Entrevista. Acácio de Almeida: “Em ‘Objectos de Luz’ estão coisas do meu passado, mas também está o passado do filme”
“Revisitar é encontrar espaços, mas que já não são dos filmes”, escuta-se no filme. Pois, é, somos nós que os vemos. E nos apoderamos deles. E eles de nós.” (Acácio de Almeida, in Objectos de Luz).
O festival de Locarno recebeu, no dia 6, Objectos de Luz, fora de competição, a estreia de Acácio de Almeia (e também da sua companheira de várias décadas Marie Carré) na realização. A presença sublinha precisamente a juventude que se sente no seu olhar. E que reflecte, ainda que se uma forma subliminar, a história de amor deste casal, que se funde com os rostos e uma paixão intemporal pelo cinema.
Aos 84 anos, o director de fotografia Acácio de Almeida, cuja câmara captou toda a alma do Cinema Novo, em mais de 150 filmes, estreia-se na realização com Objectos de Luz. Um filme que reflecte precisamente a luz do seu trabalho, mesmo que este seja, ao mesmo tempo, um filme sobre todo o cinema. E talvez seja mesmo esse seu lado mais didático que confere a singularidade a Objectos de Luz. Pois essa dimensão de passagem funciona como uma reaprendizagem, uma redescoberta do cinema. Como um miúdo que lê, a certa altura no filme, um texto sobre a Luz no livro da 4ª classe.
Talvez por isso seja inevitável considerar este como um filme profundamente autoral e confessional, feito a quatro mãos. Mas que assume, parece-nos, o comprovativo do ADN onde se inscreve o amor que une este casal e a comum paixão pelo cinema.
É então no centro dessa grande beleza que se partilha a recordação mais singela das imagens icónicas, guardadas em infinitas latas de película — os tais fotões que se encontram e se fundem, produzindo uma luz nova, com essa íntima conotação difícil de afastar, na belíssima analogia que sugere com o amor que produz novos seres. Sejam eles em carne e osso, ou sejam filmes — neste caso será a mesma coisa. Veremos excertos de filmes de todos os grandes do cinema português: de Manoel Oliveira a António da Cunha Telles, António Reis e Margarida Cordeiro, de Paulo Rocha e César Monteiro, João Botelho, Raul Ruiz, Alan Tanner, etc, etc.
Numa das cenas mais surpreendentes do filme, escutam-se vozes aprisionadas da película que reclamam, “vamos ser etiquetados” e se revoltam, chamando a luz: “queremos brilhar”! “Vais-me concertar, não vais?”, implora uma voz. “Sim, claro que vou”, responde o timbre de Acácio.
Por aí se escutam as mais belas palavras de ordem aprendidas a 25 de Abril, no renascimento daquela nação. Ou a presença do rosto de Isabel Ruth (ver quais filmes) e, sobretudo, Luís Miguel Cintra no formidável plano campo-contra campo enfrentando-se a si próprio, qual feitiço do cinema que nos olha da forma mais penetrante. Ou o rosto de Maria Cabral prestes a ilustrar uma geração, em O Recado (1971). Entre muitos excertos (seguramente difíceis de seleccionar) Mas iremos comover-nos sempre com a escutar Zé Mário Branco a cantar “se eu morrer e tu ficares, adora-me o meu retrato”, em Agosto.
Em pouco mais de uma hora, percorre-se parte do olhar de Acácio (como se isso fosse possível!), e percebe-se como é importante a intenção de emoção das palavras de Marie Carré que adornam as conversas à mesa, a dois, que foi registando. E percebemos também como a luz da Arrábida recortando a silhueta desta actriz francesa que se encantou pela nossa terra, naquele Agosto, de Jorge Silva Melo (1988), conserva uma grande parte da sua beleza. Seja no desenho voluntarioso da sobrancelha que se impregna na nossa memória, mas também no breve capricho solar que a iluminou durante breves minutos naquela esplanada sobranceira ao espaço da feira da Ladra, em Lisboa, em que se fala de Luz, do amor; do cinema, claro, da vida e da morte.
Uma conversa que se estendeu e que foi muito além do filme, encontrando o homem, ou o menino, que um dia se interrogou com o que estava para além do sonho de uma máquina de projectar imagens. Quem sabe se o seu próximo filme não irá revelar essa história… Uma conversa saborosa e longa, onde fica evidente a tremenda cumplicidade e mesmo a complementaridade, o jogo dos afectos, entre um e outro.
O Acácio é aquela pessoa que personifica todo o cinema português. Pelo menos o cinema novo. No fundo, o cinema que interessa…
Pois é entrei no cinema novo. E não sei o que é o cinema velho. Mas isso são coisas que acontecem.
Este filme Objetos de Luz vai a Locarno. O Acácio e a Marie vão a Locarno apresentar uma estreia da realização. Não deixa de ser caricato para o cineasta que fez a imagem de uma boa parte do cinema português, em mais de 150 filmes como diretor de fotografia. E agora surge como um jovem realizador.
E sou, na realidade sou (risos).
É essa juventude que eu gostava que se referisse. Porque no fundo — e esta é a minha pergunta —, porque este filme, esta luz, parece-me a mim, estava para acontecer há já muito tempo. Não será?
Sim, eu tive algumas experiências, mas não podem ser consideradas filmes. Talvez a resposta a este filme co-realizado com a Marie poderá estar contida na pergunta que me fez antes. Estou na verdade em todos os filmes de uma determinada geração.
Sim, pelo menos, a sua luz.
A luz não é minha, ela está lá. É o olhar que todos olham. Eu nunca tive necessidade de fazer nenhum filme porque filmes obedecem a necessidades. É como escrever. É um processo que começa a crescer dentro de nós. À medida que eu ia fazendo os filmes e ia tendo a possibilidade de descarregar emoções sentimentos, eu deixei de os ter no quotidiano, no dia-a-dia. E a pressão nunca foi grande. Mesmo assim, é a partir de uma determinada altura, desde que vivo com a Marie – e já lá vão 30 e tantos anos -, falávamos em casa, de cinema, de teatro. E com o nosso filho. E juntos falávamos. Foi nessa altura que sentimos que começava a haver necessidade de escrever, de registar as coisas. A Marie foi escrevendo. Gravando e escrevendo.
MC – Não é bem assim. Este processo nasceu de uma forma espontânea. Acácio, não vou dar segredo nenhum — ele tem uma paixão que é luz — mas ultrapassa a luz. Não vou dizer que é uma inquietação, porque acho que já passei essa fase, mas acho que são, talvez, interrogações ou reflexões. A necessidade ou a curiosidade de se fazerem as perguntas que talvez estejam no filme. Quer dizer, uma parte imaterial. Foi aí que nos juntámos então de uma forma espontânea…
Mas isso é uma forma de amor… Ou seja, é também uma coisa imaterial…
MC – Totalmente. É isso mesmo.
AA – Sim, sim. É tudo isso.
MC – Então, nos almoços na nossa pequena casinha abordávamos esse assunto e tínhamos sempre discussões. Diálogos. Até que, a certa altura, percebi: quero fazer um filme com ele. É quase uma maneira de dizer: quero ter um filho dele. Anos mais tarde, é um pouco cliché dizer isto, tive o desejo de fazer isto com ele. Acontece que o Acácio trabalha no cinema, na luz. São sensibilidades que se cruzam. Daí a ideia de gravar com o meu iPod de todas as conversas. Foi isso que o salvou. Senão não haveria filme. Salvou porque todos os textos do ‘Homem da Luz’ são textos que vêm destes almoços a dois. Destas interrogações. A partir destas reflexões do Acácio, comecei a imaginar, começámos a imaginar os dois as cenas de filme. Pensamos até, de forma divertida, que esta película poderia questionar-se sobre o que estava a acontecer, por estar fechada numa lata.
Porque no fundo, é um mundo de fantasmas que habita nessas latas.
AA – Sim, o mundo de memória. De vivências, de coisas imaginadas… E que se juntam.
Mas esses são seres que também nos olham, não é verdade?
AA – Sim, sim. Nós olhamos e eles olham-nos.
E então, não resisto à pergunta que surge no início do filme: “Quem é que separou a luz do Cosmos?” (risos)…
AA – (Risos…) A gente fez o filme e no final ficaram algumas interrogações.
Isso é quase como perguntar-lhe a si, Acácio de Almeida, como é que essa luz lhe surgiu? Essa luz interior. No fundo, a vontade de fazer cinema.
AA – Ah, isso é interessante. Isso é outra coisa.
Quando estou a falar da Luz, estou também a falar do fotograma…
AA – É quando Óscar começa a brincar…
O Óscar?
AA – O Óscar Cruz é o meu alter-ego. É o que faz a pergunta “Luz, onde é que estás?” Ele está a brincar com a luz e a recordar-se. Ele vive a sombra das sombras, de coisas que acontecem. Salta no tempo e no espaço. É essa a magia do cinema. Há uma cena em que o miúdo está a ler e fala da luz. No fundo, a luz que aprendeu na escola. Ele está a ler e a soletrar um livro da quarta classe. O mesmo livro que eu li. No fundo, a perceção que existia na altura, no ensino oficial, e a perceção que existia da Luz.
E aí aparece de novo o Óscar…
AA – Sim, ele aparece sempre a fazer a passagem de cada cena. É ele que se inquieta quando ouve um barulho e vai à janela e vê um homem a regar, tentando fazer crescer uma árvore de películas. E depois sai dali preocupado, com um torniquete de água.
E qual é essa relação?
AA – Esse é o torniquete do filme O Cerco (de 1970, a estreia na realização de António da Cunha Telles). Onde está ele como fotógrafo, a fotografar a Maria Cabral. E essa é a minha evocação da Maria Cabral. São saltos no tempo.
MC – Mas, Acácio, para continuar a cena da criança, e do candeeiro com a luz a morrer. Acho que isso responde um pouco à pergunta do Paulo.
AA – Sim, dar à luz. A morrer é também viver. É que era comum dizer no cinema “a luz está a morrer”. Era um concerto da vida da morte que vivem juntas. A morte iminente vivemos sempre com ela.
Essa ideia de morte é algo com que o Acácio se defronta? Como encara essa ideia? É algo que o perturba?
AA – Já me perturbou, mas agora perturba menos. É curioso, mas é incógnita contínua sem grande susto. É uma conceção meramente materialista. Mas o lado material não é nosso. É a forma de nos manifestarmos. Na vida, é a forma que temos.
Só no cinema é que essa forma não desaparece.
AA – É isso, o cinema é uma prisão da memória.
Por isso, há pouco, eu perguntava: o Acácio é do Norte e veio dos anos 50 estudar para Lisboa. Mas, antes disso, a ideia e o desejo do cinema já existia. Quando sente que desperta em si essa ideia de desejo, essa curiosidade pelo cinema? Lembra-se?
AA – Lembro. A primeira máquina de projetar que eu vi era o modelo extremamente simples. Só tinha uma manivela. Um em cima, outro em baixo e uma luz do farol do automóvel se ligava uma bateria e andava para trás e para frente. Assim, o senhor fazia espetáculo. Mas isso é uma cena de um filme que ainda não está feito. Era um senhor que vinha de bicicleta no tempo dos camiões a gasógeno. E atrás dele tinha essa maquinetazinha.
Um cinema itinerante, portanto. Estaríamos em que ano mais ou menos?
AA – Eu teria oito anos. Os anos 40 talvez no início.
Imagino que isso seria para si quase um objeto mágico.
AA – Era estranho de uma beleza rara que nunca vi no cinema. Essa imagem ficou durante muitos anos. Mas havia também uma máquina fotográfica em casa e objetivo era parecida. Claro que desmontei a máquina fotográfica, etc. etc. Vi como imagem se formava todo o processamento da ótica.
Era, portanto, uma mente solta…
AA – Sim era livre. Eu, enquanto criança, apoderei-me de muitos mundos. Julgo que foi uma criança feliz porque tive muita liberdade. Muitas vezes sair de casa e passear noite. Muitas vezes era castigado. Não era rebelde, mas era livre, tinha curiosidade, gostava de trepar as árvores, conhecia o canto dos pássaros, conhecia os meninos, os ovos… O filme será o meu princípio, o Big Bang, o início de tudo. É um bocadinho isso, uma linha que procuro seguir. Embora tenha acontecido tudo de uma maneira muito natural.
Era aí que eu Interligaria o que aconteceu naquele Agosto, o Agosto do Jorge Silva Melo…
AA – (Risos…) Aí há muitas coisas que aconteceram…
Desde logo com luz, aquela maravilhosa luz da Arrábida, que também iluminou a Marie Carré… A Marie que também estava a experimentar essa luz do cinema.
MC – Sim, totalmente. Embora não faça muita ligação com o tema que me é caro dos objetos de luz.
Claro, essa ligação é minha é uma ligação pessoal, O lado afetivo com o Acácio.
MC – Claro, é como nos almoços de que falava e da vontade de fazer uma coisa uma partilha. Se calhar essa foi a origem de expressar esse desejo. Quando o Acácio disse que tudo aconteceu de maneira natural, é verdade. Mas as imagens surgem da ligação interior e do tema que, a mim, me ocupa toda minha vida, que é consciência. Não consigo separar a consciência desta parte da Luz. O Acácio conheci um senhor que é de uma elegância profunda de conhecimento, que é o Jean-Louis Schefer.
Ah, sim claro, o autor de L’Homme Ordinaire. Sim era ele que falava dos monstros da noite na sala escura e dos filmes que nos olham…
MC – E o Jean fala desse homem que anda na rua, por exemplo que refere no filme da Rita (Azevedo Gomes, intitulado Danses macabres, saquelettes et autres fantasies (2019)). E pode-se sentir através dos olhares das pessoas do corpo vê-se uma luz invisível um brilho. Há pessoas que sente que já não estão cá talvez seja essa luz que está a morrer… O Acácio, com todos os seus anos, conserva esta vibração da infância. Totalmente.
AA – Sim, concordo, todos os filmes que fiz tiveram essa linha.
Devo dizer que gosto muito de sentir uma certa pedagogia no seu filme no vosso filme.
AA – Sim, um certo tom explicativo.
Então, de certa forma, didática.
AA – Sim, esse tom sintetizado e muito curto tem a ver com as tuas conversas que a Maria guardou. Tudo isso é objeto de leitura. Mas, por vezes, eu não tenho resposta.
Sim, porque este é um filme que nos ensina a ver esse caminho. Imagino que não tenha sido fácil de escolher os excertos dos filmes que lá estão.
AA – Havia um critério. Quero grande plano do ator e da atriz.
Compreendo. A presença da Isabel Ruth e daquele plano impressionante do contraponto com o Luís Miguel Cintra…
MC – Essa é uma homenagem que o Acácio faz as atrizes aos actores. Embora aí haja muita coisa encriptada, embora não tenhamos pensado nela. O filme já não é nosso, o filme é!
Sim, o filme vai a Locarno e poderá acordar outras ideias…
AA – Sim, que acorde quem tiver que acordar (risos)…
O cinema português foi sempre complicado, pelo menos o cinema português desde o início dos anos 70. Mas até que ponto também esta dificuldade não aguça também o engenho, esse lado artesanal de procurar as suas soluções?
AA – Lembra-se, no filme, de ver o senhor carregar qualquer coisa que é que ele está a regar?
Está a regar a película e é o Acácio…
AA – Pois, ele está a ver se o cinema não morre. Mas o cinema está morto. O cinema está morto. O cinema, como conhecemos e como vivemos, está a morrer. Há uma esperança ainda pus que brota ainda…
Mas o que acha do digital no sentido da conservação de duplicação, ou seja, aquilo que faz o anime. Aí, o digital tem um outro papel. Poderá existir aí uma redescoberta do cinema, pelo menos, uma redescoberta do cinema português?
MC – Sim, claro. Nesse sentido digital é ótimo. Porque permitiu uma dinâmica de construção, uma nova forma de linguagem de uma nova estética. É o tempo de uma geração.
AA – Como fica só cristalizada no digital, pressupõe outras formas mais avançadas que vão aparecer.
Refiro-me até ao ‘seu’ Sangue, O Sangue, de Pedro Costa, que vamos poder ver numa cópia restaurada, no festival de Veneza, mas digital. É o mesmo filme, restaurado, mas já não é em película.
AA – Não é a mesma matéria. Mas aproximam-se.
Mas os filmes em que participou vão ser todos restaurados e convertidos para digital. Gerando outros públicos, não é?
AA – Sim, sim. Era inevitável. Mas isso nem tem grande problema, porque cada público consome aquilo que é usado naquele momento. Não tem memória de como o filme foi feito. E mesmo se viu em filme não tem memória para perceber a diferença muitos anos depois.
Vimos recentemente O Agosto, em cópia nova, digital, e também teremos O Sangue, em cópia digital. Como é que o director de fotografia de desses filmes os encara agora?
AA – Por acaso, ainda hoje estive a ver o Silvestre (1981), do João César Monteiro, com uma cópia muito boa. Um negativo muto bem conservado pelo ANIM. Só que ao fazer a transposição do analógico para o digital, há um processo de aceleração dos pigmentos e da textura. É o tal fotão aprisionado. Tudo é discutível e todos os pontos de vista estão correctos. O digital e o analógico não são iguais. Há nuances de cor e de brilho, de vigor, de energia, que eu senti particularmente num filme em que participei na recuperação da cópia, que é A Cidade Branca (1983, do Alain Tanner). Estive a fazer esse trabalho na Suíça, durante uma semana, e ficou impecável.
O que poderemos entender pela recuperação da cópia?
AA – Bom, é transferir todas as imagens que existiam, e estavam totalmente deterioradas para imagem digital. Porquê? Porque foi um filme que circulou muito. E todas as cópias foram feitas através de um único negativo, que suportou mais de 100 cópias. Normalmente, faz-se um internegativo que sustenta todos esses desgastes. Nunca houve a preocupação de ter uma cópia salvaguardada. Nem a Cinemateca. Talvez não pensassem que o filme iria ter tanto sucesso. Mas, quando foi estreada novamente na Cinemateca, a cópia estava impecável. Só que, para mim, o que lhe faltava era o brilho da cor. Mas estava impecável. E ninguém pode dizer melhor que eu, porque estive na origem e sinto que não tem o mesmo vigor da imagem. Aparentemente, está igual, mas não é a mesma imagem. É um sentimento, mas não o posso demonstrar. E que tenho sentido ao longo das várias recuperações que tenho feito. Mas esta foi, na verdade, a melhor recuperação que fiz.
Há muito pouco tempo, no festival de Vila do Conde, vi o seu trabalho em alguns filmes do António Campos. Sobretudo, Os Pescadores na Praia da Vieira…
AA – Sim, era um filme em que íamos morrendo… Um filme que nunca vi. Eu estive em frente à morte e ela não quis levar-me.
É isso, é essa redescoberta do cinema português que se pode fazer hoje que tornas este processo de digitalização tão relevante, não acha?
AA – Sim, a memória funciona por estímulos. Mas há muita gente a trabalhar nisso e com a preocupação da continuidade da memória. Da nossa memória colectiva. Do nosso passado.
É à luz que voltamos, não é?
AA – Procuro fazer a mesma que fazia no suporte analógico. Há um crítico de cinema que percebeu bem isso quando diz que eu transitei do analógico para o digital com grande beleza.
Só mesmo, mesmo para terminar: Objectos de Luz é o seu (o vosso) primeiro filme, mas não será o último, pois não?
AA – É o nosso primeiro filme. Nós falámos pouco, porque há muita coisa da Maria. O filme não é só aquilo que falámos e o meu passado. O que está lá são coisas do meu passado, mas também há o passado do filme, aquilo que aconteceu no filme. A substância do próprio filme.
Eu acho que ali está o cinema inteiro.
AA – Está o cinema inteiro.
MC – O questionamento da realidade. A natureza do que nós olhamos, o que somos nós em relação ao olhar.
No fundo, a consciência de que falava há pouco?…
MC – (risos) Sim, é isso mesmo. Mas sim, o Acácio tem em mente outro projecto. É engraçado, porque tem uma curta, em que só pode ser dele. Uma curta que temos dificuldade em montar. O Acácio teve uma ideia, que não se pode de momento divulgar, mas que só ele pode fazer. Isso é engraçado.
Mas tem outra que é só consigo, certo?
MC – Sim, já está escrita. E já teve um apoio. Mas o Acácio teve outra ideia, mas não me vejo entrar. Talvez será o nosso último encontro. Sei lá…
AA – Se fizer um outro, o máximo que poderei fazer — se os deuses estiverem connosco — será esse filme. Mas tudo à volta do mesmo tema, é curioso. E depois teria um outro sobre a minha infância.
Sobre a flor do sabugueiro….
AA – A flor do sabugueiro é a minha infância.
Pode contar-nos um pouco dessa história?
AA – Quando eu era criança, tirava o sabugo à flor de sabugueiro, que ficava oca. Depois fazia umas buchas em estopa. E fazia assim um cabuz, à semelhança do arcabuz. É uma história dramática, forte, que fala dos meus tempos e que fala um bocadinho da projecção. E de outras coisas mais. Fala da vida e da morte. E o outro é da morte e da vida (risos).