Ensaio. Eça, Tordo, Saramago e revoluções verbais
Outrora, a palavra pertenceu ao paço real e ao púlpito, a poetas e a profetas. Ao povo não cabia fazer o idioma, nem o povo cabia nos esquemas dos fazedores, que não iam às rudes linguajares deles, mas às límpidas linfas grega e latina, cunhando neologismos cultos e canhando regionalismos e plebeísmos para os confins da norma culta. Cultuavam latinismos, se não latinório, pois iam encantar o ouvido duma audiência cristã, embora inscientemente idolatrassem Peithó, a deusa da eloquência. O “comunicar com a audiência” não levantava o fedor putrefacto duma metáfora morta, não havia o moderno indivíduo folheando páginas num quarto, sozinho, silencioso e sorumbático como que fechado na casa-de-banho com obstipação. O factor vivíssimo duma audiência era o audire (Latim, que mais?, para “ouvir”) dum público atento. A palavra existia da boca para o ouvido, e era bom.
Não se tratava de oralidade, nem da oximorónica literatura oral que aquece o coração dos populistas, pois a sociedade não era só quirográfica, mas tipográfica. Tratava-se de oratória e da arte que a produz, retórica. Era estranhamente democrática, pois povo e príncipe, igualmente analfabetos, ouviam um e outro com a mesma facilidade à pregação do padre.
A palavra nascia da escrita, mas não ficava presa no solo preto da tinta como raízes, pegava fogo nas chamas da dicção, elevava-se como um espírito e elevava o espírito dos outros, comovendo e condenando, instruindo e divertindo, petitando e persuadindo. Desde a invenção da retórica, durante dois mil anos a oratória não mudou muito, para começar porque os mestres e manuais de bem escrever também não. A Retórica de Aristóteles contou pouco porque indisponível até ao século XIII, mas havia Quintiliano, Cícero e o Ad Herennium, erroneamente atribuído a Cícero, o Cícero afectuosamente tratado por Marco Túlio pelos comentadores medievais e renascentistas, como se fosse um amigo íntimo, como se Cícero fosse o cicerone mais fiável num mundo em que o saber falar em público e cativar o auditório poderia melhorar a condição social do orador.
O segredo da eloquência é que não há fórmula exacta. Pompa ou pudor, descrição ou discrição, brevidade ou prolixidade, naturalidade ou artificialidade, até hoje tudo foi eficiente. Contudo, a retórica mostrou-se vulnerável desde cedo ao vistoso. Na embaixada a Atenas, reza a lenda que Górgias embasbacou os gregos com estruturas paralelas que imbuíam ao discurso uma aura musical. Apesar de Aristóteles o ter escoriado na Retórica, o excesso tornou-se a forma natural da eloquência. Habituámo-nos a equacionar “clássico” com as virtudes da clareza, da naturalidade, da concinidade entre forma e conteúdo, mas isso é porque ninguém lê os clássicos no original. Apuleio escrevia num Latim tão amaneirado e bombástico (Gilbert Highet comparou-o a Proust), que os antigos lhe chamaram ao estilo tumor africanus. Empregando homeoteleutos nos sermões, Santo Agostinho compunha prosa rimada. Popular no Renascimento, prosa rimada foi usada por Antonio de Guevara e por John Lyly, que além disso não se sentia realizado se não largasse pelo menos uma aliteração em cada frase. Rabelais adorava listas descomunais e trocadilhos multilingues. Assonâncias, antanáclases, epânodos, não havia limites para o lundum entre o Logos e a língua.
A parte mistificante, à mente moderna, é que as audiências deles adoravam estas extravagâncias. Na corte isabelina, aias recitavam de cor os trechos mais amorosos de Euphues: The Anatomy of Wit, tão bestselleroso que Lyly se apressou a lançar a sequela. Igrejas enchiam-se para ouvir o Padre António Vieira, um dos principais passatempos lisboetas de todas as classes sociais na primeira metade do Seiscentos.
Mas agora temos leitores, e o olho do leitor é o olho dum náufrago à procura duma ilha, seja a de São Brandão, seja de canibais, desde que pise terra firme. Mais preguiçoso e pragmático do que o ouvido, o olho desce de linha em linha, buscando, acumulando informação, passando em frente sem cuidar, como Santo Agostinho e Lyly, da utilidade duma paronomásia para imprimir com força uma ideia na mente do ouvinte. O orador não tem segunda chance e segundos é só o que tem, ainda que os segundos das sete horas de Fidel Castro, comparado com o texto eternamente impresso, dando ao olho todo o tempo do mundo para reler, saltar, recuar, pausar, fechar as capas, ir almoçar, voltar, ziguezaguear à procura do mínimo para completar o TPC.
Esse cérebro moderno dizem os entendidos que se começou a formar por volta do Seiscentos, por razões várias: ascensão das línguas vernáculas, divulgação do número indo-arábico, subida da literacia, mudanças curriculares, novos métodos pedagógicos, a incipiência do método científico. Até então, educação era recitação do mestre para o aluno, alta em teor mnemónico, baixa em empirismo. Mas, apesar de tudo, mudanças de paradigma lavram devagar os óbitos de hábitos, por isso Descartes ajudou a dizimar os docentes discursivos através dum “discurso” sobre o método que em breve contribuiria para transformar ouvintes em leitores. Em vez de debitar, o professor passou a mostrar bonecos nas aulas. O PowerPoint não é de agora, antes chamava-se coordenadas cartesianas. Diagramas, setas, tabelas, gráficos, percentagens, números, ilustrações – a educação converteu-se em informação visual ministrada ao olho o mais rápida e directamente possível; consequentemente, a escrita resumiu-se a resumos didácticos, factos enfiados em fatos esfiapados em vez das togas púrpuras doutrora, sem nada de artístico ou memorável. Mas o objectivo não era ser memorável, a memória podia mandriar na dimensão do eternamente impresso. O objectivo era ser útil: “Não é nas coisas extraordinárias e bizarras que se encontra a excelência de qualquer género que seja”, sentenciou Pascal. “Para a alcançar, levantamo-nos: a maior parte das vezes, devemos baixar-nos. Os melhores livros são aqueles que quem os lê crê poderia ser seu autor. A natureza, que é a única a ser boa, é muito familiar e comum.” O romance foi o saldo positivo deste sismo que soterrou um sistema em serviço durante dois mil anos. Em meados do Setecentos, um francês ou inglês podia ler A Princesa de Clèves ou Robinson Crusoe num idioma aproximado da fala, além do riquíssimo teatro.
Todavia, em Portugal, cujo processo de paridade entre fala e literatura emperrou até tarde devido à fortaleza de fé e fanatismo que fechava o país à Europa iluminada, nem romance nem teatro; a perseguição da Igreja e da Inquisição à ficção frustrou a sua florescência, mantendo a fala na órbita da oratória, sem contar que a demora da criação duma classe burguesa com lazer para ler por entretém obrigou o literato a depender duma elite palaciana desligada da ruela e da viela. Havia dois idiomas de costas voltadas para castas diferentes, um puramente sacro-literário, outro inaudivelmente quotidiano, que não se cruzavam nem conheciam.
Por entre tacteios e tenteios, e finda a Guerra Civil em 1834 com a vitória da liberdade de imprensa e o fim da censura, a ficção em prosa vibra enfim, mas os resultados expõem uma queixa insolúvel: “prosa fradesca”. Tão interiorizada a sintaxe do sermão, que pelos vistos nem o jornalismo se desembaraçara dela nem exonerara o idioma de funções hieráticas. Muito exagero havia nesta queixa, mas como é a percepção e não a prova que propele o espírito, o Oitocentos arranjou um inimigo, uma causa, um alvo, um foco das forças da modernização: extirpar o estilo da Vulgata da mente do vulgo. Por volta de 1878, o crítico portuense Silva Pinto zombava que o criado era “mui lido em prosa de frades”, sugerindo que, se o hábito não faz o monge, o hábito de os ler não fazia as delícias senão dos tolos. Enquanto insulto, era irrespondível. Em 1865, Antero de Quental espalhou pesticida sobre o quintal de anterologia donde brotavam mais fradismos, espalhando que António Feliciano de Castilho fazia “prosas imitadas das algaravias místicas de frades estonteados”. Era mais difícil recuperar deste golpe do que duma acusação provada de andar a trair a pátria aos espanhóis.
A par e passo com a pacificação do parágrafo curto e escorreito, havia outra reforma estilística, contraproducente, desencadeada pelos poetas da Arcádia Lusitana, fundada em 1756 com o bipolar propósito de, por um lado, simplificar o idioma, por outro travar o galicismo. Para os árcades, o Português estava em acentuada decadência por causa da poesia anterior, gongórica, palavrosa, obscura, e por causa da invasão de termos franceses. Paradoxalmente, apesar de o quererem simplificar, almejavam restaurar-lhe as feições originais tendo por matriz o sacrossanto Quinhentos, que por nebulosa razão todos nos próximos dois séculos julgariam ser o século em que o Português foi mais puro, lídimo, castiço, “português”. O pobre do Castilho foi tanto vítima quanto perpetrador desse mito. Isto não augurou nada de bom, pois durante o Oitocentos o “bem escrever” foi praticamente sinónimo com o seguir preceitos gramaticais, sintácticos e lexicais arcaicos abonados por peritos em discutíveis “clássicos” que ninguém lia senão por obrigação, o que efectivamente gerava textos indistinguíveis da temível prosa fradesca. Pelo Novecentos afora ainda se há-de ouvir a súplica da reforma. “A nossa literatura clássica é intragável: é o produto, com raras excepções, de frades babosos e místicos que se não podem ler de fio a pavio”, lamentou Raul Brandão nas Memórias.
Tirando o venerável Almeida Garrett, e Júlio Dinis, foi Eça de Queiroz quem primeiro entendeu que o pastiche era deletério e estava na hora de ser deletado. Em vez de imitar os dramalhões históricos em redor, simulações empalhadas dum imaginário Português quinhentista, situou os romances no presente e pôs as personagens a falar como falariam se fossem reais, fechando por fim o fosso com o pensamento de Pascal.
Rapidamente, a actualização idiomática foi assinalada por muitos. Numa carta ao editor António Maria Pereira, Camilo profetizou que O Mistério da Estrada de Sintra ficaria “assinalado no desenvolvimento das belas coisas que estavam embrionárias no vocabulário marasmado durante dois séculos. Ramalho Ortigão avisadamente andou mandando os clássicos a ares, e o Eça também não andou mal não os admitindo em casa.” Elogio tanto mais valioso porquanto os ferozes apoiantes de Eça o ergueriam à custa de rebaixarem o vernáculo, rebarbativo Camilo, que encabeçava a quadrilha dos retoricões que mantinham intacta a prosa fradesca.
Contudo, as novidades não encontraram menos resistência no seio dos mais novos e mais modernos. Camilo divertiu-se por Guerra Junqueira acoimar Eça de “escasso na prosódia”, ínscio de que o objectivo era esse. Em 1878, a recensão ao Primo Basílio terminou com este senão: “Infelizmente Eça de Queiroz não conhece ainda todos os recursos brilhantes de que pode dispor, manejada por um espírito moderno, a antiga língua portuguesa. Às vezes a sua ideia rebenta o invólucro que a contém.” Ah, se as grandes ideias dele fossem acompanhadas por léxico à altura! “Faz lembrar um gigante com um casaco muito apertado que, estoirando de súbito, deixasse ver, juntamente com a camisa, uma musculatura poderosa. Ora na língua portuguesa ainda há o pano necessário para talhar um fato completo pela medida de Sansão.” Igualmente, Antero, muito à Castilho, pôs o dedo na ferida do “admirável” estilo: “O seu estilo, à parte alguma incorrecção e uma certa pobreza de vocabulário (V. nunca quis ler os clássicos!)”, até era bom.
De que clássicos se tratariam, descontando os de prosa fradesca publicamente ostracizados, ninguém tinha pressa em esclarecer. Em 1871, Augusto Soromenho duvidava de que houvesse sequer clássicos portugueses, exceptuando Os Lusíadas. Pouco haveria de proveitoso a um romancista, se concebermos um romancista no tempo de Eça como um engenheiro ocupado em construir uma ponte entre o falado e o literário. Os sermões de Vieira eram um estorvo; da Feira dos Anexins de D. Francisco Manuel de Melo teria fugido a sete pés, por qualquer um dos sete mares, até chegar a uma das sete partidas do mundo onde pudesse pintar os sete em vez cultuar as setes musas clássicas. A hombridade de Herculano merecia-lhe hossanas, mas não o romance histórico. Alma gémea só Garrett, embora a alma, gélida nos elogios, tenha passado em silêncio sobre o maior dos predecessores. Processualmente, o desdém dos clássicos estava em linha com o tirocínio dum romancista. Num belo ensaio, The Rise of the Novel, Ian Watt cita abundantemente a sanha de Samuel Richardson e Daniel Defoe contra os clássicos, das epopeias em verso à ficção narrativa anterior ao romance realista, cientes de que estavam a fundar um género novo sem laços com o passado. Na correspondência de Eça, não faltam menções jocosas, cépticas, blasés aos clássicos como coisas levianas e inúteis. Numa carta-aberta que enviou à Ilustração quando faleceu o ídolo da juventude, Victor Hugo, gozou que o encontro com os “clássicos” era coisa para se dar aos vinte anos, “ao entrar para uma universidade, no começo duma carreira de letras”, abrindo-os aqui e além e “percorrendo distraidamente algum episódio mais famoso”. Voltava-se a “encontrar o grande poema ou o grande drama mais tarde, numa sala, sobre a mesa, com ilustrações dum Doré”. Eram, “a não ser para os comentadores, ou para espíritos requintadamente literários – volumes decorativos.”
Embora seja mais confortante ao professor de liceu pensar que isto fosse pose, e apesar de Eça revelar indirectamente familiaridade com os clássicos, a desagradável verdade é que o dever do escritor não é manter a literatura viva – é manter a linguagem viva. O problema que ele herdou foi como transformar uma língua estagnada num instrumento preciso como um bisturi, maleável como um contorcionista, fluido como um gato, que permitisse reflectir as nuances e cambiantes do mundo moderno, arejá-lo dum dicionário dentro dum relicário fechado a sete chaves apodrecendo no porão duma nau afundada na barra do Tejo, plantar uns postes de iluminação a gás por ele afora, macadamizá-lo até ao cruzamento com o caminho-de-ferro, reconstruir um idioma que praticamente não fora usado para dizer nada que não se referisse ao século XVI. Nada menos do que operar a maior revolução no Português até hoje.
Tão chocados ficaram os contemporâneos que até proclamaram que ele escrevia mal. Sampaio Bruno apontava o quanto havia de “incorrecto” no discurso dele, salientando que “a pureza do seu dizer” não estava entre os dons dele. Machado de Assis terminou uma demolidora resenha ao Primo Basílio confiante de que a “herança de Garrett” não seria depreciada em Portugal. Mariano Pina, numa das mais ciclotímicas resenhas da vida de Eça, depois de cobrir A Relíquia de festões, veio atrás com um fósforo e pegou-lhes fogo. Adivinhando que os “gramáticos” e “sábios retóricos de liceus e de academias” o considerariam “um mísero atoleiro de erros de gramática, vírgulas que não estão no seu lugar, e expressões, e estrangeirices que ainda não foram, nem nunca hão-de ser confirmadas” pelas dicionarísticas sumidades, a Pina não passou pela glândula pineal peguilhar. Valha a verdade, o verbo de Eça era mauzinho. “Que importa isso! A Gramática é certamente a mais circunspecta das invenções,” respondeu cheio de razão.
O espectro do solecismo voltou para assombrar Os Maias. Um tal de Carlos Valbom tê-lo-á acusado de “escrever à francesa, e com galicismos que o arrepiam”. Novamente respondeu Pina com um sim senhor. Mas não importava a contagem de erros, porque no fundo o derradeiro teste é que Eça, com “romances cheios de erros de gramática e de erros de sintaxe, comove e domina o público”, e os alunos, “livres de jugo retórico e académico”, decerto prefeririam aos manuais dos professores a linguagem eciana, “tão sonora, tão pitoresca e tão bela, que tem ferido todas as notas da alma humana”. Confesso que hesitei em transcrever esta passagem, não quero dar munições à Seita do Simplismo encastelada no Ministério da Educação que, sob pretexto de facilitar (“Mas os miúdos gostam!”), ensina lixo em vez dos lauréis da literatura. Mas Pina não estava a advogar a facilidade enquanto virtude, estava a explanar aos últimos abencerragens do vernaculismo o que cada vez mais se tornava aparente: que o Ecianês era um conseguimento artístico de superior qualidade, um processo imparável e irreversível na marcha da maioridade do Português, e quanto mais depressa se rendessem a ele menos doloroso.
Quando morreu, o obituário de D. Maria Amália Vaz de Carvalho foi afinal o dobre por todos os romancistas anteriores a Eça, pois as razões por que o elogiava eram as razões por que seria imortal e o mais imitado mas nunca superado estilista da língua: “Isto não é português! – exclamavam raivosos. Português para eles era uma coisa arrebicada, precisa, contorcida, quando não era empertigada, hirta, inteiriça e roçagante, em que se não podia tocar, mas de quem todos os leitores acabariam por fugir”. Recusando imitar os alfarrábios, ele “transformou a língua na mais deliciosa música, quebrando-lhe os períodos, quebrando-lhe os períodos pomposos, desarticulando-lhe os membros pesados, aligeirando-lhe a ostentosa marcha, fazendo-a leve, espumante, transparente, luminosa, viva, cantante, rica de modulações melancólicas e de risadas argentinas, criando nela o instrumento maravilhoso e único na sua mão de humorista, movendo-a em esgares convulsivos, fazendo-a sorrir como uma parisiense elegante, fazendo-a chorar, daquela tristeza tão moderna, que, de si própria, parece estar escarnecendo, enquanto chora!”
Eça, ao marimbar-se para o gramaticão (“Gramaticões – eis outro flagelo da Linguagem, e dos mais feios em verdade”, suspirou Afonso Lopes Vieira), cumpriu uma das ambições do século XIX: a criação dum estilo pessoal. Em tempos, Stendhal gabou-se de despachar A Cartuxa de Parma em 52 dias. Mas começando com Flaubert, o “monge das letras”, no epíteto de Eça, a escrita tornou-se um problema. A questão não era, “Como se escreve um romance?”, mas, “É um romance escrevível sequer?” Que significa terminar uma frase? Como avaliar se está completa? E o parágrafo? Que é ponto de vista? Quanta presença deve ter o narrador? Flaubert passou cinco anos a compor Madame Bovary milimetricamente, registando o tortuoso processo de rescrita, e quando terminou havia um novo mito: o escritor que vive a escrita como uma religião, monástico de facto, um ermita isolado do ruído mundano, devotando à mot juste a prece da perfeição.
Anthony Burgess, tão prolixo, defensivamente disse certa vez que “ser prolífico só é pecado desde o grupo Bloomsbury”. Não se trata de dizer que um método obtém melhores resultados do que o outro; mas antes de Flaubert a produtividade não parecia desleixo. É a partir deste marco que nasce a fábula modernista do obsessivo romancista que deixa uma minúscula obra refeita até à morte. É Joyce passando a I Guerra Mundial às voltas com Ulisses, é Proust perseguindo um livro único, o interminável e interminado Tempo Perdido. Eça passou dez anos a acrisolar Os Maias, decerto até à data o romance português por mais tempo em gestação. Antes dele, longos intervalos eram invulgares. Em 1884, Pina observou, “Um dos muitos pontos de afinidade de Eça de Queiroz com Flaubert, é o tempo que ele consome na construção dum romance. Eça de Queiroz é imensamente espontâneo, trabalha todos os dias, mas só apresenta um livro de anos a anos.” Não havia título novo desde 1878, tirando a novela O Mandarim; A Relíquia só ocuparia escaparates daí a três anos. Para uma minoria, ser escritor tornou-se sobretudo uma questão de possuir estilo próprio, voz própria, linguagem própria, o que não quer necessariamente dizer algo espalhafatoso. Por exemplo, José Régio bateu-se por uma linguagem ática, simples, invisível, muitas vezes criticando Eça por desmedida atenção ao estilo em detrimento doutros aspectos do romance, especialmente da psicologia das personagens; mas em 1928 mostrou a Álvaro Ribeiro provas do que só seis anos mais tarde seria impresso como Jogo da Cabra Cega. O work in progress de Uma Gota de Sangue andou saindo na imprensa uma década antes do livro. Régio, entocado em Portalegre, escarninho do mundanismo do Chiado, exemplarmente personificou esse monástico modo de estar na literatura.
Dantes acreditava-se que as propriedades do próprio Português o tornavam impróprio à mestria do romance. O idioma, moldado pela alma inatamente lírica do lusitano, adequava-se apenas a poemas, por sinal do tipo mais piegas possível. Esta condenação rácica era partilhada até pelo romancista mais popular da época. “Confessemos todos, em voz alta, uma dolorosa verdade. Nós, os portugueses, não nos ajeitamos com o romance”, sentenciou Camilo. A revolução verbal de Eça é irrepetível e insuperável porque parte dum mal-estar psicológico inédito que ele praticamente sozinho curou à custa de reconstruir o Português enquanto idioma adequado a romances de nível internacional, isto é, os dele. Em 1926, o espanhol Gaziel (pseudónimo de Agustí Calvet), chamava-lhe “o primeiro novelista peninsular do século XIX.” O romance espanhol dos séculos XIX e XX não teria ninguém “que supere nem sequer iguale a Eça de Queiroz, na suprema graça da expressão, no equilíbrio maravilhoso da força plástica com a fantasia e a perfeição da forma, tão viva, tão pessoal e ao mesmo tempo tão cheia de naturalidade, alheia a todo o prurido casticista, linguagem de criador, estilo de renovador do idioma literário.” É interessante o constante destaque dado ao que ele fazia com palavras, e não às ideias, enredos, personagens. Quanto mais próximos da vida de Eça os elogios, mais intensamente se sente esta prioridade, é a base de tudo. Um escritor sem fé no próprio idioma nunca conseguirá insuflar em ideias, enredos, personagens a vitalidade que as torna aliciantes. Eça seria, “não só um dos maiores escritores ibéricos do século XIX, senão também um dos exemplares de escritor mais típicos de todos os povos e de todos os tempos.” Para Gaziel, lê-se nas entrelinhas, Eça teria mostrado aos espanhóis que eles próprios podiam sonhar com os grandes romances que não tinham desde Dom Quixote. Idêntica injecção de autoconfiança terá dado ao Brasil, segundo o estudioso João Cezar de Castro Rocha. Em Machado De Assis. Por Uma Poética Da Emulação, conta-nos que os romances de Eça chegaram ao Brasil rodeados das acoladas exclusivamente dispensadas a romances noutros idiomas: pela primeira vez um escritor de língua portuguesa mostrara que a periferia podia competir em mérito artístico com as metrópoles europeias, do que até então nem Machado, em situação análoga à de Camilo, conseguira convencer os compatriotas. Quarenta e seis anos depois do encontro com o Brasil, Oswald de Andrade publicou o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, onde afirmou: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.” Não é que Eça o teria subscrito, é que não teria havido manifesto sequer se a geração modernista não fora incubada no calor do optimismo verbal que ele soltou sobre o Brasil, culminando no “Manifesto Antropófago” (1928), em que Oswald, tal como Eça cortou com o passado fradesco, cortou com a literatura portuguesa para que a brasileira pudesse trilhar caminho próprio, esquecendo a tal herança de Garrett tão cara ainda a Machado. Em meio século, a revolução de Eça abarcava dois continentes. Depois dele, os escritores de língua portuguesa podiam enfim acreditar que tinham um idioma não só capaz de fazer tudo, como de galgar fronteiras e rivalizar com os dos centros culturais.
Ironicamente, os descendentes de Eça usufruem dum renome internacional que para ele continua muito aquém do merecido. Isso é fatal na nossa era mediática em que é qualidade quantidade, vitória visibilidade e glória ganhos. Há enormidades proferidas em efemérides que se desculpam porque é da natureza delas. Perdão merecem os que no funeral de Guerra Junqueiro o proclamaram maior do que Camões, foi apenas a emoção. Mas provém duma mundividência (mundo de dividendos?) naturalizada mas perigosa o que, num encontro de quatro “herdeiros” de José Saramago, como está na moda chamá-los, na Livraria Lello para queimarem incenso e fazerem sacrifícios ao orago da capela, levou João Tordo, um dos prelados, a preleccionar que “há um antes e um depois de José Saramago. Dantes dizia-se que havia um antes e depois de Eça de Queiroz. Eu acho o Eça, claro, um grande escritor, mas não tem aquilo que Saramago tem, não tem uma voz que é completamente inconfundível, em qualquer século, em qualquer livraria, em qualquer país.” Trocando por miúdos: “Nesse sentido, Saramago é o grande revolucionário da língua portuguesa”. (29:30) Na Lello, por muitos anos a editora de Eça, depois de ter comprado os direitos aos editores Jules Genelioux e Mathieu Lugan.
Simpatizo com a persona pública de Tordo, aquela postura escritural que nunca deixa de acentuar que escrever é dedicação, fruto de vontade. Sim, é “o lado do ofício, silencioso, ruminante, privado e muito íntimo acho é o que mais me fascina em Saramago, porque esse é o ofício dum escritor.” (28:55) Não lhe falem de talento, génio, inspiração, fantasmas românticos. O que há é trabalho, suor e surro, paciência, rotina, rascunhos, remorsos, resmas rasgadas, recomeçar de raiz, rescrita. Não me importava de ser analfabeto para assinar de cruz. Mas oxalá o conceito de ofício dele incluísse aulas de história, talvez aprendesse que essa idolatria do ofício que nos irmaniza é uma invenção de Eça.
As aulas começariam por suprir o desconhecimento dos coetâneos de Eça: Tordo, amarrado e de pálpebras presas por pinças como Alex em Uma Laranja Mecânica, seria obrigado a ler dum ecrã uma indigesta selecção: O Céptico, que fez Camilo descrer na capacidade de os portugueses para o romance; Mário; O Brasileiro Soares; O Senhor Deputado; A divorciada; O Salústio Nogueira. Depressa aprenderia que, ao contrário do que pensa, não escreve em Português, mas em Eciânes, só que o Eciânes foi uma tão eficiente tecnologia que se tornou a língua que tomamos por garantida, tão imitada que já ninguém se lembra de que foi preciso criá-la primeiro.
A avaliação duma revolução verbal deve necessariamente partir dum conhecimento das mudanças do idioma ao longo da história do seu uso, e caritativamente me perdoarão o cepticismo de que o sr. Tordo possua bagagem para tal viagem. Não quero dar uma daqueles escritores bolorentos que andam sempre a ralhar que os novíssimos não têm leituras nenhumas; sou uma criatura bem mais sinistra: nove anos mais novo. Mas não serei o único que, ao longo dos anos, se tem exasperado com a leviandade dele a respeito de quanto concerne história literária. Houve a vez em que falou duma recuada Idade de Ouro em que “os escritores tinham a benesse de não ter de competir com a porcaria toda que se anda a vender”, embora no primeiro quartel do s. XX esse fosse um dos tópicos centrais do Chiado. Houve o epigramático assassínio da literatura anterior a ele: “Houve um tempo em que escrever era chorar.” Nesse plangente antanho, “os escritores eram mais conscientes de uma realidade política e tinham uma missão quase obrigatória de escrever o que sucedia em seus países.” Não é forte o acúmen comparatista dele, porque isso é desmentido por leituras de americanos, ingleses, franceses, alemães, latino-americanos, brasileiros. Faulkner escrevia acerca do quê senão o sul americano onde nasceu? Que foi O Tambor senão a maneira de Günter Grass enfrentar a história alemã recente? Que obcecou Alejo Carpentier senão o destino de Cuba? Qual o assunto de Jorge Amado, Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa senão o Brasil, o Brasil, o Brasil? Mas acreditar no escritor, não só apolítico, mas apátrida, faz parte do mundo dos dividendos.
Para o caso em mãos, o cifrante que deslinda o mistério Tordo, houve a vez, insensivelmente gravada no episódio dos Herdeiros de Saramago, em que admitiu que ia participar num colóquio sobre Sophia de Mello Breyner, “sobre a qual sei quase nada.” (15:40) (O ofício ruminante, privado e muito íntimo de Tordo.) Borges disse certa vez que a maior aspiração dum livro é o anonimato: que um livro fosse tão universalmente conhecido ao ponto de se tornar um mito da humanidade, esquecida a autoria. É uma visão bela, mas o nosso tempo inclina-se mais para a confusão da fama com glória.
O desconhecimento de Tordo não é pior do que em tanto escritor da mesma idade e mais novo. Nove novos em dez comportam-se como naves extraterrestres que acabaram de aterrar num manto de neve, não vendo à volta nada senão o vazio. Destituída de quaisquer referências como cidades destruídas numa guerra, a maioria tem o bom senso de não afectar um conhecimento de história que não possui. Mas Tordo, por pulsão competitiva que tanto lhe aprecio, não resiste à constante comparação com os antepassados. Não para melhor entender o lugar numa tradição, ainda que seja para a rejeitar, como está no seu direito, com o tom enfastiado de quem a suplantou (até nisso é eciano). É tão-só o mais honesto dos contemporâneos. Vagos visitantes, de vendas tapando a mente a outros valores que não o valor do dinheiro, e na mente apenas vendas exorbitantes, para eles a glória não é a projecção na posteridade, metafísica que não paga contas; a glória é vender, e o que ajuda a vender é serem vistos em eventos, e possam os ventos largá-los em vantajosos destinos. Percebem de entreajuda comercial, e se a marca Saramago os valorizou, convém valorizar a marca Saramago. Se o escritor actual só entende o triunfo da tradução e se o top de vendas é o único indicador tangível em que a sua astúcia materialista acredita, daí orar na capela do santo que personifica o romancista que se deu bem no cobiçado Lá-Fora. Enfezado Eça, quanto vale ele se em congressos internacionais nunca se sentou ao lado de Gabriel García Márquez? Ser grande é ser visto, e ninguém foi mais visto do que Saramago, nem há estilo mais vistoso do que o dele.
Por isso me é tão suspeitosa a admiração dele pelo ofício ruminante, privado e muito íntimo. Claro, não é impossível admirar o que não pratica, pois em quinze anos já vai em treze romances o autor que há tempos dizia tirar três meses no Verão para fazer um livro, e deduzo empiricamente que passe os outros nove a promovê-lo em redes sociais, rádio, televisão, revistas, jornais, escolas, livrarias, colóquios, festivais. Em quinze anos, digamos entre 1873 e 1888, Eça publicou somente O Crime do Padre Amaro (2 vezes refeito), O Primo Basílio, O Mandarim, A Relíquia (“três vezes a refundiu, três vezes a emendou para, afinal, vir a dar uma só”, contou António Nobre numa carta) e os decenais Maias. Se alguém encarnou a seriedade do trabalho oficinal, e primeiro que ninguém, foi ele. Obrigou a renovar votos de profissão de fé, a escolher atitudes. Em 1946, Tomaz de Figueiredo dizia que “o romance caiu até aparecer Eça”, porque até Camilo cometeu “o delito de nunca se ter desabituado de jantar”. Quem hoje em dia está disposto a passar fome, ainda por cima fome de fama? Quem passa dez anos a amaneirar um só livro arrisca-se a ser esquecido pelo “público”, quando reaparece ainda descobre que nem carreira tem; mais seguro é lançar um livro todos os anos, ser um estímulo constante para a maioria que sofre de PHDA.
Mais credível é Tordo acreditar na inconfundibilidade da voz de Saramago. De relance, tal elogio pode parecer incongruente com o magistério do Manual de sobrevivência de um escritor. Por exemplo, o detentor dum estilo confundível ao ponto de invisível não esbanja simpatia em Vladimir Nabokov, que sente “uma necessidade de controlo quase ditatorial, como se o autor tentasse orientar o espírito que o guia, ao invés de permitir que o espírito o conduza. Nada é deixado ao acaso, tudo é premeditado; há demasiado autor na obra e sobra pouco espaço pra o leitor. Tudo é excessivamente bem feito.” Só na literatura, só escritores é que resmoneiam por os pares escreverem demasiado bem. Imagina um paciente recusando a operação porque não deslarga o neurocirurgião a reputação de cirurgias excessivamente bem feitas. Nabokov “parece-me sempre ávido de exibir a sua inteligência, como se desejasse mostrar-nos quão bem domina a sua arte.” Quando a fasquia é tão baixa, a voz de Saramago parecerá portentosa.
Não é a dúctil, harmoniosa posição e combinação de palavras numa frase que nos atrai a Saramago, como atrai amantes do estilo a Nabokov e a Eça. Acerca de ambos pode-se de facto falar numa voz inconfundível, e por muitas semelhantes razões, mas apesar de Tordo se referir a “voz”, o que ele tem em mente é grafismo. “Voz” é um curioso termo para se aplicar a qualquer escritor dos últimos 500 anos, é um exemplo daquilo a que Walter J. Ong chamou “oralidade residual”, é como dizermos “Meu Deus!” quando não acreditamos, ou “pôr-do-sol” apesar de sabermos que o sol está parado no céu, é uma aparição cognitiva vinda duma mundividência que descartámos sem nunca a termos exorcizado completamente. Porém, Tordo não convence de que leia em voz alta para se deleitar com propriedades acústicas. O que o atordoa, maravilhado pelo visual como qualquer rebento da geração do ecrã, é o fácil truque de tipografia e pontuação que altera a mancha gráfica dos romances de Saramago em relação às normas que nos inculcam desde a infância. É fácil dar-se um aspecto visualmente inusitado ao texto impresso. É, porém, muito fátua a alma que pensa que isso é por si impressionante.
Indubitavelmente, a olho nu uma página de Saramago impõe-se ao nosso reconhecimento mais depressa. Mas é por ser tão vistoso que esse estilo morreu com ele; não porque seja de imitação dificultosa, mas porque ninguém quer arcar com a reputação de imitador. Afinal de contas, outra das revoluções de Eça foi justamente apadrinhar a demanda do estilo próprio. Quem quer ser outro Saramago quando pode ser ele próprio? Eça operou uma tão subtil modificação dentro das normas gramaticais, que os vindouros o assimilaram inconscientemente, até quando pensavam que escreviam contra ele. Contudo, rente à revolução, Pina e Vaz Carvalho não duvidaram duma mudança observável em tempo real. Se Tordo usa hoje em dia calão, a outrora desaprovada “linguagem chula”, plebeísmos, e até anglicismos, tem a agradecer Eça, que preferia as chãs palavras do dia-a-dia ao chão sagrado guardando em resplendentes mausoléus arcaísmos que só filólogos conheciam, e aos rijos regionalismos das mais inóspitas fragas. Se Tordo acha risível usar o vernáculo incorrupto do povo-povo, tesouro vivo que preserva intacta a pureza que os nossos egrégios avós falavam no tempo das caravelas, e que os detractores de Eça diziam ser a apoteose do verdadeiro Português, foi porque Eça ganhou a guerra tão incondicionalmente que ele nem dá por ser um dos beneficiados. Foi preciso haver coragem para achar piroso o que a autoridade julgava sublime, coragem de embandeirar o mau gosto, e talento para o tornar persuasivo. Isso é uma revolução verbal.
A insuperabilidade da revolução eciana avalia-se também pelas circunstâncias propícias a recompensar quem aparecesse em 1980 com o estilo de Levantado do Chão. Que estilo é esse? Um estilo que quer ser ele próprio. É um narrador omnisciente que: comprime as várias modalidades da narração – descrição, diálogo, reflexão – num texto contínuo através da supressão da pontuação ortodoxa; desliza como um cardume na água por vários planos, temporais, espaciais, hipotéticos, físicos, mentais, intrapessoais; mistura vários registos, o provérbio popular e o pastiche barroco, o calão e o jargão; abre o jogo comentando a própria ficcionalidade e interpelando o leitor. Adoro tanto este tipo de narrador que nem levo a mal o facto de não ser particularmente original, nem nacional nem internacionalmente. António Lobo Antunes andava a usar pontuação saramaguiana um ano antes em Memória de Elefante:
(…) ainda agora o engenheiro Godinho, aquele senhor forte muito simpático não desfazendo, que falou porque o incomodava o sis, estranhou não ouvir o meu Edgarzinho, estava habituado a ele, até me disse Ó Dona Delmira então o rapaz?, Se Deus quiser para a semana já o senhor engenheiro o tem aqui, disse eu, não é por ser meu filho, que isso até me ficava mal, mas o senhor doutor não calcula o jeito que ele tem para os auscultadores, em crescendo entra de certeza na Marconi, a minha irmã repete sempre Nunca vi como o Edgar Filipe, ela trata-o por Edgar Filipe (…)
E antes de ele ter usado a maiúscula para iniciar o diálogo em vez de passar à linha debaixo marcada por travessão, já Guillermo Cabrera Infante fizera o mesmo em Três Tristes Tigres, traduzido em 1975. Sem esforço acodem-me à memória cinco ou seis autores portugueses que antes de Saramago andavam a fazer experiências com a pontuação bem mais radicais do que as dele, sendo essa a principal razão para não terem durado. O meu respeito pela mestria de Saramago disparou quando me pus a ler os coetâneos; só assim é que percebi que a pontuação dele, longe de ser original, foi afinal um compromisso entre a destrutiva praga da inovação pela inovação e os elementos do romance tradicional (personagem, diálogo, intriga, tempo e espaço bem definidos), que os abstrusos “experimentalistas” achavam sacrificáveis por qualquer salabórdia.
Quanto ao narrador intrometido, alicerce daquilo a que William H. Gass chamou “metaficção” em 1970, trata-se duma constante histórica, recuando até As Mil e uma Noites, Dom Quixote, Tristram Shandy, Memórias Póstumas de Brás Cubas e ao Viagens na Nossa Terra, cuja dívida Saramago obliquamente reconheceu extraindo dele a epígrafe para Levantado do Chão. Mas estacionemos em mais recentes tempos, acontece que ele atravessou uma das mais intensas e estimulantes renascenças da metaficção, uma das correntes mais vivas da ficção do pós-guerra. Cingindo-nos a exemplos nacionais, ele não deixaria de estar ciente de O Delfim e Rápida, a sombra. No mesmo ano em que saiu Levantado do Chão, Lobo Antunes inseriu-se em Conhecimento do Inferno, narrado por um “António Lobo Antunes”. Mais metaficcional do que isso não há. Antes, houve Procissão dos Defuntos (1954), de Tomaz de Figueiredo. Procissão dos Defuntos é um livro muito traquinas, composto de três novelas interligadas. A primeira, usando o narrador indirecto dos livros anteriores de Tomaz, larga-nos nas memórias duma senhora idosa, e é bastante obediente às convenções realistas em uso por Régio, Aquilino, Ferreira de Castro. Tendo em conta que a primeira parte foi a última a ser escrita, especulo que a intenção de Tomaz fosse apanhar o leitor desprevenido para o seguinte momento saramaguiano:
O desfiar desta mui verídica e acontecida história vai a tomar tal correr, que ao narrador lhe dá agora para nela meter bico, atentando contra os cânones da objectividade e seguintes.
Não sabe que é! O estilo atrás do assunto, o cálamo empós do estilo, a nascer-lhe uma procaz sucessão de maneiras e dizeres obsoletos, e termos que o leitor quiçá deixou de o ser.
O assunto, enfim, de rançoso, o parece pedir, e nem porventura a quem estende a massa tocará grande culpa, só a tendo por não deixar que em paz e humidade se esfarelem os autos donde o colhe e outros alfarrábios.
Desenfadadamente aqui lhe deu para se libertar de ambições literárias, volvendo-se à primitiva ingenuidade novelesca, e de tal singeleza irão saindo estas páginas. Protesta, por penitência, não escrever no final outra narrativa que muito belamente poderia acometer, e a qual, se não fora Alexandre Dumas ter existido, com certeza chamaria Vinte Anos Depois.
Protesta, isso protesta, conquanto não seja de fiar em protestos de escritores, a quem determinados assuntos afiam a gula. A ver vamos, portanto, já que a pena dos escritores acontece também instrumento da justiça de Deus.
Cobras e Lagartos poderia igualmente chamar-se a narrativa complementar, visto que nela se contariam casos de pôr os cabelos em pé.
No estilo estará o dói, assim quase visigótico, e há-de acusar a crítica o autor de mais velho que a Sé de Braga.
Da página 106 até à última, este narrador, que se manteve escondido (e que segundo evidências internas é o próprio Tomaz, ou um “Tomaz de Figueiredo”), nunca mais deixa o leitor esquecer-se da sua presença – tal e qual como nos livros de Saramago. Para melhor aferirmos o quão herético isto foi à luz dos cânones nacionais e internacionais, lembremos que em 1924 Ford Madox Ford instruía: “Contudo o objectivo do romancista é manter o leitor inteiramente inconsciente do facto de que o autor existe – até do facto de que está a ler um livro.” Que se lixe, decidiu Tomaz, num daqueles vaipes de revolucionário mau gosto. Tão auto-ciente o narrador que até sabe que a terceira parte do livro se chama precisamente “Cobras e Lagartos”. A partir daqui, o assunto rançoso torna-se pretexto para um desfile de brincadeiras metaficcionais, mas não frívolas, com o intento de mostrar que o romance não estava condenado a permanecer a gasta e esfolada fórmula realista do tempo de Eça. Vejamos a cena em que o narrador pausa a narrativa para reflectir como deveria compor os eventos, se primeiro apresentará uma personagem, D. Inocência, ou se deve antes descrever o espaço, a Casa da Melancia:
Chegaria o fidalgo da tulha – podia ser – onde acabava de receber umas pensões de milho… Ou, então, estaria o fidalgo a destinar uns cortes de madeiras…
Podia ser uma cousa dessas.
Ainda – e melhor – estaria o fidalgo com a filha mais nova nos joelhos…
Melhor, muitíssimo melhor, que assim já principiava a ser dada uma intenção.
Logo chegava ao pé dele a mulher, e contava-lhe daquele caso tanto de cortar o coração que se passava com os orfinhos do primo Melchior…
Não! Primeiro que tudo, convinha descrever a Casa da Melancia, contar de como, construída nos finais do século XVIII, fora mercada a um filho segundo que tornara do Brasil com umas rasas de dobrões e cego dum olho, do murro, do grande panázio que lhe haviam assapado, no meio duma partida de dedos.
Noutra passagem, o narrador tenta adivinhar como uma personagem pensa que Camilo introduziria uma personagem:
A chegada à Melancia da célebre menina Inocência, palpitava-lhe ao lorde que havia de dar um capítulo cheio ao seu amigo Camilo.
Se ao portão a apresentasse por fosco dia de chuva, logo desse mau tempo se podiam tirar agouros e prenúncios. Até o céu chorava, de saber o que viria…
Mas, se a apresentasse ao portão por famoso dia de sol, daí podiam igualmente colher-se várias filosofias sobre quanto as aparências são falazes.
Tomaz não esconde o gozo que sente fazendo um pastiche de Camilo, sendo o pastiche justamente outra das marcas distintivas do pós-modernismo e de Saramago.
Procissão dos Defuntos foi muito mal recebido porque as técnicas de Garrett e Camilo estavam proibidas, em parte porque o realismo eciano se tornou uma ditadura. Posteriormente a Eça, escrever passou a equivaler a anuir aos cânones da objectividade e seguintes, isto é, um narrador invisível, puramente comunicativo e directo, que faculte a informação fotograficamente, sem nos lembrar que o texto é uma construção de algo que não existe em vez dum reflexo da realidade – i. e, o estilo de Tordo. O efeito de Procissão dos Defuntos sobre o leitor deve ter sido estarrecedor, especialmente porque acontece inesperadamente a meio. O próprio narrador (e Tomaz) estava consciente disso, e esperava-o, sabia que atentou “contra os cânones da objectividade e seguintes”, uma medida defensiva que permite aferir o quão malvistas eram estas técnicas em 1954. Coisa proibidíssima era o narrador quebrar o silêncio para comentar, e ainda por cima prever a sisudez dos críticos:
Pertence, porém, ao escritor este aparte, e urge que definitivamente ponha de banda tais intervenções, às quais o menos focinhudo crítico literário não deixará de reprovadoramente encrespar o nariz, por mais encrespado que já seja de nascença: decerto a encher de zelos algum ciumoso leitão da Barrada.
De facto, assim foi; os críticos não acharam piada, isto não era de bom tom, não era Literatura com L grande. Foi preciso alguém dar o primeiro passo em direcção ao libertador mau gosto.
Quando as primeiras resenhas negativas acossaram Procissão dos Defuntos, Saramago era o autor duma chamboíce intitulada Terra do Pecado, mas acabara de ter a sorte de um editor ter perdido o igualmente xebre Clarabóia, apanhado dos clichés realistas e neo-realistas das dúzias de romances publicados anualmente em Portugal; se publicado e mimoseado como o eram todas as banais imitações tardias do naturalismo que não acometiam contra os cânones da objectividade e seguintes, talvez nem Saramago houvesse hoje em dia.
Em lado nenhum adoptou Levantado do Chão idêntico tom defensivo porque o contexto internacional era bem mais acolhedor do que em 1954 e tornava improvável o malogro. Afinal de contas, metaficção andavam todos a fazê-la, era o Borges de “Borges e eu”, era o Nabokov, era o Ronald Sukenick de Up (1968), era o Robert Coover de Pricksongs & Descants (1969), era oGonzalo Torrente Ballester de Fragmentos do Apocalipse (1977), era o Italo Calvino de Se numa noite de Inverno um viajante (1979), era o John Barth de LETTERS (1979) e o Gilbert Sorrentino de Mulligan Stew (1979). E o Cardoso Pires e o Vergílio e, e, e – e já ouviste falar dum tipo chamado António Rebordão Navarro, O discurso da desordem (1972)? Sim, até esse zé-ninguém, e era coisa tão batida quando chegou à vez de Saramago que desconheço uma única resenha a Levantado do Chão ou Memorial do Convento que registe a menor estranheza ou desaprovação. Seguir modas tem essa benesse.
Que outras propriedades inconfundíveis irradia o estilo saramaguiano? O deslize entre planos diferentes? O fim de fronteiras entre as modalidades discursivas? Aquele narrador omnisciente simultaneamente em todo o lado, no passado e no futuro, dentro e fora, para quem o tempo é um só, unindo tudo através duma heterodoxa quebra da pontuação? Aqui está um respeitável ensaio datado de 1947:
Querido e saudoso Mata-Leões!
Ali tinha agora, além da memória, que sempre lho devolvia vivo, agarotado, malicioso… (O menino, lá por essa Lisboa, deve-se ter fartado de gozar…), ali tinha o retrato que tirara com a família (Quisemos de corpo inteiro, indas que botasse mais caro!)
Abria o primo a boca, dizia o que tinha a dizer, e levava logo para tabaco! Bem o primo pretendia chamar ao seu campo o primo Luís (Tu não achas, não te parece que sou eu quem tem razão?), mas o pai dele, Diogo, abandonava-o à sua triste sorte, achava que não tinha ponta de razão, e, a sorrir, passava-o à irmã para que o carpeasse bem carpeado. (Entende-te com a Francisca, que com ela fia mais fino que nos tribunais! Anda, responde-lhe!)
Sim, as espadas silvavam, já uma vez fizera silvar o espadim do bisavô. Que silvo tão fino! (Viii, viii…)
Mas o espadim do bisavô (É verdade!), estava na parede. E se fizesse silvá-lo de novo, a fazer de capitão Ó Brien… (Parece-me que se ilude, senhor conde!)
Nos dois primeiros trechos, o narrador indirecto reúne numa frase só a perspectiva no tempo presente do protagonista, Diogo Coutinho, e falas lembradas mas ditas num passado impreciso. No terceiro trecho, a consciência de Dioguinho põe no mesmo plano o presente em que se encontra e o passado em que ouviu o silvo. Mistura a espontaneidade duma recordação (É verdade!) com o plano imaginativo da criança que imita as aventuras que lê, pois a frase “Parece-me que se ilude, senhor conde!” é repetida integralmente da revista de aventuras que acabou de ler e cujo duelo, interrompido até ao número seguinte, ele quer encenar na vida real, fingindo ser o herói Ó Brien.
Quando A Toca do Lobo saiu, vários anotaram a estranheza causada por Tomaz não marcar o diálogo com pontuação ortodoxa. De facto, de Eça até ele não conheço um português que tenha violado a sacrossanta pontuação por razões literários, seja Aquilino, Torga, Rodrigues Miguéis, Brandão, Almada, Régio, Gaspar Simões, Paço d’Arcos, Nemésio, Ferreira de Castro, Namora, Redol, Carlos de Oliveira, Cardoso Pires, etc., os quais, quaisquer que tenham sido as suas virtudes, ativeram-se à norma do manual. Mas Tomaz precisava duma técnica mais directa, mais espontânea, mais rápida de mostrar a interface das várias vertentes da consciência, para o que a pontuação ortodoxa não lhe servia. Na sequela, Uma Noite na Toca do Lobo, desfez-se totalmente do travessão para assinalar diálogo, o único diálogo é o que existe na memória de Diogo, por isso não pode estar solto nem ser autónomo, tem de estar preso à perspectiva do protagonista, pois as memórias só existem dentro das grades da mente.
A meu ver, esta pontuação não é tão interessante quanto a de Saramago, mas foi uma operação ousada e complexa para a época, e tanto quanto sei foi a primeira etapa numa série de explorações que, passando por Vergílio, Almeida Faria, o Cardoso Pires de O Delfim, chegaria por fim a uma técnica mais amadurecida e produtiva em Saramago (embora, para mim, a pontuação de Tomaz se assemelhe mais à de Lobo Antunes.)
Em 1947, era cedo demais para Tomaz ter lido A Era da Suspeita, no qual Nathalie Sarraute defendeu precisamente que estava na hora de mexer na pontuação. Ei-la, anunciando em 1956 o estilo de Saramago:
Desde então, nada está menos justificado do que as grandes alíneas, os travessões, com os quais é costume separar brutalmente o diálogo do que o precede. Mesmo os dois pontos e as aspas são ainda demasiado aparentes, e compreende-se que alguns romancistas (Joyce Cary nomeadamente) se esforcem por fundir, na medida do possível, o diálogo com o seu contexto marcando simplesmente a separação por uma vírgula seguida por uma minúscula.
À medida que se espalhou a popularidade de Sarraute, e marcas do culto dela em Portugal abundam nos anos 60 e 70, e as propostas dela se normalizaram, tornou-se cada vez mais fácil, até obrigatório desrespeitar as normas. Durante este vinténio, “inovar” em Portugal pouco mais significou do que fazer experiências, muitas deveras infrutíferas, com a pontuação. Precedentes encontram-se em Mário Dionísio, Eduarda Dionísio, Yvette K. Centeno, e até mais radicalmente em Maria Gabriela Llansol e Alberto Velho Nogueira, além de Lobo Antunes. E isso os nacionais, porque novamente havia um contexto internacional pressionando os escritores a pugilarem a pontuação dos predecessores. Resumindo, Tomaz foi revolucionário, Saramago foi um modilho.
Infelizmente, ainda não estão compiladas em volume as recensões a Saramago. Todavia, no livro de Fernando Venâncio, José Saramago: A Luz e o Sombreado, há dois estudos, “Os primeiros leitores de Saramago” e “‘Memorial do Convento’: um ano de crítica”, que dão uma panorâmica de como foi recebida a novidade do estilo, e uma das conclusões a extrair deles é de que a lendária pontuação invulgar nem comentário mereceu. Pudera, andariam lembrados de mais extremas violações dos códigos. Por exemplo, não há vírgulas em Litoral do Espanto (1968) e Comente o seguinte texto: (1972). E havia Depois de Os Pregos na Erva (1973):
aparecida no lugar do maple e, lentamente, para não escorregar na passadeira do corredor sempre e cada vez melhor encerada, entrou no quarto, no oratório, na casa de banho, na sala de jantar, no quarto das criadas, ocupou o seu lugar habitual na cadeira de verga (Écloga), encostada á mesa-geladeira da cozinha onde se sentou à mesa e a figura ficou de pé, em frente dela e se iniciou o interrogatório:
procura por toda a parte papel?
para escrever?
nesta casa há muito papel?
de embrulho, os agarrados aos selos, de livro, de cadernos e de cartas?
incluindo das paredes forradas?
simples folhas?
mas o que quer é uma folha de brancura azulada onde a mão a deseje?
espera para que, cortados à guilhotine, sobressaiam os limites?
apoia nele o pulso, a ponta da caneta e os dedos, directamente o mínimo?
a sua mão é a cabeça de uma boneca que regula o que escreve ou vidro duro e quebradiço que lhe permite olhar profundamente enlevado?
deixa os desenhos da (sic) palavras como se me abandonasse?
a nostalgia de ouvir pequenas figuras de cera, de cartão, de madeira é tão grande?
este seu desejo é o desejo da figura?
ela olha-me de uma forma hipnótica? (é um pequeno corpo dentro de outro corpo indeciso como uma auréola contendo outro corpo que se governava a si mesmo sem precisar de relacionar-se com os homens). deitou-se ao comprido no tampo de mármore da mesa e, como qualquer
Gabriela Llansol quebra o parágrafo numa litania de versos, multiplicando o tom interrogativo até se transformar num interrogatório que começa no plano material (procura do papel) e termina no plano espiritual. A parte enigmática é a pergunta final, cuja perspectiva parece inverter-se sem qualquer sinalização. Esta é uma operação mental que exige ao leitor agilidade e atenção, não diferindo das faculdades que Saramago lhe exige para destrinçar rapidamente os interlocutores dos seus cerrados diálogos. Esta é uma das razões por que os primeiros leitores nem deram pela pontuação, havia tanta experimentação com tipografia e pontuação que a de Saramago pareceu só mais uma. Foi precisa distância histórica, mais o esquecimento de muitos livros que taxados de inovadores não comportavam qualidade artística, para a proposta dele sobressair.
Paradoxalmente, esta busca desenfreada de novidades é um resquício da revolução iniciada por Eça, que agora nos parece um mestre da norma. Isto é o que deve acontecer, um escritor não consegue permanecer inovador infinitamente, como Tomaz observou ao lembrar que a “Escola Coimbrã” foi no seu tempo tida como “ridícula igrejinha donde saíram nada menos que Antero e Eça, Oliveira Martins e Ramalho, autores que ninguém hoje topa ininteligíveis, e menos burlescos, até a cada passo atirados à cara dos modernos de hoje (eles, os modernos de então), como exemplos de clareza e lucidez. – À cara dos modernos de hoje, também muito supostos de voluntária obscuridade…” Quando Eça passou a viver para a mot juste flaubertiana, para o aperfeiçoamento duma linguagem artisticamente autónoma e distinta da usada no dia-a-dia, para a criação dum estilo pessoal, incutiu nos vindouros a demanda por um estilo identificável a olho nu. Por exemplo, a Amazónia lexical de Aquilino, que se topa a milhas mas na qual não se caminho um metro sem um bom guia. Ou o minimalismo de guião de cinema dos primeiros livros de Cardoso Pires. Ou, para mim mais frutuoso, Tomaz, cujos diálogos entre parênteses e itálicos identificam de imediato a autoria. E continuou com Vergílio, que desmembra o parágrafo até se tornar na espécie de estrofe usada por Llansol, na ambição de aproximar a prosa da poesia, que para mim só começou a dar bons resultados quando Lobo Antunes se afiambrou à ideia. E estou-me a cingir aos poucos que merecem o meu respeito, porque antes de Saramago havia para aí uma dúzia que, aplicando os critérios de Tordo, apareceram aos coetâneos em posse duma voz inconfundível. Não que isso a longo termo lhes tenha garantido a imortalidade, o que nos deveria deixar preocupados com a posteridade de Saramago.
Entre 1874 e 1980, o Português passou por várias convulsões, e isso deve-se à energia que Eça libertou, fecunda em potencial. Pela primeira vez, o escritor cuidou conscientemente de que devia ter um estilo pessoal, não meramente usar a linguagem, mas possuí-la com volição obcecante. Tão sedutora foi a proposta dele que em 1934 já se tornara uma barreira que urgia “ultrapassar” a bem da inovação, pois em vez de retirarem a mais importante lição de serem eles próprios, muitos preferiram a preguiça de serem imitadores. Fidelino de Figueiredo dizia que o romancista do seu tempo ainda repetia “a técnica do realismo tal como se cristalizou nas obras de Eça de Queiroz.” Faziam variações para meter distância entre as cópias e o modelo, “mas a estrutura interna do género, a ironia como meio de chegar à objectividade desinteressada são ainda de Eça de Queiroz e do seu inolvidável sorriso caricaturador.” Em 1960, numa entrevista a um jornal brasileiro, o poeta Alberto de Lacerda lamentava: “O espectro de Eça de Queiroz vive; as figuras sinistras e cabotinas dos Maias continuam a subir e descer o Chiado todos os dias. A vantagem do Brasil é que já enterrou o Conselheiro Acácio; nós, pelo contrário, demos-lhe as melhores posições, e ele abusa…” Três anos depois, Artur Portela Filho, que se desunhava a impingir o inútil nouveau roman, bazofiou ao Jornal de Letras e Artes: “Terminou aqui a era queiroziana.” Isso, sendo indesmentível, não se deveu a nenhum dos enjeitados que o sr. Filho infligiu à arte do romance. A ironia é que a procura dum novo romance que apagasse o precedente foi exactamente o que Eça fez. É ele quem alimenta as baterias de tantos escritores que tentam criar estilos próprios, zelosos duma doentia originalidade perfeitamente normal desde o Romantismo, que não respeita normas gramaticais, nem regras que nos dizem ser “correctas”, a originalidade que quer ser a expressão duma alma. Sem espanto, no tempo de Eça diziam que ele não sabia escrever Português correcto, tal como hoje em dia ainda há parvos que dizem que Saramago não sabia usar vírgulas. Mas tal como Eça se tornou modelo do “bem escrito”, também Saramago cada vez mais parece um clássico da clareza e da correcção. O preocupante seria o contrário. E é uma revolução que ainda não acabou nem acabará enquanto houver escritores que se julgam indivíduos.
No entanto, Eça só impulsionou a revolução da expressão da individualidade através do estilo, não impôs a forma em si, a qual cabe a cada um descobrir por si. Ironicamente, é tão limitado o que se pode fazer com a linguagem, que passado tempo suficiente certas velharias regressam como estonteantes inovações. A metaficção foi uma. Mas Saramago, nos antípodas de Eça, além disso ressuscitou a prosa fradesca jogada ao rio com o filho do Padre Amaro na primeira versão. Contou Carlos Reis ao biógrafo Joaquim Vieira: “De Todos os Nomes para cá, o Saramago mudou o tom do estilo. É um estilo muito mais escorreito, muito mais directo, não tem aquele – e vou usar agora o termo que tem sido usado, embora não seja ajustado – barroquismo, que é um termo um pouco depreciativo.” O olhado de esguelha barroquismo, confrade da prosa fradesca, tão combatido por presencistas e neo-realistas, foi uma das escassas verdadeiras revoluções de Saramago. Tão bem-sucedida foi a guerra de Eça aos gramaticões, casticistas e puristas, que o estilo neo-arcaico de Saramago é uma consequência directa de e uma reacção à nova hegemonia. Infringindo uma lei nuncupativa em vigor desde o começo do século, o réprobo admitiu a um jornal em 1985: “Sou um escritor barroco, e a minha frase avança numa espécie de linha ciclóide. Não vai em linha recta.” Tal afirmação ou era coragem ou loucura. Ser-se barroco era ser fradesco, camiliano e castilhiano, passadista. Era, até, pouco nacional, ou não andasse Gaspar Simões a tentar provar que o gongorismo era importação alheia ao espírito lusíada. Para outros, o barroquismo era fatalidade do ibérico, criatura com tendência para o exagero, a exuberância, o desequilíbrio da forma. O Francês, o Francês da clarté e do cartesianismo, da simplista e inflexível ordem sintáctica – sujeito, predicado, objecto – a ele é que o deviam emular para refrear este inato malefício. “É uma língua cartesiana, obrigava-nos a disciplinar-nos”, disse Mário Dionísio, um dos muitos anti-barroquistas que tentaram sujeitar o romance ao estilo raso usado por Tordo: frases curtas, léxico compreensível sem a ajuda dum dicionário, absoluta literalidade. Os neo-realistas, e antes deles os presencistas, e ainda antes Teófilo Braga e os naturalistas, arrogaram-se a missão pedagógica de salvar os portugueses de si próprios, do bacilo barroco alojado na lusalma. Em 1959, Gaspar Simões continuava, “teimosamente, agarrado a uma concepção da arte do romance de algum modo incompatível com toda a sorte de barroquismo, como, em verdade, nem sequer os ventos que sopram, lá fora, na seara da literatura de ficção, me habilitam a pensar que o futuro do romance esteja, de facto, na expressão barroca.”
Não é que ele usasse palas nos olhos, embora também, é que ele simplesmente deixara de usar os olhos depois de 1927. Pois, transportado pelos ventos do Lá-Fora, veio justamente a respeitabilidade do barroquismo. Em 1955, Haroldo de Campos cunhou a expressão “neobarroco”, depois redescoberta pelo cubano Severo Sarduy em 1974. Em 1959, outro cubano, José Lezama Lima, expôs a tese de que o destino do escritor sul-americano passava por aproveitar as raízes barrocas deixadas pelos invasores espanhóis, e a elas se renderam Miguel Ángel Asturias, Carpentier, García Márquez, Carlos Fuentes. George Steiner, farto de simplismo hemingwayano, ousou ver no barroco Lawrence Durrell um travão à “retirada da palavra”. Nabokov, desde Lolita, estava cada vez mais eufuísta. Burgess, apaixonado pelos isabelinos, inventou uma língua a partir de Inglês e Russo, tal como o híbrido Gregório de Matos misturou Português e Tupi na poesia. Günter Grass era comparado a Hans Jakob Christoffel von Grimmelshausen, autor de pícaros seiscentista. Torrente Ballester voltou às lições de Cervantes e das novelas de cavalaria. Carlo Emilio Gadda, no prefácio de O Conhecimento da Dor (1963), admitiu de bom grado ser barroco. Sendo Portugal o que é e tem sido há 250 anos culturalmente, uma cultura periférica, insegura e sem amor-próprio, se o Lá-Fora de repente começasse a bradar que era OK ser-se barroco, nem os mais anti-barroquistas portugueses resistiriam prender o gancho no vox populi para irem a reboque. Foi assim que por volta de 1980, especialmente por influência do romance sul-americano, que há vinte anos andava a invadir o país, tão popular que Nelson de Matos até referiu haver portugueses a ler Cem Anos de Solidão sem esperarem pela tradução, os portugueses subitamente tiveram uma epifania, “Péra lá, eu também sou barroco!” Por mais patético, ao menos deu-nos Memorial do Convento e Fado Alexandrino, portanto não me estou a queixar.
Em que se manifestou este barroquismo que acometeu de repente Saramago, Lobo Antunes, Lídia Jorge, Mário Cláudio, Mário de Carvalho? Em frases torrenciais, repletas de vocábulos raros que os neo-realistas nunca teriam usado, expandidas por encadeadas orações subordinadas como era de uso no século XVI e que entraram no repertório de Lobo Antunes antes de terem sido avistadas em Saramago; em frases altamente arquitectónicas e entupidas de metáforas, como nos sermões de Vieira; em enredos com elementos fantásticos, desafiando as leis da física, misturando tempos. O estilo inconfundível de Saramago era tanto a norma internacional que se encontra desenvolvido e aplicado com pulso seguro por García Márquez em O Outono do Patriarca (1975).
Também Eça foi atraído pela conjuntura internacional, mas além de as modas circularem mais devagar então e de o casticismo dificultar a penetração de ideias que desvirtuassem a identidade nacional, ele divulgou o realismo praticamente sem precursores nacionais, ciente de que estava a abalar um dos mitos identitários do seu tempo, o mito da alma portuguesa intrinsecamente lírica. Os contemporâneos não estavam inclinados para literatura esvaziada de idealismo, sexualmente aberta, cínica, sórdida, demorando-se carinhosamente numa profusão de pormenores porcalhões, que chocaram Ramalho e Machado. A pavana que Machado lhe deu em 1878 foi na verdade à filosofia do Realismo-Naturalismo, que por fim encontrara um arauto em Português. Machado sentiu uma apreensão crepuscular de que uma nova era começava, de que aqueles presos como ele a concepções românticas ou se adaptavam ou definhariam. Eça sabia que estava num banco de areia, o próximo passo podia afogá-lo ou trazê-lo à margem, ninguém lhe pedira para divulgar e defender uma ideia indecorosa e indesejada. Basta pensar no tom grato da carta que escreveu a um crítico que elogiou O Primo Basílio em 1878: “O que lhe agradeço profundamente é o a sua defesa geral do Realismo. Os meus romances importam pouco; está claro que são medíocres; o que importa é o triunfo do Realismo – que, ainda hoje méconnu e caluniado, é todavia a grande revolução literária do século, e destinado a ter na sociedade e nos costumes uma influência profunda.” O autor isolado apagou-se diante do que julgava mais importante, a filosofia subjacente tão impopular junto dos compatriotas. Audazmente, atirou-se à ideia que mais resistência criaria à sua aceitação.
Pelo contrário, o barroquismo e o realismo mágico de Saramago e contemporâneos foram facilitados não só pelos êxitos planetários de O Quarteto de Alexandria e O Tambor e Cem Anos de Solidão, mas até preparados por precursores nacionais como Tomaz (Dom Tanas de Barbatanas, 1962-64) e Ruben A. (A Torre da Barbela, 1964) e Jorge de Sena (Novas Andanças do Demónio, 1966) e Cardoso Pires (Dinossauro Excelentíssimo, 1972), quatro expoentes da efabulação barroca onde se deslindam os contornos do que seria um dia a “voz” de Saramago. Os primeiros leitores não deram pela pontuação, já tinham tido um fartote disso, e tão fartos que suspiravam pelo regresso à normalidade. Pedro Alvim escreveu, “A língua portuguesa é a personagem maior” de Memorial do Convento, o que levanta a pergunta embaraçosa: os livros dos outros estavam escritos em quê? Pelos vistos não no “majestoso idioma” do Memorial, segundo Baptista-Bastos, nenhum deles tendo atingido “o paradigma da grande prosa” de Vieira, conforme Vital Moreira. Saramago, ao invés de ser revolucionário, mais confortante foi quanto mais familiar fizeram soar o antiquado estilo dele. Como os compreendo, porque se eu tivesse penado o vinténio de 1960 a 1980 a aturar disto,
Esperando E de súbito passando uma cruz por cima do já escrito Uma diagonal do canto superior direito ao canto inferior e em seguida encontrando-se no meio a segunda diagonal do canto superior esquerdo ao canto inferior direito e ainda um alinha vertical passando pelo ponto de intersecção das duas diagonais e mais uma linha horizontal perpendicular a esta passando pelo ponto de intersecção das três linhas anteriores e dividindo em dois ângulos quase iguais um dos oito ângulos assim criados multiplicados e divididos por dois Esperando olhando e muito depressa passando um ziguezague muito sinuoso e apertado sobre as letras a cruz Arrumando a folha de papel Tirando uma folha limpa da divisão que havia na carteira para se guardar livros ou malas ou embrulhos ou pastas e cobrindo com esta folha a outra Recomeçando tudo (Eduarda Dionísio, Comente o seguinte texto:, p. 94)
que no verso Augusto Abelaira prometia ser “Um romance rico, bem imaginado”, eu também me teria rojado no chão e levantado os braços ao Céu em gratidão a Jesus-a-Imaginação por uma estória com princípio, meio e fim, recheada de imprevistos e elementos fantásticos, interessante, divertida, sentimental, cheia de humanidade e já agora impecavelmente bem escrita.
Saramago afinal fez um pastiche, deliberadamente voltou a um estilo anacrónico, tão fradesco que parecia fresco. A própria pontuação vem directamente do Quinhentos, quando a norma era muito mais permissiva:
E certo quando cuido que aquela tarde, estando o piloto com o mestre, lhe disse o mestre ao tomar do sol: ‘Hoje me achei vinte e quatro léguas destes baixos’ e, pela estimativa do que a nau podia andar, achava que ao quarto da prima rendida estaríamos quatro léguas destes baixos, e estar ele tão descuidado e fora do que lhe convinha e à salvação de todos, não há que dizer senão que o Nosso Senhor permitia tal cegueira por nossos muitos pecados.”
O diálogo de História Trágico-Marítima está sinalizado, usa mais símbolos do que Saramago, mas segue o mesmo princípio de inserir o diálogo dentro de prosa corrente, como um texto indivisível, que é o que encontramos nele. Num recente livro, Pessoa & Saramago, Miguel Real ressuscitou uma ultrapassada dicotomia entre conceptismo e cultismo. Alegadamente, no século XVII terá havido duas vertentes do Barroco, os conceptistas, dados à exposição de ideias racionalmente, e os cultistas, que se deleitavam com metáforas obscuras e sintaxes tortuosas. Como tantos ismos, são entidades vazias de sentido porque há conceptistas com traços cultistas e vice-versa. Vieira, por exemplo, que para Real é conceptista, para o iluminado Vernei, que odiava os escolásticos seiscentistas em bloco, não foi menos retorcido e turvo do que Góngora. E Teófilo Braga, positivista dos pés às pálpebras, não achou um irmão racionalista no pregador obscurantista. Posto isso, não deixa de ser interessante que Real ponha Saramago estilisticamente na família de Vieira. Mas Saramago adiantou-se em 1982:
“O estilo que tenho construído assenta na grande admiração e respeito que tenho pela língua que foi falada nesta terra nos séculos XVI e XVII. Pegamos nos sermões do padre António Vieira e, para além do preciosismo e conceptismo do gozo por vezes um pouco obscurecedor do sentido, verificamos que há, em tudo o que escreveu, uma língua cheia de saber e de ritmo, como se isso não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco.”
Isto poderia parecer mais uma diferença entre os dois, mas não creio que seja. Eça, ao instituir a autonomia da linguagem, como uma coisa em si, com propriedades plásticas e gráficas, regressou precisamente a um ideal retórico que fora a norma desde a Antiguidade até ao século XVIII. Desmembrou os longos parágrafos oratórios de Herculano, tão lentos e pesados, e dessacralizou o léxico, mas enquanto artista nunca se rendeu ao descolorido estilo jornalístico que torna Terra do Pecado e Clarabóia enfadonhos. Durante muito tempo, este Eça barroco, ou pelo menos retórico, permaneceu oculto, para começar porque ele se definiu como inimigo da prosa fradesca na conferência sobre o Realismo. Dominou a lenda do homem de ideias, do moralista social, do humorista, ao passo que o estilista era a contragosto referido para rapidamente o reprovarem pelos excessos. Tivemos de esperar pelo brilhante estudo de Ernesto Guerra da Cal para descobrirmos a mina de ouro a céu aberto. Quando Eça descreve uma figura “velada, vaga, vaporosa”, seria uma coincidência tremenda se três adjectivos começados pela consoante v tivessem saído por acaso. E fá-lo persistentemente, como se não se controlasse: “um moço loiro, lânguido”; “cascatas cantantes”; “e rápido recomeçou a rolar retumbante”. Lyly fazia o mesmo no século XVI, e houve uma florescência da prosa aliterante no XX, atingindo o ápice em Nabokov (“Elderly American ladies leaning on their canes listed towards me like towers of Pisa”) e sobretudo no romance aliterante de 600 páginas de William H. Gass, The Tunnel (1995). Em A Relíquia, embriaga-se com a aliteração: “Que claros, macios membros de mármore!”; “Outras deslumbravam-me pela sumptuosidade sólida e suculenta da sua beleza.”; “Da imensa grelha do altar subia uma fumaça avermelhada e lenta: e em redor apinhavam-se os Sacrificadores, descalços, todos de branco—com forquilhas de bronze nas mãos pálidas, espetos de prata, facas passadas nos cintos cor de céu…” Eça, que adorava adjectivos vívidos, preferiu a vagueza cromática de “céu” (azul? arrebol? cinzento? esbranquiçado?) apenas para fazer pandã tónico com passadas e cintos. Os Maias é outro delírio: “onde se guardavam os presentes dos Papas e dos Príncipes, pintados a purpura e ouro trazia-lhe uma profusão de presentes, bonecas, bombons, lenços bordados”.
É por isso que Eça tem uma voz: nele a oralidade não é residual, é factual; lê-lo com a laringe alargando-se e fechando-se, a língua beijando cada dente, os lábios formando cada letra, leva-nos a pormenores que o olho desconhece. Nunca ouvi o mesmo em Saramago. Tratam-se de dois barroquismos diferentes. O de Eça é o da micro-precisão preciosista, temperada pela mot juste, a palavra delicadamente escolhida, insubstituível num verso imutável. O de Saramago corresponde mais à imagem popular do barroco, o caudal, a torrente, nenhuma subtileza, impressionando pela virilidade. Gosto de ambas as versões, fico feliz por as ter em Português. Mas ao passo que Saramago só ressuscitou um estilo, Eça realizou incontáveis modificações ao Português para ele ser capaz de fazer mais. Agilizou a sintaxe, dignificou o parágrafo curto, rítmico e fulminante,
— Menino! Menino! A senhora manda dizer que saia imediatamente para o meio da rua, que o não quer nem mais um instante em casa… E diz que pode levar a sua roupa branca e todas as suas porcarias!
Despedido!
Ergui a face mole da travesseira de rendas. E a Vicência, atontada, torcendo o avental:
— Ai, menino! Ai, menino! se não sai já para a rua, a senhora diz que manda chamar um policia!
Escorraçado!
livrou-se de partículas redundantes, cunhou neologismos, importou galicismos. Nem os adjectivos deixou em paz. A primeira impressão de Camilo deu-se sob a égide da estranheza: “Olhe que isto aqui está frio. O quintal está plantado de couve, fava e ervilha. O sol tem umas frialdades moles, como diz um Eça de Queiroz nos folhetins da Gazeta de Portugal”, zombou numa carta a Castilho. Para ele, o estranho não eram as frialdades, castiçamente avalizadas pela História Trágico-Marítima: “e passámos o fogo e frio de ambas as zonas, tão memoradas dos antigos, a que eles nunca cometeram nem viram, e menos experimentaram suas quenturas e frialdades”. Estranho era o adjectivo: frialdades moles? Como é que a sensação de frio pode ser mole? É aí que entra o papel do leitor, e eis outra das revoluções: a partir de Eça, o autor teve de começar a pensar mais e mais na presença do leitor enquanto descodificador do texto, criar desafios cada vez mais exigentes, culminando um dia na pontuação saramaguiana que tantos professores do secundário acham tão difícil de seguir. Estas sinestesias, tão comuns no s. XX – Nabokov usava-as frase sim frase sim – são um dos principais segredos da alquimia verbal de Eça. O bem escrever deixou de ser acerca de aplicar o nome das coisas para ser uma arte combinatória, especialmente através de adjectivos ambíguos, sugestivos, que destabilizam o sentido do substantivo, distorcendo-o com matizes, abrindo o leque de interpretações.
Durante muito tempo, este legado permaneceu inconsciente. Esclarecedoramente, Guerra da Cal era galego em vez de português, pois um português não se dignaria a estudar estilo, apenas a biografia e as ideias dum autor. Era preciso um espécimen muito perverso para se debruçar sobre tais galimatias. É por isso interessante um estudo do jesuíta João Mendes, Eça de Queiroz – Tipos, Estilo, Moralidade (1945), que apareceu despercebidamente no Centenário do nascimento do Monóculo-Mor, sufocado pela catadupa de estudos. Na diabril tese de Mendes, Eça estaria afinal próximo dos conceptistas do século XVII. Embora concordasse com a famosa clareza eciana, da “nitidez e diafaneidade que parecem colocar-nos imediatamente diante da vida”, pensava também que havia nele um “intelectualismo de expressão imaginativa que teria muito de cultismo seiscentista, se este não insistisse de preferência na subtileza do conceito lógico, e Eça na subtileza do estado de alma.” Ele possuiria uma “imaginação pós-romântica”, isto é, “imaginação predominantemente imaginativa”, produtora de imagens, que pensa por metáforas. Porém, Mendes frisou que essa imaginação pós-romântica tem muita afinidade com o barroco. Tal como nos poetas gongóricos, encontraríamos em Eça “uma subtileza intelectual, declaradamente gongórica, a unir dois extremos visualmente desencontrados”. Para Mendes, ele estava repassado deste “conceitismo delicioso”. Só um jesuíta é que se lembraria de trocar as voltas ao mais acarinhado mito dos ecianos: afinal Eça não foi inimigo da retórica e da eloquência clássicas.
No adjectivo de Eça, cujo segredo “reside no culteranismo verbalista”, Mendes encontra uma das mais incríveis tecnologias que a língua portuguesa adquiriu nos últimos 200 anos. Antes dele, a norma era o substantivo, a “tendência camiliana” para nomear as coisas pelo nome exacto, por mais rebuscado, arcaico e incompreensível ao vulgo. Eça viveu numa semi-tirania do vernáculo que se estendeu muito para lá da morte dele. Pelo s. XX adentro, houve puristas rabujando contra “ecrã” (o termo lusamente exacto é “pantalha”). Em 1975 ainda se escrevia “leader” na imprensa porque repugnava adicionar o anglicismo “líder” ao tesouro da língua. No Diário de Lisboa de 1924, um lunático vociferou contra “ancestral” e “ancestralidade”, porque “tivemos sempre, e continuaremos a ter, os antepassados, os avoengos, os nossos maiores, os nossos avós, os antigos…” Eça, rindo-se do nome exacto do gramaticão, preferia substantivos correntes, do tipo que lemos às centenas em cada página de Tordo, mas refrescados pelos inesperados matizes de adjectivos vívidos, ou, conforme Mendes, “uma expressão menos substantiva e menos intensa, mas com mais sentido dos cambiantes.” E noutra perspicaz passagem: “Quando deparamos com algum desses adjectivos um tanto inesperados e sonhadores, notamos que eles se fundam num desvio ou numa estranheza aparente do objecto a que se apoiavam, mas que logo vão reencontrar por alguma relação que a inteligência descobre, e não era patente à primeira vista dos olhos imaginativos.” Causar estranheza, ou desfamiliarização, é o que o formalista russo Viktor Shklovsky disse estar no âmago do que confere literariedade à literatura.
O que Mendes, e depois Guerra da Cal, mostraram, é que Eça não é somente um autor de ideias – é um estilista primeiro que tudo, que nos quer fazer ver o mundo renovado através de surpreendentes mas ilusoriamente naturais combinações de palavras. Chamar a Saramago inconfundível não significa nada; é facílimo manipular os códigos convencionais para se destacar. Nos anos 60, houve a moda das colunas duplas: tipograficamente, a página dividia-se em duas narrativas paralelas: Sena usou-as em O Físico Prodigioso, e Jorge em O Dia dos Prodígios. Velho Nogueira, dando-se ares de marginal, não alinhou a margem do texto em Autofagias. Sem dúvida, páginas inconfundíveis todas elas. Meio século depois, ninguém quer saber; não lemos tipografia nem nos impressionam opções de formatação disponíveis no Word. Se lemos como leitores sérios, lemos por causa da ordem em que as palavras foram postas, das poéticas e imprevisíveis combinações que no final duma frase nos impelem para a próxima sob a promessa de que será ainda mais extraordinária e prolongará o êxtase. O sonho de todo o estilista, de quem não se satisfaz em meramente relatar, é pegar nas mais frustes e miseráveis palavras, cobertas de poeira, sarro e escarro pelo uso de políticos, plumitivos e publicitários, e devolvê-las como se tivessem saído do útero do idioma pela primeira vez.
A duradoura revolução faz-se, não nos passos curtos de bebé, mas nos passos curtos dum ninja que espeta um sai nas costas do alvo. Tão subtil que a damos de barato, pensando que Eça escreveu como os outros portugueses em vez de ter inventado outro Português, um pouco outré, insubmisso aos manuais. Ao criar um estilo tão pessoal e sedutor dentro das aparências da normatividade, ele espalhou-se sub-repticiamente, sem parecer ameaçador a quem almejasse a diferença. Quando lemos as rítmicas repetições dele, “E na sua cruz de pau preto, o Cristo, riquíssimo, maciço, todo de ouro, suando ouro, sangrando ouro, reluzia preciosamente.”, vislumbramos João Guimarães Rosa: “Mas nós passávamos, feito flecha, feito faca, feito fogo.” Quando lemos, “A aurora despontou, com ardente pompa, comunicando à terra alegre, à terra braviamente alegre, à terra ainda sem andrajos, à terra ainda sem sepulturas, uma alegria superior, mais grave, religiosa e nupcial.”, entramos no território verbal de Alejo Carpentier:
De prata as finas facas, os garfos requintados; de prata os pratos onde uma árvore de prata lavrada na concavidade das suas pratas recolhia o molho dos assados; de prata as fruteiras, de três bandejas redondas, coroadas por uma romã de prata; de prata os jarros de vinho, martelados pelos trabalhadores de prata; de prata as travessas de peixe com o seu volumoso pargo de prata sobre um entrelaçado de algas; de prata os saleiros, de prata os quebra-nozes, de prata os cálices, de prata as colherinhas com iniciais de enfeite…
Sem surpresa, A Relíquia foi um dos amores de Carpentier na juventude, como o afirmou no volume das Entrevistas (1985). Guerra da Cal argumentou convincentemente que Eça influenciou o poeta nicaraguense Rubén Dário, seu admirador e divulgador na América do Sul. A prosa poética que Darío disseminou pelos falantes de Espanhol talvez advenha do contacto com ele. Em 1921, André Gonzalez-Blanco, um tradutor espanhol de Eça, comprazia-se com o êxito dele em Espanha e América Latina. Ao não parecer ter um estilo impositivo, ele pôde ser distraidamente assimilado por escritores, que vivem atormentados por influências. Isso garantiu que o estilo dele viajasse mais longe e fosse mais penetrante, como um agente duplo, desarmando as precauções dos burlados com uma fachada de bonomia anódina. Tal não acontecerá com Saramago, cujo estilo é tão visual que o maior admirador se protege do contágio. Assim, Eça anda escondido como um vírus na matriz de muitos que nem sabem que o pegaram, ao passo que Saramago é como as catedrais góticas, boas para admirar mas que nenhum arquitecto respeitável quereria reproduzir nos dias de hoje porque já estão feitas.
Mas trata-se duma glória puramente metafísica, antiquada, lenta, penuriosamente póstuma, que não rende dividendos. É trabalhoso avaliar a sua extensão, até a sua veracidade. Montar meia dúzia de argumentos de que o romance latino-americano que influenciou o estilo de Saramago pode carregar dentro de si a linguagem de Eça não é o mesmo que prová-lo, nem tal é provável com a exactidão comercial do top de vendas. Os critérios de Tordo – “em qualquer século, em qualquer livraria, em qualquer país” – pressupõem rapidez, quantificação e visibilidade, são intrinsecamente capitalistas, a inconfundibilidade para ele é a mesma cozinhada por departamentos de marketing contratados para vender sabão: o que importa é deixar uma impressão forte na mente fraca do consumidor. A mente de Tordo é já a mente dum consumidor cujas defesas ruíram ante o ruído do espalhafato. O derradeiro critério aferidor de qualidade descambou no espúrio conceito de “universalidade”, que para ele se resume a traduções a rodos. Saramago cumpre o requisito, logo é universal.
Se as feições da ficção portuguesa actual a revelam como filha de Saramago, é por causa desse fácil filão. A moda daqui e d’agora pende para cenários exóticos, para países sem nome, para personagens estrangeiras – para maximizar as probabilidades de serem traduzidos, partindo da insegurança de que os estrangeiros não se interessarão por livros portugueses demasiado portugueses. Hoje em dia, mais interessante do que ler os livros, é ler as entrevistas dos autores, sociologicamente fascinantes. Há pouco, Cláudia Andrade lançou um romance passado num vago cenário de guerra: “Não tenho interesse em ficcionar sobre as questões históricas, políticas ou económicas de um conflito em particular, mas em “estudar” as contingências do comportamento humano numa situação dessas. As hipóteses que coloco sobre o percurso desse grupo de indivíduos à espera do horror da guerra, creio que não mudaria demasiado se especificasse o espaço-tempo da acção.” Outra explicação é que investigar dá trabalho, consome tempo; o genérico, o homogéneo, não atrapalham a vida a quem quer lançar um livro por ano para brincar ao “escritor profissional”. Saramago, em parte por culpa própria, consagrou o estratagema que os novos pensam essencial para o triunfo além-fronteiras. Inobstante os romances históricos dos anos 80, pouco antes do Nobel fazia fábulas atemporais e ageográficas. A trilogia dos lugares sem nome, de Tordo, é uma tentativa de duplicar tal sucesso: “A trilogia não tem geografia ou tempo físico, as personagens têm nomes estranhos que tanto podem ser ou não portugueses. Foi algo que aprendi com o Saramago dos últimos romances, o tentar abordar a literatura de outro modo.” Em 2015, Tordo associou a internacionalização da literatura portuguesa com a tendência do nobelizado para deixar de usar Portugal como cenário dos romances, pois sem esse empecilho, sem ter de pedir ao boçal leitor que faça um mínimo de esforço para se instruir sobre uma cultura fora das rotas internacionais, os negócios ficavam mais fáceis de fazer: “Talvez Saramago tenha aberto as portas, com esse rebentamento das fronteiras”. Demasiadas referências locais engasgam, ninguém conhece a história, as vedetas internacionais já deixaram de pernoitar por aqui para assistir ao PREC. Porquê obrigar o tradutor, editor e leitor a trabalhar um bocado? Porque não o genérico e o homogéneo? Porque não até livros passados no Japão, Brasil e Islândia, retratados com toda a superficialidade de quem só lá esteve dias ou semanas num “retiro de escritores”? Universais talvez não sejam no sentido de falar ao que há de mais comum a toda a humanidade, mas sempre fazem olhinhos a outros mercados. O que importa é desaparecer na multidão, afectar um cosmopolitismo que escamoteia hostilidade e desdém pela diferença e variedade, e por isso Saramago reúne as qualidades para se candidatar a santo padroeiro de todos os pragmáticos que querem triunfar a qualquer custo. É triste pensar que será esse o legado dele, que se tornou merecidamente um escritor de renome internacional graças aos primeiros romances, Levantado do Chão, Memorial do Chão, O Ano da Morte de Ricardo Reis, tão enraizados na sociedade e história portuguesas.
O Centenário de Eça salvou-o de ser o fantoche patrioteiro do Estado Novo. Pelas amostras que vou cheirando, o Saramago do Centenário será o vendido ao lucro fácil que os “herdeiros” e herdeiros pensam que foi e sob cujo beneplácito se autorizam a ser. Guardarei outro, o que encontrei em dezassete romances, especialmente nos que reli por mais me terem sensibilizado; o das personagens calejadas mas nunca cínicas em cujo convívio cresci; o da ironia que me ofereceu consolo e conselho contra um mundo cada vez mais curvado à cobiça. Guardarei o artesão cuja linguagem, quando eu quase nada conhecia da literatura portuguesa, me revelou que eu passara a vida usando um incrível instrumento sem limites de expressão. Em vez do mandante de Mamon, guardarei o humanista, o polemista, o irritante moralista, para quem a escrita foi um sopro da consciência.