Entrevista. Ana Lua Caiano: “Acho que é giro a tradição ir evoluindo e não é um desrespeito pela música”
Ana Lua Caiano é um nome ainda bastante recente na cena musical nacional, mas o impacto que está a ter desde que lançou o seu primeiro EP, Cheguei Tarde a Ontem, em Maio de 2022, é inegável. A música que a jovem lisboeta faz é o cruzamento entre música tradicional portuguesa e música electrónica que fazia falta. Batidas que devem à tradição popular, mas de produção forte, melodias orelhudas rodeadas de sintetizadores industriais e letras poéticas carregadas de actualidade e mordacidade compõem o buquê de canções como “Mão na Mão”, “Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou” e “Se Dançar É Só Depois”. Estes três singles anteviram o lançamento do seu segundo EP em menos de um ano, Se Dançar É Só Depois, a sair no próximo dia 5 de Maio.
Por detrás deste som idiossincrático e inovador está uma jovem que diz ser envergonhada, mas que na sua música transmite uma força invulgar. Desde muito nova que se encontra no meio da música, tendo começado a aprender piano aos 6 anos de idade. Após quatro anos no curso regular do Hot Clube de Portugal e da passagem por algumas bandas como vocalista, finalmente seguiu o bichinho da composição — que diz sempre ter existido em si. Foi a pandemia que a permitiu explorar fazer música por si mesma, descobrindo então a paixão pela produção musical que a levaria a criar as canções do seu primeiro projecto a solo.
Tivemos oportunidade de conversar com a artista sobre a sua música, identidade visual, tradição musical portuguesa e a série de concertos que dará na Península Ibérica ao longo do mês de Maio, entre outras coisas.
O que é que te interessou em cruzar a música tradicional com música electrónica?
Acho que foi uma coisa que surgiu bastante naturalmente. Desde muito pequenina que ouço música tradicional e cantautores que se inspiram também na música tradicional, e portanto era algo que estava muito dentro de mim. Depois comecei a gostar de explorar outros géneros musicais, coisas mais experimentais, mais alternativas… Antes da pandemia, inscrevi-me em montes de workshops de música concreta, fazer música com sintetizadores no telemóvel… assim coisas meio malucas [risos]. E comecei a apaixonar-me pelos sintetizadores e por música que não estava habituada a tocar. Comprei um sintetizador e depois, na pandemia, estes dois gostos e influências acabaram por se juntar de uma forma não planeada. Tinha instrumentos tradicionais, tinha sintetizadores e pronto, aconteceu.
Achas que Portugal respeita e mantém as tradições musicais que tem?
Quando falo com pessoas mais velhas, dizem que há uns 15 anos era impensável alguém mexer na guitarra portuguesa, porque se calhar se olhava para o fado como algo intocável. Eu acho que a música tradicional e a música popular é aquilo que acontece no dia-a-dia, portanto faz parte mexermos nessas coisas, porque senão vamos estar sempre presos a uma coisa que se calhar já não faz sentido. Hoje em dia há outros tipos de ferramentas, tecnologias e instrumentos, temos mais acesso a coisas de outros sítios que não Portugal… e portanto acho que é giro a tradição ir evoluindo e não é um desrespeito pela música, é simplesmente crescer e misturar coisas. Eu gosto muito disso.
Como é que constróis as tuas canções?
Depende um bocadinho, mas acho que, regra geral, aparece sempre primeiro a música. Eu gravo muitas coisas no meu telemóvel, portanto aparecem muitas melodias espontaneamente. Depois construo uma base rítmica e exploro essas melodias que já tinha feito no programa. Muitas vezes, quando eu estou a cantar, acabo por dizer palavras um bocado aleatórias. É aquilo que vai saindo e às vezes, por acaso, há palavras que eu gosto de ouvir na música ou sinto que podem fazer sentido. Muitas vezes parto desse pequeno conjunto de palavras, que eu depois desenvolvo e crio uma música e uma letra com isso.
Então é mais por sons.
Sim. Eu antes fazia ao contrário, mas nunca conseguia manter a letra tal como ela era e comecei a gostar mais de fazer o processo inverso e deixar que a música me sugerisse as palavras.
As tuas primeiras canções foram criadas durante o isolamento. Sentes que sem a pandemia, o teu som seria completamente diferente?
Pois, não sei. Antes de existir a pandemia, nunca pensei ter um projecto a solo, achava “ah, isto nunca vai acontecer”. Tive várias bandas com músicas minhas, mas sempre tiveram o nome de uma banda. Não sei, eu sinto que provavelmente teria chegado aqui na mesma, mas se calhar teria demorado um bocadinho mais de tempo, porque este interesse pela produção… já existia o bichinho antes da pandemia, só que a pandemia é que me permitiu explorar verdadeiramente isso. Já explorava, super mal, fazia coisas no GarageBand, coisas horríveis, mas pronto, nunca tinha tido tempo para aperfeiçoar.
As tuas letras são muito poéticas, mas também por vezes crípticas. Sentes que escolhes um caminho menos directo para passar a tua mensagem? É uma escolha consciente?
Quando eu leio um livro, gosto que o livro me faça pensar e que as palavras usadas não sejam completamente óbvias. Eu penso muito sobre a letra, vou melhorando e vou mudando muitas palavras. Quando sinto que há coisas que são demasiado óbvias, tento dizer por maneiras diferentes. O que acontece é isso, tenho ideias e tento transmiti-las da forma mais inesperada que naquele momento eu consigo. Portanto sim, tenho muita consciência de tentar que tudo soe bem com a música e que tudo seja dito nas sílabas certas, mas também há essa preocupação com a letra.
As tuas canções normalmente soam mais sombrias, tanto pela sonoridade meio industrial, como pelas letras. São as coisas más que te inspiram a compor e a criar?
As melodias sinto que é a coisa mais espontânea. É raro eu sentar-me ao piano ou um instrumento e fazer uma harmonia e a partir dessa harmonia fazer a música. Acho que se calhar tenho uma tendência para fazer coisas mais melancólicas, mas ao mesmo tempo não paradas… não sei explicar. Sobre as letras, eu sempre gostei de pensar acerca daquilo que me rodeia e que me inquieta. Se calhar também tenho coisas boas a dizer [risos], mas sinto que as coisas más são aquilo que me inspira mais. Não sei se tenho alguma música assim mais positiva, acho que não tenho nenhuma. Acho que é tudo a olhar para as coisas negativas. Não que eu não seja uma pessoa feliz, mas simplesmente é a maneira como vejo as coisas. Sou pessimista, se calhar.
A tua identidade visual é muito forte. De onde vêm as inspirações para ela?
A minha irmã é cineasta, estudou em Inglaterra e está agora lá a trabalhar. Na pandemia, comecei a fazer um projecto com ela, em que eu fazia umas músicas e ela fazia os vídeos. Ela sempre teve uma estética muito específica, com cores fortes e com simetrias e assimetrias… não sei, explorações, principalmente, da cor e de situações estranhas. Eu acho que isso depois apareceu um bocadinho a trabalhar com ela, porque estivemos muito tempo juntas a fazer coisas durante a pandemia e a explorar. Acho que se tornou a minha linguagem visual, mas partiu dessa exploração com a minha irmã.
Começaste a solo nem há um ano, mas já lançaste um EP e tens outro a caminho. És muito prolífica?
Na maior parte dos dias, das semanas e dos meses, eu não crio nada. Às vezes acontece ter um período, sei lá, de um mês, em que estou com muita vontade de compor e componho tipo 30 músicas. Se calhar a maior parte delas é horrível, mas noutra altura eu vou ouvir essas coisas que já fiz, selecciono, percebo do que é que gosto mais ou não gosto, começo a desenvolver as letras… Estes dois EPs já foram feitos há algum tempo e estou a trabalhar num álbum que também já está feito tipo há três anos. Volta e meia acontece gravar uma melodia — se calhar já tenho várias melodias gravadas desde o início do ano, para aí umas seis ou sete, que acho que podem ser engraçadas. Depois é sempre esse processo, de passar para o computador as melodias, depois quando me apetece ponho no programa e começo a fazer experiências, quando me apetece desenvolvo… Quando me apetece… quando tenho tempo! Porque depois, quando se está a trabalhar num álbum fica um bocadinho difícil estar a compor ou estar completamente disponível para criar novas coisas, porque tenho de acabar estas coisas. Mas sempre que consigo, tento compor e desenvolver estas ideias.
O que sentes que diferencia estes teus dois trabalhos [os EPs Cheguei Tarde a Ontem e Se Dançar É Só Depois]?
Logo quando eu pensei nesta possibilidade de lançar música, já tinha idealizado estes dois EPs, porque comecei a trabalhar com a Chinfrim Discos e já tinha muitas músicas, a maior parte destas músicas e outras que ainda nem lancei. Eles sugeriram na altura, como eu ainda não tinha nada lançado, dividir as coisas ao meio. Houve músicas que saíram, outras novas que entraram… Na altura, era quase como se fosse um álbum que acabou por ser dividido em dois; também por questões de financiamento, é sempre mais difícil gravar tudo de uma vez, que seriam 12 músicas. E então eu sinto que, de certa forma, eles são uma espécie de continuação. Mas eu sinto que, neste segundo EP, trabalhei nele mais intensamente no final de 2022, portanto também tem alguns elementos novos. Sinto que explorei mais a desconstrução rítmica em algumas músicas, acho que existem partes instrumentais que fogem a uma canção mais tradicional. Mas pronto, isso faz sempre parte, também à medida que vou ouvindo novas coisas e vou tendo novas maneiras de trabalhar, a música vai sempre mudando um bocadinho, mas sinto que a essência e as ideias continuam essencialmente as mesmas.
Ter uma carreira a solo está a ser o que esperavas?
Sim, está a ser bom. Eu sempre gostei muito de trabalhar com pessoas, mas sou uma pessoa que gosta muito de trabalhar sozinha, gosto de ter o meu silêncio. Gosto muito de trabalhar, trabalho demasiado. Como produzo as coisas e como faço um pouco de tudo… não sei, estou a gostar muito. Não é que não goste de trabalhar com outras pessoas, também sinto falta de ter inputs e mando as músicas a montes de gente, também para me ajudar nessa parte, porque às vezes quando uma pessoa trabalha muito tempo, deixa de ter percepção do que é que pode ficar melhor. Estou mesmo contente, não esperava ter uma boa reacção. Quando faço música não faço por isso, faço por mim e porque sinto que preciso de fechar aquele capítulo para avançar para a próxima coisa, mas é bom saber que, no meio disso, há quem esteja a gostar das músicas e quem se identifica.
Sentes-te confortável em palco?
Sinto-me muito confortável. Quando tocava em bandas e só cantava, sentia-me desconfortável, porque quando parava de cantar não sabia o que fazer. Fazia umas coisas, mas não sentia que era natural, porque sou uma pessoa envergonhada. O facto de ter muitas coisas para fazer dá-me um certo conforto, apesar de haver muita adrenalina envolvida, de ser uma coisa em que, se me engano, tenho de me desenvencilhar e pronto, não há ninguém para me ajudar. Mas sinto-me bastante confortável e tento não pensar muito nas pessoas que estão do outro lado. Eu gosto quando há muitas pessoas, é mais fácil sentir a energia das pessoas.
O que podemos esperar dos concertos que vão acontecer?
Estes concertos de Maio… vou fazer uma tour de clubes a apresentar este EP [Se Dançar É Só Depois]. O meu objectivo é apresentar todas as músicas do primeiro EP e todas as músicas do segundo EP, portanto há mesmo muitas músicas novas que nunca experimentei tocar ao vivo. Acho que vai ser divertido, porque pelo menos para mim é. Eu gosto de ter a música feita e gravada e depois tenho de fazer uma adaptação ao vivo. Eu não gosto muito que se perceba que são loops, tento fazer as coisas muito rapidamente em palco. Não é que não goste que se perceba, mas eu gosto que as pessoas sintam que aquilo, apesar de tudo, é uma canção. As músicas vão ser um bocadinho diferentes daquilo que são gravadas, mas eu tento manter a essência e pronto, espero que gostem dos temas novos que tenho para apresentar.
Digressão de Ana Lua Caiano:
5 de Maio – Casa da Cultura, Setúbal
6 de Maio – ZDB, Lisboa
12 de Maio – Salão Brazil, Coimbra
19 de Maio – Maus Hábitos, Porto
20 de Maio – Sala Radar, Vigo (Espanha)
27 de Maio – Bang Venue, Torres Vedras