Entrevista. Adriana Calcanhotto: “A vigilância é parte importante na luta antirracista, pelos direitos humanos e no ativismo ambiental”
Adriana Calcanhotto está de volta aos discos e às digressões. Depois de Só, o disco que gravou durante o confinamento “por não saber fazer pão”, volta agora com Errante, o seu 13.º álbum de originais numa carreira rica em influências, em homenagens e em caminhos.
“É muito difícil viver num mundo sem Gal”, diz-nos aos primeiros minutos da conversa que tivemos há dias e a dias de Adriana Calcanhotto embarcar numa minidigressão de datas que Gal Costa deixou marcadas, com reportório e banda da cantora falecida no final do ano passado. Com o convite de Marcos Preto, da equipa de Gal Costa, Adriana revisitou temas de Gal para se aperceber que muitas coisas estão presentes no seu trabalho “por causa dela, que foram aprendidas com ela. Essa coisa de liberdade do repertório, de cantar desde os poetas ditos marginais ou os poetas mais rarefeitos, até às coisas muito populares e tudo de forma muito espontânea, tudo por gostar das canções”.
Uma das canções de Adriana que Gal Costa interpretou foi Esquadros, do disco Perfil de 2001. Neste, já se falava da errância de “andar pelo mundo”, que se cimenta também com o disco a ser lançado esta sexta-feira, 31 de março. Foi neste “incómodo de alma, da porção nómada, de estar confinada em casa por obrigação, de momentos de absoluto tédio e desesperança também” que Adriana teve alguns momentos de angústia por não estar a voar de um país para o outro, a ser errante. E foi por isso que assim que foi possível ir para estúdio decidiu “chamar músicos que também estavam confinados, loucos para tocar presencialmente. Uma libertação, porque houve um momento, mais para o início da pandemia, antes da vacina, antes de tudo, que não dava para saber se ia ter mundo de novo”. Depois de um período em que a incerteza “foi a parte mais difícil de todas”, em que se constatou que “nós não estávamos absolutamente preparados para uma coisa que é cíclica, que acontece sempre, foi bom a gente parar para pensar. Aqui no Brasil, obrigou-nos a pensar, não só nas questões sanitárias como, nas questões políticas, nas questões de como votar, nas questões sociais, em muitas coisas muito profundas”.
Foi na redescoberta de “como a vida podia voltar a ser e que algumas coisas são muito boas, de poder desfrutar delas e vivê-las como o facto de fazer música com pessoas” que Errante foi gravado.
Algures no processo, o tema das conversas deixou de ser a pandemia para passar a ser o da incerteza política, de uma polarização. E numa altura em que os direitos das mulheres se viram diminuídos, por força de um regime que não as respeita, Adriana Calcanhotto canta em Quem te disse? “não me quer porque sou branca/não me quer eu não sou moça/ não sou por ser mulher” porque “às vezes, damos os direitos damos por adquiridos, mas que é preciso lutar por eles todos os dias. Havia uma ingenuidade de pensar que as coisas que estão conquistadas, uma vez conquistadas, conquistadas estão. Mas essa não é a prática, em termos políticos e em termos da luta feminista. A gente precisa de ficar vigilante. Aqui no Brasil, não podemos deixar de estar vigilantes, um segundo sequer, em relação às coisas já conquistadas. Porque aqui tem, inclusive, direitos trabalhistas conquistados que retrocederam. Coisas que a gente já conquistou e que voltaram para trás e que a gente precisa ganhar de novo e estar vigilante de novo. Essa canção fala também do amadurecimento. Uma mulher amadurece, deixa de ser jovem e ela fica invisível. Ela não tem mais função nesse pensamento machista, nesse pensamento vigente. Então eu acho que a vigilância é parte muito importante dessas lutas, na luta antirracista, pelos direitos humanos, no ativismo ambiental, a vigilância é muito importante.”
Adriana Calcanhotto viveu alguns anos em Coimbra, onde deu aulas e cursou Antropologia. Nas estadas por Portugal, perguntaram-lhe se já se sentia mais portuguesa do que brasileira, ao que respondeu ser “mais brasileira do que nunca”. A verdade, diz, é que “a minha porção portuguesa não está na geografia, é anterior a isso. Ao contrário, viajando pelo mundo, quanto mais pelo mundo eu ando e quanto mais distante geograficamente do Brasil, mais brasileira eu me sinto.” Quando a questionam porque não tira o passaporte italiano ou português, responde sempre que o seu passaporte é orgulhosamente brasileiro e, quando está fora do Brasil, o seu pensamento é sempre “do ponto de vista da língua portuguesa, do entendimento do mundo via Brasil, é impossível mudar”. Mas Portugal é influência em tudo o que faz, pensa, produz, canta ou escreve, fruto do estreitamento com o país ao longo dos anos.
“A minha vida está emaranhada com Portugal”, diz-nos. Depois de descobrir que tem antepassados judeus que fugiram do Porto para o Brasil por serem judeus, no século XVI, a sua escolha de errar pelo mundo parece fazer-lhe mais sentido por ter “a errância no sangue antes de ter escolhido a errância”. É nos caminhos que se depara “com pessoas que estão errando o mundo, não por escolha, ao contrário, por falta de escolha. Estão errando o mundo porque são perseguidos, porque não têm nacionalidade, porque querem uma vida melhor, assim como pessoas que migram, que vêm para o Brasil e aqui em busca de uma vida melhor, morrem assassinados. Isso não são escolhas, isso é falta de escolha.”
O disco Errante termina com Nômade, onde Adriana canta “casa é o corpo, é o que te entrego e sou tudo o que carrego amanhã cedo”. Relembrando quando andou no autocarro de Gilberto Gil pela Europa, constatou que “a estrada é implacável” para todos. Também Gilberto Gil se esquecia da chave do quarto de hotel no bolso para a encontrar 3 dias depois, já numa outra cidade. O desejo de estar com Gilberto Gil na estrada era um sonho antigo. A estrada onde se dorme mal, come mal, sai-se do autocarro, entra-se no autocarro para ficar 20 horas fechado nele, mas a disciplina, a generosidade, o rigor, a paciência de Gilberto Gil foi o que a deixou maravilhada. “A ideia de casa e corpo é o pensamento dos nómadas, a sua casa é onde você está. Quando recebe alguém, é no seu corpo. E isso liga com uma proposição da Lygia Clark, que usa essa mesma expressão “a casa é o corpo“. Então, essas coisas estão juntas nessa canção, que nasce a partir do Gilberto Gil, e a batida da música nasce do ritmo desse ônibus. Eu fiquei tocando violão sentada no chão do ônibus, sentindo a vibração do ônibus andando, e dali saiu a batida do violão e eu fiz a canção, pensando, lembrando dele, vendo ele, dizendo coisas, e ele se movimentando na estrada entre o ensaio, ônibus, hotel, chá, etc. Da mesma observação dele, que leva uma vida na estrada. E a constatação de que sou uma alma nómada e que uma alma nómada confinada na pandemia, não ficou feliz.”
Ao longo da carreira de três décadas, Adriana Calcanhotto associa o samba à procura de felicidade. Pegando no que Vinicius nos diz, que para fazer um samba com beleza é também preciso um pouco de tristeza, Adriana diz-nos concordar com Vinicius porque “samba é música preta e embora a música seja uma comunhão, uma música para dançar e festivo, nasce dessa tristeza do preconceito, do não reconhecimento, do desprezo, da separação, do racismo no final das contas. Vendo esse argumento que eu acho interessante de que os brancos acharem que todos os negros são musicais, todo o negro nasce tocando tambor, sabendo música e tudo, que é um jeito de não dar o crédito, do esforço, da criatividade, do aprendizado. Você, por ser negro, nasce musical? Não, não é assim. Você aprende, você estuda, você trabalha, você cria, você amadurece, você aprende, é um jeito de você tirar tudo isso do lance. E tudo isso está contido no verso do Vinicius.”
É com a procura de novos caminhos, de emaranhamentos, de aprendizagens, de procuras de amor, de refúgios de fantasia, do encontro de felicidade no samba que Adriana Calcanhotto nos apresenta Errante, disponível nas plataformas de streaming e nas lojas a 31 de Março e que pode ser visto na minidigressão que fará em Portugal nas seguintes datas e locais:
24.Maio | Coimbra | Convento São Francisco
26.Maio | Lisboa | CCB
27.Maio | Estarreja | Cine-Teatro
29.Maio | Ponta Delgada | Teatro Micaelense
31.Maio | Porto | Casa da Música
02.Junho | Ourém | Teatro Municipal
03.Junho | Vila Real | Teatro de Vila Real
5.Junho | Setúbal | Fórum Luísa Todi
23.Junho | Faro | Teatro das Figuras