com uma duração de cerca de 28 minutos, o que viria a ser algo absolutamente revolucionário. Em Fevereiro de 1943 fora construído um segundo reactor nuclear no Laboratório Nacional de Oak Ridge, em Tennessee, como resultado do sucesso da “pilha” de Fermi. Este reactor viria a ser denominado por X-10 Graphite Reactor e seria o primeiro a operar em contínuo, o que permitiria obter plutónio em quantidades consideráveis.
Parte para Los Alamos, Novo México, a convite do próprio Oppenheimer em 1944, tornando-se desta forma numa peça chave para o desenvolvimento da bomba atómica. O seu sucesso com o reactor nuclear e a sua enorme polivalência enquanto físico viriam a ser determinantes para o seu fabrico. O projecto contou com os mais reputados físicos de vários países na construção daquela que viria a ser a arma mais letal alguma vez conseguida e que poderia arrasar com qualquer cidade. O trabalho árduo e o fascínio destes cientistas foi determinante para a invenção de uma bomba que viria mudar a nossa forma de ver o mundo, com a assustadora possibilidade do ser humano se conseguir auto-destruir a si e àquilo que o rodeia. Após o sucesso da Trinity em Julho de 1945, o primeiro ensaio bem-sucedido de uma bomba atómica, duas outras bombas arrasariam com Nagasaki e Hiroshima no mês seguinte, uma medida tomada pelos Estados Unidos para a rendição forçada do Japão, o único país do Eixo que ainda não se tinha rendido. O projecto chegaria ao fim após o sucesso do seu produto final, e Fermi, tal como boa parte dos outros cientistas envolvidos, regressaria à sua vida de cientista e de professor que tivera antes de ter partido para Los Alamos.
Fermi regressa a Chicago e dedica-se a trabalhos na área da Física de partículas, uma área em grande ascendência em meados do século XX. Desenvolve também um trabalho notável sobre a origem da radiação cósmica, algo que transcenderia para outro campo da Física que ainda não tivera explorado, a astrofísica. Em 1949, quando se debatia o fabrico da Bomba-H (Bomba de Hidrogénio), como reposta ao teste soviético de uma bomba nuclear nesse mesmo ano, que conseguiria ser milhares de vezes mais potente do que a Bomba Atómica, Fermi foi um dos cientistas que se opusera à sua construção. Apesar de ter dado um enorme contributo quer através dos seus trabalhos teóricos quer experimentais, o próprio considerou que na prática esta seria uma arma genocida, que poderia ter efeitos absolutamente avassaladores para o mundo. Durante a época da “caça às bruxas”, na qual Oppenheimer fora acusado de traição à pátria americana e de ter concedido informações aos soviéticos, Fermi fez parte do grupo de cientistas que testemunhou em sua defesa. Continuou ainda a sua carreira de professor de Física dando aulas e fazendo investigação até aos seus últimos dias de vida.
Enrico Fermi viria a falecer aos 53 anos em Chicago, a 28 de Novembro de 1954, após uma tentativa de operação ao estômago devido a um cancro provavelmente causado pela exposição a materiais radioactivos, com os quais trabalhou ao longo da sua carreira de investigação. O seu nome permanece inerente à Física nos mais diversos conceitos: Fermião, Gás de Fermi, Energia/Nível de Fermi, Superfície de Fermi, entre outros tantos alusivos ao seu nome, fazem parte do vocabulário de quem trabalha nas mais variadas áreas da Física e também da Química. Para além disso, o elemento químico de número atómico 100, obtido através de reacções nucleares em 1955, foi baptizado em sua honra: o Férmio. Fermi teve assim a arte e o engenheiro de conjugar teoria e experimentação, num século revolucionário para as duas vertentes da Física. Apesar de estar fortemente associado à era nuclear, algo que sempre tivera uma conotação negativa devido ao armamento que esta originou, Fermi foi um gigante da Física que continua a inspirar quem nela trabalha, tendo vários outros gigantes aos seus ombros, permanecendo eterno no universo da ciência.