Entrevista. Antonio Monegal: “A situação que vivemos é muito parecida com o que acontecia nos anos 30. Temos de procurar os culpados e livrar-nos deles”

por Ana Monteiro Fernandes,    2 Março, 2025
Entrevista. Antonio Monegal: “A situação que vivemos é muito parecida com o que acontecia nos anos 30. Temos de procurar os culpados e livrar-nos deles”
Antonio Monegal / Fotografia de Noemí Elias

“O ser humano tem medo de reconhecer que o mal está dentro de si. Mas é assim mesmo, o mal está dentro do ser humano e é tão cultural quanto o bem”, explica o catalão Antonio Monegal, professor catedrático de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Universidad Pompeu Fabra, Licenciado em Filosofia pela Universidad de Barcelona e doutorado em Harvard em 1989.

O que saberão da guerra aqueles que não estiveram lá? Certamente conhecerão os conflitos através de um terceiro produto – um relato, um livro, um quadro ou uma fotografia – concebido por quem viveu em primeira mão um conflito. No entanto, quando questionado sobre a forma como a imprensa faz a cobertura dos conflitos atuais, revela: “É muito difícil, agora, enviar profissionais para se fazer a cobertura dos conflitos. Há muitos que ninguém cobre e estão ‘desaparecidos’. Sabemos o que está a acontecer na Palestina e na Ucrânia, mas há pouca informação sobre o que está a acontecer no Sudão e no Iémen” e completa “há, por isso mesmo, alturas em que a limitação da informação faz-nos crer que há, apenas, duas guerras no mundo quando há 40.” Porque é que, na visão do professor, os extremos políticos estão a emergir agora? Antonio Monegal acha curioso como “num momento em que todos os problemas económicos provêm da desigualdade e da acumulação da riqueza nas mãos de poucos, estes poucos estejam a colocar a culpa dos problemas nos pobres. Isso é um grande paradoxo, os multimilionários perseguirem os pobres.” Refere também que os tempos atuais se assemelham aos anos 30, uma vez que continua a busca por culpados, antes os judeus e, atualmente, os imigrantes. 

“O Silêncio da Guerra” é o seu novo livro recentemente editado em Portugal, pela Objectiva, que faz parte do grupo Penguin, e a Comunidade Cultura e Arte (CCA) falou com o escritor que marcou presença na edição deste ano do Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. 

No seu livro diz o seguinte: “Em mais do que uma ocasião tive de enfrentar a resistência de alguns interlocutores à associação entre guerra e cultura, porque, para muitos, a guerra representa o oposto da cultura. Lidam com um conceito limitado de cultura, que confundem com os produtos de alta cultura.” Na sua ótica porque é que devemos aceitar a guerra como parte da nossa cultura e porque acha que ainda existe essa aversão em aceitar esse facto?

Gostaríamos de pensar que uma coisa é a cultura e outra é a barbaridade, e que a cultura nos torna sempre melhores. Mas a cultura é o que nos torna melhores e piores. A cultura é tudo. Desde a sua perspetiva mais ampla, temos de entender que, primeiro, as noções de identidade, de nação, de etnia e memória coletiva que conduzem as pessoas à guerra são culturais e que, também, a guerra não seria possível se não houvesse um substrato cultural que faz com que seja uma opção possível entre as opções que temos no repertório da nossa cultura. 

A cultura é uma espécie de caixa de ferramentas. Há um repertório de coisas possíveis que nós seres humanos podemos fazer e que estão pensadas e imaginadas. Os jogos com que as crianças brincam, os videojogos, a existência de exércitos, de indústria, tudo isso é o marco cultural que permite que exista um instrumento que é a guerra, que está à disposição das sociedades. Desde que os seres humanos se organizaram socialmente há evidência de guerras. A guerra acompanhou-nos. Desde que há cultura, há guerra. 

O mesmo acontece com a arte. Existe a arte, existe a guerra e as duas coisas caminham juntas. A cultura e a arte não são duas coisas separadas da guerra, têm também paralelos e relações. Temos de pensar, quando falamos de cultura – e explico isso no livro anterior, “Como o Ar que Respiramos” – que não podemos falar só de literatura, arte, música, teatro e cinema. Temos que falar igualmente de cultura no seu sentido mais antropológico. 

Antonio Monegal / Fotografia de Noemí Elias

Cultura é tudo aquilo que o Homem faz.

Exatamente. A maneira como o ser humano se relaciona com o que o rodeia, com o seu meio ambiente e com os outros seres humanos é cultural, é cultura. 

Mas o facto de termos dificuldade em aceitar que a guerra pode fazer parte da nossa cultura pode ter a ver com o medo do ser humano olhar para o seu lado mais obscuro? 

Sim, claro.

É o ser humano a ter medo dele próprio? 

Sim. O ser humano tem medo de reconhecer que o mal está dentro de si. Mas é assim mesmo, o mal está dentro do ser humano e é tão cultural quanto o bem. O ódio, o medo e a rejeição do outro são culturais. A maneira como definimos quem são os meus e quem são os outros é cultural.

Uma comunidade é definida por elementos que são evidentemente culturais. Quando os confrontos acontecem, é porque os vínculos culturais dos dois lados se opõem. A guerra que há na Palestina tem uma base cultural, assim como a guerra na Ucrânia. 

“Há várias formas de obscurantismo que fazem com que os conflitos estejam ou deixem de estar na moda, importem ou não importem. Atualmente, os meios de comunicação não se podem preocupar com a importância do conflito. Preocupam-se com o que o público quer saber.”

É diferente olhar para a representação cultural de uma guerra do que estar lá, em pleno cenário de guerra? De que forma é que estas representações culturais podem moldar o nosso próprio entendimento e perceção dos vencedores e vencidos?

Sim, claro. A grande preocupação do livro é a seguinte: aqueles que não estiveram lá, o que sabem da guerra? O que sabemos é, de alguma forma, comunicado por produtos que, neste caso, são os nossos meios para termos conhecimento do que se passou. Alguns destes produtos são produzidos por pessoas que, sim, estiveram lá. Dependo, por isso, do testemunho de pessoas que viveram a experiência em primeira mão. Se não possuo essa experiência, posso olhar para a “Guernica” de Picasso, mas o pintor não esteve na guerra: pinta um quadro sobre a guerra, mas não a viveu. Sei que Picasso estava contra a guerra, mas para saber o que é preciso do testemunho das pessoas que a viveram.

Vou colocar a pergunta de outra forma. Imagine um país em ditadura. Esse país em ditadura manda uma geração inteira para a guerra. Como é evidente, há sempre propaganda. Talvez os mais novos não estejam tão dependentes dessa propaganda e estejam mais livres para terem uma visão mais clara da guerra do que aqueles que estiveram lá mas, mesmo assim, sujeitos à influência da propaganda.

Para que os cidadãos possam ir à guerra falta uma propaganda, um discurso e, como explico no livro, um sentido épico que justifique a guerra. Vivi em ditadura e, evidentemente, a forma como as ditaduras levam os cidadãos à guerra tem essa componente, mas as democracias também precisam de uma propaganda para levarem os seus cidadãos à guerra.

A primeira coisa que um governo precisa para enviar os cidadãos à guerra, independentemente se é um governo ditatorial ou uma democracia, é convencer os cidadãos, primeiro, de que têm o dever de lutar pela sua pátria e, segundo, convencê-los da necessidade da guerra. Em terceiro lugar, tem de convencer a sua população de que há um inimigo. Se não há um inimigo, não há uma guerra. Estes pontos têm de ser revestidos por uma história. A história que se conta na Rússia para atacar a Ucrânia não é a mesma que se conta na Ucrânia para se defender da Rússia.

Capa do livro / DR

Já ia tocar na guerra da Ucrânia. Putin não lhe chama “guerra”, chama-lhe “operação militar especial”. Se calhar, uma população sujeita a uma determinada propaganda terá uma visão diferente do resto. Os nomes que se dão às coisas importam?

Sim, é evidente. Em todas as guerras a interpretação é parcial, de acordo com o lugar onde se está e de acordo com o lado do qual se toma partido. Mas a guerra tem uma componente de linguagem muito importante e Putin não quer chamar guerra à guerra. Antes, historicamente, havia uma declaração de guerra, as guerras declaravam-se. Ia-se à guerra, havia batalhas, uma vitória, uma derrota e a guerra era dada como terminada. Agora as guerras começam, não se chamam guerras e não se sabe quando acabam.

E isso é perigoso?

Sim. A linguagem é parte da guerra, não se pode separar. As palavras têm uma carga política muito importante. 

Mas hoje em dia a linguagem é mais camuflada do que no passado? 

Sim, porque no passado ir à guerra era uma coisa normal, correta. Os países iam à guerra como parte da política. Até ao século XIX, a guerra era o que justificava a força de uma nação. Os líderes das nações eram, por isso mesmo, líderes guerreiros e ninguém estranhou quando Napoleão começou a invadir toda a Europa. Em França, ninguém perguntava “por que vamos à guerra?” Fazer a guerra era normal. A partir do início do século XX, sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial, a ideia de guerra muda. Agora, ninguém pensa na guerra como algo glorioso. Pensa-se na guerra como um horror às vezes necessário, é certo, mas ninguém a deseja como objetivo político.

Por essa razão, os governos precisam de utilizar eufemismos, outras palavras para desencadearem uma guerra. Ninguém pode dizer que quer apropriar-se e invadir o território do vizinho para fazer crescer o império. Acontece, mas isso não pode ser dito. É preciso utilizar um discurso diferente.

“A situação que vivemos é muito parecida com o que acontecia nos anos 30. Temos de procurar os culpados e livrar-nos deles. Os alemães, nos anos 30, acusavam os judeus, agora o problema são os imigrantes. Todos os que são diferentes são culpados pelo mal que temos aqui.”

Mas temos agora, no ocidente democrático, o caso do Trump e do Canadá, pegando na sua deixa.

Sim, o Trump usa uma linguagem que não é normal no nosso tempo. Imaginemos que, em vez dos Estados Unidos e do Canadá, estávamos a falar da França, Espanha e Portugal e que, de repente, o presidente da França dizia que queria invadir a Espanha. Isso seria absolutamente inconcebível. Os cidadãos não aceitariam ir à guerra para invadir um país vizinho porque sim, só para aumentar o poder e o território desse país. Mas isso, no século XIX, era normal. Quando Napoleão invadiu a Espanha, ele fez isso como uma ação política racional. 

Antonio Monegal / Fotografia de Noemí Elias

Diz-se que, muitas vezes, temos de olhar para o passado para não cometermos os mesmos erros no futuro. No entanto, nunca na história tivemos tanto arquivo capaz de mostrar o horror das guerras que já passaram. A verdade é que, independentemente deste facto, não só falamos em guerra, como parece que estamos a voltar a acreditar nos mesmos ideais perigosos de antes. Por que é que acha que tal acontece?

A lembrança e a memória podem ajudar os países a evitar a guerra para que esta não se repita, ou contribuir para mais guerras. Podem ocorrer as duas coisas. A guerra na Bósnia invocou lembranças das duas guerras mundiais. 

Os confrontos étnicos na Jugoslávia enfrentaram-se num passado mentiroso, porque a história desse passado mudou. Os conflitos do passado podem transformar-se em desculpas para os conflitos do presente. Fizeste-me isto e agora vou fazer-te isto.

Putin, de alguma forma, olha para trás e quer recuperar o território de poder da União Soviética. Mas se olhares para outros casos, por exemplo, na Espanha as pessoas não querem ir para o exército. Na Alemanha, ninguém quer intervir militarmente em lugar nenhum. Há países em que o seu passado os conduz a uma recusa total da guerra. Temos, então, as duas coisas. 

Há um historiador italiano que está muito em voga, principalmente na Itália, Alessandro Barbero. Numa palestra que deu, o historiador chamou a atenção para este facto: que é natural, quando recordamos o passado, de o querermos recordar como estando sempre ao lado de quem é visto como o vencedor que tem razão. Deu o exemplo, por exemplo, do filme “A Vida é Bela”, do Roberto Benigni, e de como – apesar do filme não mostrar exatamente qual era o campo de concentração houve uma escolha do realizador em mostrar que foi precisamente o exército norte-americano que libertou o campo e não, por exemplo, o exército soviético que também libertou o campo de Auschwitz, por exemplo. O que tento explicar é que, de alguma forma, é muito fácil agora, no presente, olharmos para o passado e dizermos que estes é que tinham razão. Se calhar houve aqui uma escolha do exército norte-americano porque os russos estão ligados às ditaduras comunistas e isso tem um impacto mais forte, e os norte-americanos continuam a ser vistos como os bons. Como é que olha para isto, se quiser tecer algum comentário? 

Depende, na realidade, quem consideramos os bons e os maus. É evidente que se fores para a Rússia, o relato sobre quem eram os bons e os maus é diferente. Estive lá em museus militares, falei com militares russos para preparar a exposição da qual falo no livro, e uma das coisas importantes nestas conversas era reconhecer ante os militares russos que a Segunda Guerra Mundial foi ganha graças ao sacrifício da União Soviética.

Isto é importantíssimo explicar na Rússia como forma de reconhecimento. Se vais para Washington não podes dizer o mesmo, mas se vais para Moscovo, sim, tens de dizer isto. O lado correto da história depende do local onde estamos.

O lado correto também muda se estivermos a falar do lado de quem perde ou de quem ganha. Estar do lado correto, mas perder, já é mais difícil de explicar. Não tenho a certeza de que isso seja tão claro.

No caso da Segunda Guerra Mundial, era muito simples, havia os bons e os maus. Até os alemães, agora, reconhecem que eram os maus. Mas se falarmos de outros conflitos, da Guerra do Vietname, por exemplo, as posições são muito mais parciais. Quem tem razão ou não, agora, na Palestina, é totalmente parcial. Depende da posição em que cada um está e, aí, vê-se a razão de um e vê-se a razão do outro.

Como é que olha para as coberturas jornalísticas dos conflitos, atualmente? Por exemplo, para a cobertura do conflito na Palestina e Israel?

O mundo dos meios de comunicação é muito necessário, muito importante, mas está a atravessar uma crise de negócio muito grave. É muito difícil, agora, enviar profissionais para se fazer a cobertura dos conflitos. Há muitos que ninguém cobre e estão “desaparecidos”. Sabemos o que está a acontecer na Palestina e na Ucrânia, mas há pouca informação sobre o que está a acontecer no Sudão e no Iémen.

Há várias formas de obscurantismo que fazem com que os conflitos estejam ou deixem de estar na moda, importem ou não importem. Atualmente, os meios de comunicação não se podem preocupar com a importância do conflito. Preocupam-se com o que o público quer saber. Há, por isso mesmo, alturas em que a limitação da informação faz-nos crer que há, apenas, duas guerras no mundo quando há 40. Essa dificuldade, penso, tem a ver com o fato da informação dos meios profissionais ter sido substituída por uma informação que circula pelas redes, pela internet e por outros vínculos, com menos filtros. Muitas vezes, trata-se de informação em segunda mão. De uma primeira informação sai uma segunda e terceira, e deixa de existir uma conexão direta. 

Isso também terá influência na forma como, por exemplo, damos atenção à guerra na Ucrânia porque está na Europa, mas já não darmos tanta atenção a um conflito na África ou no resto do Médio Oriente?

Sim, claro. Sempre foi assim. O que acontece agora é que, como o acesso à informação está muito facilitado, essa mesma quantidade de informação é-nos servida de forma massiva, o que propicia a que a nossa atenção seja muito seletiva. Há tanta informação que as pessoas não podem estar preocupadas com tudo e, por isso, há um limite.

O ser humano tem um limite para a sua empatia. Não nos preocupamos com toda a humanidade. Isso leva a que as pessoas digam que o que acontece com as mulheres no Afeganistão é terrível, mas na realidade ninguém quer fazer nada porque fazer algo tem sempre um custo associado. Ninguém pensa em ir pelo mundo fora e fazer justiça.

O excesso de imagens chocantes pode, de alguma forma, banalizar o horror destes conflitos e, por consequência, pode tornar-nos menos sensíveis a esse mesmo horror?

Sim, sem dúvida. O excesso de imagens pode levar à indiferença, mas também é verdade que não extraímos a mesma informação de uma imagem do que de uma descrição do conflito. Uma imagem pode ser muito emocionante e é um documento que reporta o que está a acontecer, mas o relato em si, de alguma forma, permite compartilhar a experiência de alguém: o que viveu, o que sentiu, o que pensou e as suas lembranças.

Cada uma dessas representações tem uma função diferente. Ao lermos apenas os testemunhos dos sobreviventes dos campos de concentração, ficamos com uma certa visão do que foram esses campos, mas se nunca tivéssemos visto as fotografias essa visão seria diferente. As montanhas de cadáveres, as câmaras de gás, tudo isso faz parte do nosso imaginário do que foram os campos de concentração.

Antonio Monegal / Fotografia de Noemí Elias

O Diário de Anne Frank é muito interessante nesse sentido. Só nos dá a conhecer o relato direto dela, através do seu diário, enquanto esteve no anexo escondida. Ela foi, depois, para um campo de concentração, mas só conhecemos diretamente a sua descrição do dia-a-dia do anexo e, claro, há uma mistura com a forma como ela vive a sua adolescência. Se calhar é isso que torna o diário intemporal e, ao mesmo tempo, leva tantos jovens a tentarem saber mais sobre o horror dos campos de concentração. 

O mais interessante é que, precisamente, o texto mais popular sobre o Holocausto não fala sobre o Holocausto. Por essa razão é que é o texto mais popular. As pessoas conectam-se sentimentalmente com o relato de uma adolescente e, portanto, trata-se de um testemunho muito conhecido, famoso e lido. Não nos diz nada, porém, sobre o que foi, em si mesmo, o extermínio dos judeus e sobre o que foram os campos de concentração. A Anne não sabia nada disso. Não é que não o tenha visto, mas como na altura em que estava no anexo não o sabia, isso tudo está totalmente ausente do seu diário. Este é o grande contraste: há muita mais gente que leu o diário de Anne Frank do que os livros de Primo Levi. É muito mais importante, no entanto, para sabermos o que eram os campos de concentração, ler Primo Levi. Pode-se não ler o diário de Anne Frank e saber-se coisas sobre o Holocausto, mas é impossível não se ler os livros de Primo Levi.

“Toda a saga de Harry Potter tem ecos do Senhor dos Anéis e a estrutura é igual: o personagem maligno representa o mal absoluto e os pequenos é que são os bons. Em Harry Potter as crianças representam o bem, já no Senhor dos Anéis são os hobbits. Os pequenos, que são os bons, é que ganham aos maus, que são os poderosos.”

Todos temos o imaginário dos soldadinhos de chumbo, das armas de plástico e, agora, dos videojogos de guerra. Os conflitos dos adultos poderão ser uma evolução disso mesmo? Estas brincadeiras revelam que o conflito, de certa forma, está presente em nós desde muito cedo. 

Uma das implicações disso é que estamos, desde pequenos, familiarizados com a ideia da guerra. É algo que não nos é estranho porque vivemos familiarizados com esse conceito cultural. Essa é uma das dificuldades.

É muito difícil acabar com algo que está tão presente no nosso meio ambiente e que acaba por ser tão normal. Pode haver alguém que seja contra os jogos de guerra, mas ninguém se surpreende com isso. De alguma forma, alicerça a presença cultural da guerra em todas as variantes.

Por que razão acha que, atualmente, gostamos tanto de super-heróis? Para haver um super-herói tem também de haver uma luta contra o mal. Há sempre um conflito. 

Tenho filhos adolescentes e vejo com eles muitos filmes desses. É um exemplo de como o “épico” ainda vive no cinema. Esse lado épico já não tem um lugar importante na literatura e já não se pintam os grandes quadros de batalhas que se produziam no século XIX. Isso já não existe. Mas no cinema ainda se continuam a fazer filmes com heróis como Aquiles, na Ilíada, onde há os bons, os maus, os combates e as vitórias. Isso leva a uma familiarização com a violência, mas tem uma componente de gratificação. O facto de serem os bons a ganharem cria um sentimento de gratificação.

Há uma componente de educação moral, também, no sentido em que os jovens pensam – mesmo que bem ou mal – que isto é o correto, é o que vai ganhar, e isto é o incorreto, é o que vai perder. Esta é já uma estrutura muito antiga e vem tudo do mesmo lugar. 

“A situação que vivemos é muito parecida com o que acontecia nos anos 30. Temos de procurar os culpados e livrar-nos deles. Os alemães, nos anos 30, acusavam os judeus, agora o problema são os imigrantes. Todos os que são diferentes são culpados pelo mal que temos aqui.”

Mas é engraçado que todos esses filmes vão buscar influências à mitologia. 

Claro. Toda a saga de Harry Potter é a luta entre o bem e o mal. Trata-se de uma guerra. Passa-se dentro de uma escola, é utilizada a magia, mas é uma guerra. Toda a saga de Harry Potter tem ecos do Senhor dos Anéis e a estrutura é igual: o personagem maligno representa o mal absoluto e os pequenos é que são os bons. Em Harry Potter as crianças representam o bem, já no Senhor dos Anéis são os hobbits. Os pequenos, que são os bons, é que ganham aos maus, que são os poderosos.

Trata-se de uma escola moral: o esforço, a irmandade, a coletividade e a honestidade. É assim que se educam as mentalidades e os imaginários. Claro que neste modelo há coisas que são extremamente reacionárias porque o mal é o outro, é o que é diferente, e porque o mundo que se deseja é o que existia antes, uma vez que o presente vai de mal a pior. A estrutura mítica da Idade do Ouro, da Prata, do Cobre, do Ferro e a degradação dessas idades está reproduzida no Senhor dos Anéis. Como dizes, são as mitologias antigas que se vão reciclando. 

Capa do livro / DR

Temos o Trump nos Estados Unidos, o caso da guerra na Rússia, o que se está a passar em Israel e Palestina. Na Europa, já há muito tempo que se fala do fenómeno do crescimento das ideologias extremistas. Por que razão isto está a acontecer agora? Será que as representações culturais a que estamos expostos ajudam e influenciam isso? O que terá mais peso, essas representações culturais ou o a realidade concreta do que as pessoas vivem no dia-a-dia?

Não sou politólogo nem historiador e, por isso, não me atreveria a fazer um diagnóstico da razão pela qual a extrema-direita, a irracionalidade e o populismo estão a crescer. Mas não tem só a ver com as representações, tem a ver, igualmente, com as emoções. O medo é uma emoção muito poderosa. 

Esta situação política tem a ver com o medo de muita gente face às mudanças no mundo. Há esta sensação de que o mundo está a mudar, mas não de uma forma capaz de auxiliar estas pessoas. As soluções milagrosas que alguns políticos oferecem surgem, às vezes, sob a forma de violência, enquanto o uso de poder aparece como uma espécie de milagre para os problemas das pessoas, para as quais esta é uma forma de salvar o mundo.

A situação que vivemos é muito parecida com o que acontecia nos anos 30. Temos de procurar os culpados e livrar-nos deles. Os alemães, nos anos 30, acusavam os judeus, agora o problema são os imigrantes. Todos os que são diferentes são culpados pelo mal que temos aqui.

Penso que isso não tem muito a ver com o que trato no livro, mas tem a ver com um problema de fundo, que é a educação. Há um problema na forma como preparamos as pessoas para aceitarem as mudanças das sociedades. As sociedades são diferentes, complexas, variadas e diversas.

Acho muita graça – mas também é algo que me provoca tristeza – que num momento em que todos os problemas económicos provêm da desigualdade e da acumulação da riqueza nas mãos de poucos, estes poucos estejam a colocar a culpa dos problemas nos pobres. Isso é um grande paradoxo, os multimilionários perseguirem os pobres.

Como se entende que, face aos problemas do mundo, os mais ricos tenham conseguido convencer uma grande parte da população de que os seus problemas são causados por aqueles que são tão ou mais pobres do que eles. De que têm de atacar essas camadas tão ou mais frágeis para solucionar os problemas das sociedades, ao invés de atacar a riqueza acumulada pelos mais ricos: evidentemente, esse é que é o problema do mundo.

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