Entrevista. Benjamim: “Os discos precisam de viver na vida das outras pessoas”
Luís Nunes, o músico conhecido por Benjamim, apresenta-nos, esta sexta-feira, o seu novo disco. Sucessor de “Auto Rádio” e “1986”, “Vias de Extinção” não quer ter nada a ver com o confinamento e promete levar-nos de volta às noites longas em que podíamos dançar livremente. O seu terceiro trabalho em estúdio “é uma espécie de crise dos trinta prolongada”, reflexo de uma fase da vida do músico que pertence ao passado. Fala-nos de quando nos tornamos adulto, do momento em tomamos consciência da nossa própria mortalidade.
Após ter vivido quatro anos em Londres, até 2013, e ter começado por lá a escrever canções em inglês, Benjamim admite que este seu novo álbum não podia, de forma nenhuma, ser escrito noutra língua que não a portuguesa. Nas palavras do músico, é o “disco da maturidade”, mas não define nenhum caminho para o futuro: esse vai-se construindo aos poucos, à medida que o disco for vivendo na vida das outras pessoas.
Falámos com Benjamim na véspera do lançamento de “Vias de Extinção”, sobre as canções deste disco, sobre a sua influência política e temporal, sobre os seus trabalhos anteriores e perspetivas futuras.
Começando por aquela que deve ser a nova pergunta da praxe para quem lança trabalhos artísticos nesta altura: “Vias de Extinção” resulta de tempos confinados ou qual foi o papel que o tempo que passámos em casa teve neste disco?
Não, “Vias de Extinção” não tem nada a ver com o confinamento. Nem sequer quero recordar o confinamento quando ouço este disco, para ser muito sincero (risos). O confinamento, a única coisa que trouxe a este disco, foi ser uma grande chatice e tornar o processo mais doloroso. Trouxe alguns novos significados, obviamente, à temática do disco, ao próprio título, mas, basicamente, só mudou a maneira como eu olho para as canções. No disco, eu tentei que o confinamento não tivesse absolutamente influência nenhuma.
Quando dizes que se tornou uma chatice, foi por existirem atrasos, por não poderes lançar mais cedo.
Eu não ia lançar mais cedo, só que não é muito inspirador estar a gravar um disco quando estás a assistir todos os dias às conferências de imprensa, com os números de casos e com pessoas a morrer todos os dias, e sem qualquer previsão de quando é que podia voltar a sair de casa, sem qualquer previsão de quando é que voltaria a ter concertos… E, portanto, acho que todos passámos assim por uma fase um bocado de choque, não é? Em que a produtividade baixa, em que… sei lá, não é inspirador, não é inspirador tentar fazer música. Ainda por cima este disco que tem um lado inspirado na noite, estares a fazer música se calhar mais dançável e estares a sentir que a música que estás a fazer é completamente irrelevante e que o que fazes não interessa porque nem sequer as pessoas podem dançar, nem sequer podem ir ver um concerto e, portanto, o que estás a fazer não tem significado absolutamente nenhum. Mas obviamente que depois tive de me agarrar à ideia do trabalho, de que isto é o meu trabalho, e de que quando sair do confinamento tenho de estar mais forte do que nunca, tenho de ter o meu disco pronto para sair no prazo em que é suposto, que era em setembro, que é quando vai sair, e para quando nós pudermos ir dar concertos a minha banda estar pronta para ir tocar ao vivo, pronto. E foi isso que me motivou, não há uma inspiração direta do confinamento. Acho que daqui a uns tempos nós todos vamos tirar conclusões deste período que estamos a viver, se calhar vamos olhar para ele e se calhar vamos querer falar sobre ele, mas neste momento não é de todo a minha prioridade.
Disseste que foi muito inspirado na noite e, no texto que mandaste de apresentação do disco, falas no fim de noite do Lux, no Cais do Sodré e no Incógnito. Este álbum é um escape para as noites em que podíamos dançar livremente?
Sim, é um bocado um retrato de uma fase da minha vida claramente, em que isso era uma realidade recorrente. É inspirado nisso e nos sons desses sítios. É inspirado na cultura da noite também.
Falando ainda um pouco mais do tempo, no teu disco podemos ouvir versos como “Eu não sei ver o tempo passar”, em “Segunda-feira”, ou “Amanhã vou continuar a ver as horas a passar”, em “Vias de Extinção”. Qual o peso que a passagem do tempo e a forma como a experiencias têm neste disco?
Esse disco fala muito exatamente sobre essa passagem do tempo. Estou sempre a repetir-me agora nas entrevistas porque acabamos por falar da mesma coisa, que é este disco, mas isto é uma espécie de crise dos trinta prolongada e a escrita é consciente. A pessoa que está neste disco e que agora de certa forma já não sou eu, já não me revejo integralmente no disco porque sinto que é sobre uma fase da minha vida e eu quis deixar esses testemunhos dessa fase. É basicamente o disco de alguém que está claramente à procura de um rumo para a vida, de um significado e que vive na tensão e na constante posição de uma vida de desregrada e de excessos. E, de repente, chegares a uma idade da tua vida em que percebes que já não és imortal e, de repente, já tens amigos teus que têm doenças sérias, por exemplo, isso aconteceu… começas a encarar a tua mortalidade de frente, e acho que é o momento em que te tornas adulto, que é o momento em que deixas de ser imortal para passar a ter consciência de que de um momento para o outro tudo acaba.
Mas também falas muito de memórias. Essas memórias também têm um lado positivo ou mais negativo?
Eu não vejo isto como um lado negativo, de todo, eu vejo isto como um lado positivo. É uma reflexão que imagino que toda a gente faça periodicamente, reflexões sobre a sua vida, sobre as escolhas que toma, as decisões que toma… Eu sou uma pessoa que está sempre a tomar decisões: para onde é que eu quero ir a seguir, o que é que eu quero fazer a seguir e, nesse sentido, a minha vida pessoal acaba por se misturar muito com a minha vida artística e com as minhas decisões artísticas, porque aquilo que eu decido fazer artisticamente é aquilo que depois vai definindo os próximos dois anos da minha vida, também pessoal. Quando falas dessa ideia da memória, há uma canção que é o “Ângulo Morto” que fala claramente da memória, e a ideia dessa canção, por exemplo, é uma pessoa que está um bocado presa no passado e que pretende libertar-se exatamente desse passado. Ou seja, de repente, é uma situação em que estás sozinho no mundo e que precisas de te libertar da situação que tinhas anteriormente para conseguir criar uma situação nova e descobrir o teu caminho. O nosso caminho nunca está no passado, o nosso caminho está sempre no futuro. E muitas vezes é preciso conseguirmo-nos libertar do passado para encarar o futuro de frente, e é um bocado nesse sentido. O disco tem um tom escuro e a primeira canção eu acho que é uma canção logo muito vulnerável, é uma canção muito honesta, mas também há um lado cínico no disco e um lado divertido. É sempre um bocado a tensão entre fazer uma vida boémia e, ao mesmo tempo, teres dúvidas existenciais. Eu não vejo a coisa como negativa e o fim do mundo. Quer dizer eu vejo o fim do mundo, mas isso é no mundo real, não é no meu disco (risos).
“Vias de extinção” é, também, um disco político? Quando dizes, por exemplo, na canção que estavas a falar, “Ângulo Morto”, que “o tempo escreve a história com o braço vencedor”?
Sim, claro. É um facto social. Todas as histórias, seja a história privada de cada um, seja a história da humanidade, é sempre escrita pelo braço vencedor e nós olhamos para nós próprios baseados nos nossos sucessos e nos nossos falhanços, não é?
E achas que há algo algum momento político de agora ou da altura em que estavas a escrever o disco que esteja aqui espelhado?
Sim, há muita coisa. Aliás, o título também tem a ver com isso. E há um lado desde disco que é o terceiro eixo. Estava-te a falar da crise dos trinta, uma pessoa à procura de se definir, uma pessoa à procura de um caminho, à procura de respostas e de encontrar sentidos para a vida, num contexto, isso faltou-me dizer, num contexto em que, por exemplo, tu começas a ponderar ”será que vale a pena ter filhos num mundo que bate recordes de temperatura todos os anos?”. Isso é uma coisa que me causa uma ansiedade enorme, enorme! A minha geração chegou aos 18 anos, aos 18 não, mas aos 22 ou 21 anos, quando supostamente vai entrar no mercado de trabalho, e aparece uma crise gigante e, de repente, ninguém tem trabalho e toda a gente tem de emigrar. Agora, passado 10 anos, aparece-nos o corona vírus… mas acontece uma coisa muito pior que é o facto do mundo estar efetivamente a entrar em modo de destruição, com resultados que não é para daqui a 100 anos, é daqui a 10 anos. Estamos a assistir exatamente a fenómenos que nunca pensámos que existissem e que eu acho que a magnitude do fenómeno é de tal maneira grande que nós nem sequer processamos na nossa vida normal. Cada vez que vejo uma notícia sobre um glaciar que derrete, sobre uma tempestade que nunca existiu naquelas proporções, naquele sítio, que, nos últimos três anos é uma tempestade por ano, eu fico claramente ansioso. E, obviamente, que fico ansioso quando vejo o Trump, no Estados Unidos, o Brexit… Eu acho que o Brexit e a eleição do Trump são dois momentos marcantes neste disco para a minha desilusão com a vida. Foram duas eleições que eu assisti, que eu fiquei a dormir no sofá. Adormeci no sofá à espera do resultado e lembro-me de acordar das duas vezes que adormeci e ser uma das piores sensações da história: tu acordares, a televisão estar ligada e tu, de repente, perceberes que o Brexit foi para frente, ou que o Trump foi eleito, ou que o Bolsonaro é presidente do Brasil, ou que o André Ventura tem expressão eleitoral, por exemplo. Acho assustador nós vivermos em Portugal em 2020 e o André ventura ter a expressão que tem e que as pessoas… e muitas pessoas, amigos dos meus pais, por exemplo… eu acho que todos nós temos um tio ou o que quer que seja, todos nós conhecemos alguém que acha que o André Ventura é uma coisa normal. E isso é assustador, é assustador para alguém que cresceu com a ideia da Europa e com a ideia do fim das fronteiras, com a ideia de que o mundo é cada vez mais unido, é cada vez mais um e nós estamos a caminhar para um sociedade de igualdade e, de repente, começas a ver esses retrocessos e, ainda por cima, para países que estão a sofrer agora com isto, não é? Felizmente, o André ventura ainda é só uma expressão de franjas, mas há países que têm estas pessoas como governantes e que estão a sofrer as consequências na pele do que é terem líderes completamente incompetentes e irresponsáveis e pessoas com uma moral que… quer dizer não têm moral, não existe moral, o Trump não tem moral! Obviamente, eu olho para o mundo e é o mundo onde a verdade e a mentira têm o mesmo peso. Quer dizer, tu tens de respeitar a teoria do criacionismo como tens de respeitar a teoria do Big Bang… Para uma pessoa que estudou minimamente ciências obviamente que custa um bocado a engolir. E, hoje em dia, tu já não sabes o que é que é verdade, e a democracia… É muito difícil dizeres que vives numa democracia se tu não sabes o que é que estás a escolher. A democracia não significa apenas tu escolheres alguma coisa, tu tens de estar informada sobre a tua escolha, a tua escolha tem de ser consciente. E eu tenho muitas dúvidas que a escolha seja consciente hoje em dia, nomeadamente em países como os Estados Unidos ou o Brasil. E olhar para este mundo é um bocado aterrador, é um facto.
Na tal apresentação do disco que já mencionei, falas sobre a canção “Urgência Central”, que dizes ter sido escrita, em parte, no corredor do hospital de Santa Maria. Como é que surge inspiração e concentração para criar num local que, em princípio, será tão pouco propício a que tal aconteça?
Eu acho que a inspiração não tem a ver com o local, tem a ver com a situação que eu tinha. Era a tal coisa que eu estava a falar há bocado, de nós termos consciência da nossa própria mortalidade e, de repente, ter medo de exames que vais fazer aos pulmões e pensas “Será que tenho aqui alguma coisa?”. E, na altura, eu fui lá porque tinha apanhado uma espécie de um susto e estava em pânico e, obviamente, comecei a pensar em montes de coisas, a relativizar montes de coisas, a pensar montes de coisas sobre a minha vida, a fazer grandes flashbacks e a pensar “Que estupidez, porque é que eu andei a fumar este tempo todo?”, etc. Começas a relativizar todas as coisas que fizeste e isso deu-me para escrever alguma coisa. Acho que não teve tanto a ver com o espaço, mas acho que teve a ver com o espírito com que eu estava no momento.
Aí os tempos de espera do hospital até foram favoráveis.
Do ponto de vista criativo, funcionaram (risos).
Com este disco assumes novos registos musicais, as canções parecem fluir com maior liberdade, são abordados temas mais pessoais… achas que esta é a direção a seguir no futuro ou apenas um caminho, como pode ser qualquer outro que venhas a descobrir?
É um caminho, acho que cada disco tem a sua história, não consigo prever o que é que vou fazer a seguir. Acho que vou ter de viver agora com estas canções durante uns tempos… ao vivo, não é, nos concertos e ao longo do período que este disco durar e… sei lá, é muito cedo para perceber o que é que este disco significa realmente, percebes? Acho que os discos precisam de viver na vida das outras pessoas e precisam de ser vividos por outras pessoas, precisam de ser ouvidos, precisam de ganhar maturidade e, depois, essa energia que as pessoas recebem do disco eu vou recebendo de volta, nomeadamente nos concertos, ou pessoas que vêm falar comigo a dizer que aquela música lhes diz alguma coisa. Acho que o caminho se vai fazendo um bocado aos poucos, é com a estrada que tu encontrares. Não faço ideia, também estou noutra fase da minha vida completamente diferente agora, e, provavelmente, as canções que eu escrever neste período serão obrigatoriamente muito diferentes daquelas que eu escrevi para este disco.
Mas prevês que possa haver alguma forma em que as pessoas mais facilmente se irão rever no disco, ou seja, qual é que pensas que será o maior ponto de contacto entre as pessoas e “Vias de Extinção”?
Ui, não sei (risos). Não sei, não sei. Nunca penso muito sobre isso quando estou a fazer os discos e depois fico surpreendido, às vezes. Eu fiquei surpreendido que a “Terra Firme” fosse uma canção que ganhásse a expressão que ganhou, foi uma canção muito importante para mim, foi uma canção que permitiu que eu crescesse muito, que eu ganhasse muito público. E, de repente, à medida que vais ganhando público e que vais ganhando a consciência do teu público… tu quando começas a fazer música e lanças o teu primeiro álbum não tens público, não existe isso: tu vais à procura e vais à conquista. Mas, ao mesmo tempo, o teu exercício de escrita é um exercício de liberdade muito grande, tens outros tipos de pressão, mas não tens a pressão de saber, à partida, o que é que o teu público gosta ou o que é que não gosta. Neste disco, sinceramente, também quis fugir completamente de uma canção tipo “Terra Firme, quis surpreender as pessoas e quis desafiá-las a ouvir uma música diferente daquilo que eu tinha lançado anteriormente, e faz parte do meu próprio processo de procura artística.
Pegando nessa ideia, qual é que achas que são as maiores diferenças entre “Vias de extinção” e os teus trabalhos anteriores, “1986” e “Auto Rádio”?
Acho que são todos muito diferentes. É difícil ter uma perspetiva histórica sobre um disco que sai amanhã, para mim ainda está muito fresco, e para mim é só o meu último disco com o qual eu ainda estou entusiasmado. Estou entusiasmado com a música, estou super entusiasmado para ir dar concentos, acho que a banda está a soar mesmo bem. Portanto, há um lado musical que passa o lado sociológico do disco, da música. O meu primeiro disco, o “Auto Rádio”, é um disco em que eu estou claramente a tentar perceber como é que eu escrevia canções em português, é uma pessoa à procura da sua identidade, uma pessoa à procura de uma nova forma de fazer canções. Para mim, foi muito difícil porque já tinha quase trinta anos quando fiz o “Auto Rádio” e, nessa fase, já tinha escrito muitas canções em inglês. Se pensares que o Jim Morrison morreu aos 27 e a carreira dele acabou aos 27, à partida aos 29 anos se tu és um músico que toca há muito tempo já tens o teu estilo definido, já tens uma série de maneiras de fazer a tua música definidas. E, de repente, eu passei um apagador por cima disso, de certa forma, e quis reinventar-me em absoluto porque escrever em português é completamente diferente do que escrever em inglês. Portanto, esse disco é exatamente essa procura. Aliás, a primeira canção fala sobre isso, que é “Eu Quero Ser o Que Tu Quiseres”, porque na altura toda a gente me dizia “tens que fazer assim” ou “tens que fazer assado” ou… e é um bocado eu não sei quem é que eu sou, portanto, a primeira canção do primeiro álbum Benjamim é exatamente “Eu Quero Ser o Que Tu Quiseres”. Acaba por ser um bocado a previsão do futuro, que é eu vou definindo a minha identidade consoante também a história do meu projeto: dos concertos que vamos dando, do público que vamos conhecendo, da música que vamos fazendo… tudo isso vai acabando por definir. Depois, o segundo disco, o “1986”, sou eu um bocado a fintar a ideia da dificuldade do segundo disco porque, de facto, é difícil fazeres um segundo disco, principalmente, se o teu primeiro disco tiver alguma expressão junto da crítica e junto do público, e o meu primeiro disco até teve alguma. Tens a pressão de, de repente, teres de fazer um trabalho coerente, ou tens de fazer uma coisa nova que tem de estar melhor, se não as pessoas obviamente vão descartar-te logo, é a prova de fogo, não é… então, fintei isso convidando um músico de um talento enorme, que é o Barnaby Keen, e usei o talento dele como uma muleta para tentar ser melhor e para aprender com ele, e ele aprendeu comigo muitas coisas também. Mas também sou eu, a pessoa que deixou de cantar em inglês, a tentar que a minha música não fique presa num gueto português. É um bocado tentar que a nossa língua, que é uma língua tão estrangeira para os estrangeiros, seja uma língua que consiga comunicar na música com outras línguas. Para mim, isso foi muito interessante. Eu odeio… regra geral, odeio discos que são cantados em muitas línguas, aqueles discos que de repente as pessoas começam a cantar em espanhol, eu não tenho muita paciência. Mas neste caso, são dois nativos das suas próprias línguas em comunicação um com o outro, portanto esse disco tem uma lógica e um conceito muito próprios. Este disco agora, que é um disco também conceptual, acho que os meus discos de certa forma são baseados em conceitos, este disco eu acho que é o da maturidade, o disco em que eu tenho um conceito e esse conceito é muito claro na música e na abordagem sónica do álbum. Acho que isso é bem conseguido ao longo do disco, no sentido em que, de facto, tu estás no mesmo universo do princípio ao fim do disco, chegando ao final tens uma canção ao piano que é um bocado diferente das outras, mas eu acho que, musicalmente, tecnicamente isso está mais bem conseguido.
Por falar nessa diferença entre cantar em português e cantar em inglês, numa entrevista que deste Público, em 2015, falas muito disso, a propósito do lançamento de “Auto Rádio”. Este é um disco que tinha obrigatoriamente de ser escrito em português?
Sim, sim, claro. Isso para mim é claro como água. Desde que eu lancei o “Auto Rádio” que nunca mais quis escrever nada em inglês. O outro disco, o “86” [“1986”], só tem músicas em inglês porque o Barnaby é inglês. A minha ideia de cantar em português é eu, de facto, perceber que é um bocado estúpido eu, sendo português, não conseguir escrever músicas na minha própria língua. Acho que iria morrer com essa limitação e seria uma limitação grave, hoje em dia. Eu olho para trás e penso que, se eu tivesse ficado a cantar em inglês, a minha vida seria muito diferente, hoje em dia.
E, portanto, nunca te passa pela cabeça voltares para Londres?
Nunca, nunca (risos).
Como foi passar das versões iniciais das canções, que gravaste em cassete, para o estúdio com a tua banda?
Foi um processo longo. Foi um processo fixe, foi muito fixe porque as músicas já estavam com este universo, que dá para ouvir no disco, que é um universo de sintetizadores e de caixas de ritmos, e juntar muitas vezes isso com uma banda orgânica, que toca ao vivo, não é assim tão simples. E, portanto, fizemos várias sessões de pré-produção com bateria. Eu ia para casa do meu baterista durante dois dias, ele tem lá o estúdio dele, e ficávamos a gravar baterias por cima das batidas. Havia uma grande comunicação. Imagina, eu tinha uma música que tem um ritmo programado – elas tinham todas um ritmo programado – e ele chegava e tentava tocar bateria por cima do ritmo programado ou alguma coisa complementar ao ritmo programado e, de repente, ele diz “não, mas mudares o boom nesta música aqui fica melhor”, então mudas a programação para que ela se adapte também ao que o baterista está a fazer. Portanto, foi um processo muito interessante de montar as músicas, de perceber o que é que cada um ia fazer. Nós, em outubro passado, tocámos algumas músicas do disco ao vivo, no CCB, quando fizemos o nosso concerto de final de ciclo, em que eu anunciei que iríamos prosseguir depois e que iríamos dar esse concerto para testar algumas músicas novas. Esse concerto também foi muito importante para perceber se esta ideia que vivia numa cassete e que era uma forma de fazer música muito diferente daquela que eu estava a fazer anteriormente, de teres uma guitarra ou um piano e fazeres uma canção absolutamente clássica, uma forma normal de tocar, de repente, sair esta música que tem arpejadores e pode funcionar, se nós tocamos isto bem ao vivo, se faz sentido no palco, como é que isto pode ser transportado para concerto… Foi um processo de dois anos até chegar a este resultado. Claro que não foram dois anos a trabalhar nisto, houve períodos de pausa.
Enquanto alguém que estudou engenharia do som, sentes que isso te pode roubar alguma liberdade na criação, no sentido em que estás mais atento a todo o processo da própria composição em comparação com alguém que não tenha essa formação, ou pelo contrário ainda ganhas mais liberdade?
Ganho imensa liberdade porque eu sou completamente autossuficiente. Quer dizer completamente… nós gravámos a bateria e o baixo, tivemos seis ou sete dias no Namouche, que é um grande estúdio, é um estúdio onde eu adoro trabalhar e que tem uma sala fabulosa, que tem microfones fabulosos, é um espaço onde eu adoro gravar e nós tivemos lá a gravar a banda, mas eu só fui para lá na última fase de gravação do disco. Gravei tudo o resto, todos os sintetizadores, todos os teclados, já vinham gravados de casa, do meu estúdio. Depois, quando acabámos de gravar no Namouche, entrou a pandemia e eu pude acabar o disco em minha casa, sem fazer nenhuma concessão, nem me atrapalhou minimamente a vida o facto de eu estar em casa a gravar as minhas vozes, percebes? E depois estive a misturar o disco sozinho aqui, na pandemia. Se eu não tivesse essa capacidade de fazer isso, o disco ainda não tinha sido acabado. Isso para mim sempre foi muito importante. Muito cedo na minha vida eu percebi que tinha de ser autossuficiente nesse aspecto, e eu sou obcecado por produção, e por som, e por discos e, portanto, acho que é uma mais valia enorme e uma sorte.
O álbum termina com um “Sou melhor a suspirar”. O que é que achas que é este suspiro? Cansaço, entusiasmo com a conclusão do disco.
É cansaço, é cansaço (risos).