Entrevista. A Garota Não: “As pessoas que fazem a cultura sentem-se muito abandonadas pelos governos”
A cantora e compositora Cátia Mazari Oliveira, conhecida como A Garota Não, considera que, à parte ideologias e partidos, “não há um programa político” que tenha “uma linha” a vincar que “a arte é um veículo para a cidadania”.
Em entrevista aos jornalistas, no final do concerto que deu no castelo de Sines, na quarta-feira, a artista reconhece que tem havido “um trabalho de luta e de resistência para que a arte, a cultura, tenha um papel no governo”, mas, ao mesmo tempo, ressalva que há “muitas opiniões contrárias”.
As pessoas que fazem a cultura “sentem-se muito abandonadas pelos governos”, comenta, assinalando que “há linhas políticas que, não sendo contra, também não se afirmam como sendo claramente a favor”.
Na ausência de “um discurso que seja inspirador”, não é que haja “um bloqueio”, mas “não há uma visão de que a cultura possa ter um papel tão construtor” como A Garota Não acredita que deve ter.
“Não há num programa político uma linha em que se perceba que a cultura é um veículo, que a arte é um veículo para uma cidadania, para um país bem construído”, lamenta.
“Eu, antes de ser música, fazia coisas muito diferentes — na área do desporto, sei lá, trabalhei numa caixa de supermercado… Mas a arte e a cultura, para mim, sempre foram uma coisa que eu, enquanto pessoa que consome, pessoa que assiste, me tornavam os horizontes mais alargados, me davam uma visão mais vasta, me fazem ser uma pessoa mais tolerante perante a diferença, me fazem ser alguém que confia mais no espaço do que outras pessoas que estão a representar nos possam dar”, ressalva.
Na estreia no Festival Músicos do Mundo, A Garota Não reconheceu que “há um respeito em relação à mensagem” que está a tentar passar.
“Sinto que sou mais um veículo do que propriamente um emissor. Sou um veículo de uma mensagem. A mensagem chega-me e eu retransmito”, realça.
O seu lema é “que esta Constituição se cumpra”, resume. “Os valores estão certos, mas a forma como estamos a concretizar não está”, aponta.
Nesta “frustração” reveem-se os mais velhos, que lutaram pela democracia, mas também os “jovens dos trabalhos precários”, que acumulam “três trabalhos para conseguir ter uma casa alugada”.
Quando, na música, aborda o tema da habitação, está a falar da sua vida e da das pessoas à sua volta. “É a vida de muita gente que esta gente conhece”, recorda.
Ao “olhar comum” juntam-se reações muito individuais e cada pessoa sente “de uma forma diferente” cada concerto seu.
É frequente irem ter consigo no ‘pós-palco’. A seguir ao concerto em Sines, tinha um senhor à espera, com dois discos para autografar, em lágrimas. “Isso comove-me”, confessa.
No concerto de Sines, como habitualmente, mostrou os nomes das mulheres assassinadas em contexto de violência doméstica em 2022.
A ideia é que quem nunca passou por uma situação dessas se sinta “parte de um todo” que há que mudar. Por vezes, outras vítimas, que não estão na lista, vêm dizer-lhe que são violentadas e assediadas moralmente, no trabalho e na vida privada, e que se identificam com as suas mensagens.
Nos concertos, Cátia quer destruir palavras como ódio, solidão, desigualdade e motivar “uma preocupação de conjunto” e a defesa da Constituição, que nomeia e volta e nomear.
“Sou mais do que uma Cátia que nasceu no bairro 2 de Abril [em Setúbal], sou uma cidadã de um lugar — de um país, no caso – que tem uma Constituição com uma série de direitos que não estão a ser cumpridos e que nós temos que fazer por cumprir”, insta.
O Músicas do Mundo “é um festival de muitos manifestos, de muita liberdade e onde as pessoas se sentem mesmo quase auspiciosamente livres para se expressarem no público”, classifica.
Atenta aos pormenores, diz que quando chegou a Sines, “uma das coisas” que identificou logo como “amor” foi “ver os trabalhadores, nos seus uniformes, aqueles trabalhadores que normalmente são muito secundarizados”, a comerem no castelo, “no sítio onde os artistas comem, no sítio onde a imprensa tem acesso, no sítio que é nobre”.
“Isso para mim é amor e é respeito. E o amor passa muito pelo respeito”, vinca.
Sobre a recente nomeação para os Globos de Ouro como melhor intérprete musical, A Garota Não relativiza e diz que fica “dividida” sobre o processo de escolha.
Mas sente-se lisonjeada, até porque não vem da indústria musical nem se move no circuito comercial, apostando na edição de autor e na produção caseira.
“Depois há toda aquela preocupação ‘qual é o vestido que vou levar, qual é o cabeleireiro que me vai pentear?’ e estar na música para mim é muito longe disso”, descarta.