Entrevista. Bong Joon Ho: “Não sou totalmente pessimista, mas quero ser honesto diante da realidade”
Poucas horas antes de receber a sua Palma de Ouro, em Cannes, tivemos a oportunidade de nos sentarmos com o cineasta coreano naquela tarde ensolarada na esplanada do Hotel Majestic, um dos marcos da avenida Croisette que forma a baía daquela cidade da Côte d’Azur. O tema da conversa (devidamente filtrado pela tradução) não podia deixar de ser o seu filme mais recente Parasitas (Gisaenchung), que deixara uma ótima impressão na imprensa e se tornara mesmo num sério candidato ao prémio que, de resto, viria a ganhar, isto dois anos depois de ter competido para a Palma de Ouro com o filme da Netflix Okja. Só que desta vez os ‘monstros’ não são digitais, mas humanos. Na verdade, ficamos até a saber que a verdadeiras inspiração para esta sátira da atual sociedade coreana veio dos retratos da burguesia francesa no cinema de Claude Chabrol e até de O Criado, de Joseph Loosey (1963). Parasitas já chegou às salas portuguesas. E não deve deixar de ser visto.
Antes de mais, parabéns pelo seu filme, que, de resto, parte de uma inversão social muito curiosa. Pode explicar-nos como surgiu essa ideia?
Não sei explicar bem, acho que essas ideias já estão no meu corpo. Como o arranhão que tenho na mão (risos). Quando vou para casa, encontro um arranhão na mão, não sei quando ou como isso aconteceu, mas está no meu corpo. Então é assim que tudo se passa. No entanto, lembro-me da primeira conversa que tive sobre essa história. Foi em 2013, quando eu estava na pós-produção do Snowpiercer (Expresso do Amanhã).
O Bong tem um cinema repleto de figuras fortes, alguns deles humanos outros monstros nas mais diversas formas. Agora tem Parasitas, não na forma microscópica, mas num quadro humano. Afinal de contas quem são para si os parasitas deste filme?
No filme, é a família pobre que se infiltra na casa da família rica, mas essa não é uma boa comparação, pois não podemos chamá-los de ‘parasitas’. Por outro lado, porém, foi a família rica quem os chamou para sua casa. Eles não podem simplesmente ser servis e lavar a louça ou conduzir o automóvel, eles precisam confiar nessas pessoas para cuidar dessas tarefas. Assim, em termos de trabalho, podemos dizer que os parasitas são também as pessoas da família rica.
De onde lhe veio a inspiração para esse lado mais social que vemos no filme e não os habituais clichés coreanos de famílias ricas?
Em 1995, quando vi o filme La Haine/O Ódio, do Mathieu Kassovitz, fiquei muito impressionado por descobrir que existiam áreas sociais como essas em Paris. Quando pensava em Paris era sempre nos clichés dos Campos Elísios, com toda a gente a beber champanhe. O mesmo se passa com a Flórida, por isso fiquei tão surpreendido com o Florida Project, do Sean Baker, mostrando os bairros sociais ao lado dos parques de diversão. Ou seja, quando mais rico se fica mais as diferenças sociais entre ricos e pobres aumentam. Sim, a pobreza ainda existe na nossa sociedade. E muitas famílias vivem em subterrâneos como os que vemos no meu filme.
Por que escolheu uma casa para retratar esta história?
Antes de mais queria dizer que foi tudo construído em set. Tanto a casa do bairro rico como a do bairro pobre. Elas foram redesenhadas e construídas. Com a exceção de algumas ruas, tudo foi construído em cenários. Nesse sentido, esta casa teria de retratar a mentalidade de seus habitantes. Esta família rica não representa o cliché dos vilões; eles são bem-educados e gentis, até têm um gosto sofisticado de alta sociedade. No fundo, a casa deveria refletir isso mesmo. É um tipo de construção que pessoas assim escolheriam por si mesmas. É por isso que o conjunto desta casa foi construído por um famoso arquiteto coreano.
Poderemos dizer que se trata de uma variante de comédia negra? Sente algum pessimismo pelo sentido que a sociedade está a seguir?
Digamos que não serei totalmente pessimista, mas queria ser honesto diante da realidade. A humanidade alcançou um nível enorme de desenvolvimento em que usamos todos os tipos de aparelhos, mas se pensarmos claramente nos últimos vinte ou trinta anos, acha que esta lacuna entre ricos e pobres desaparecerá? Eu acho que não. Também tenho um filho e acho que as coisas não serão muito melhores durante a sua geração. Na verdade, estou com muito medo. Queria ser sincero com esse sentimento, especialmente na última cena, em que vemos o filho declarar que comprará aquela casa. No entanto, percebemos também que provavelmente ele nunca será capaz de ir além daquela casa.
Seja como for, acha que a violência será a única para resolver esse problema?
Por isso o filme é tão trágico. Eles tiveram a oportunidade de evitar o clímax que se desenrola no final do filme. São esses momentos que tornam o filme tão triste. A festa de aniversário da filha deveria ser um momento de alegria, mas acaba por se transformar em tragédia. No fundo, é assim que as tragédias começam, com um incidente muito pequeno. Ninguém neste filme é vilão, mas, apesar disso, as coisas podem levar a uma tragédia horrível. Essa é a ironia do filme.
Ao contrário de outros filmes seus, aqui não apresenta monstros. Será que isso o levou a aprofundar essas personagens e a transformá-las nas suas próprias versões monstruosas?
É isso mesmo! Por certo não imagina o que tivemos de fazer para tornar Okja crível? São 320 fotos de alta resolução. Havia muito CGI. Para este filme, fiquei feliz em usar essa energia para prestar atenção a cada personagem.
Está feliz por poder fazer um filme para o cinema novamente e não para a Netflix?
Não encaro o streaming como algo demoníaco e não me importaria de voltar a trabalhar de novo com a Netflix. Dito isto, continuo a pensar que é o cinema que oferece a melhor experiência audiovisual. É o único método e a plataforma em que o espectador não pode pressionar o botão ‘stop’.
Já agora, o que você acha desta sociedade e dessas pessoas que podem forjar os diplomas de cursos superiores?
Mesmo agora, na sociedade coreana, muitas pessoas têm tutores e estão muito obcecadas com a educação privada. Mas esse é um dispositivo para distrair o público para um caminho diferente.
Acha que a falta de comunicação é o pior problema que temos em nossa sociedade?
A questão básica deste filme é a polarização de classes. Isso significa que a distância se tornou cada vez maior. É claro que com essa distância fica difícil difundir a comunicação com outra pessoa. Com este filme, as classes ficam tão separadas umas das outras que se fecham em si próprias. Essa é a grande ironia do filme.
Pergunta trivial: o que o atraiu a fazer cinema? Foi a banda desenhada os filmes antigos?
Decidi que seria cineasta quando estava ainda no 9.º ano. Mas sempre gostei de BD, uma estética que não deixa de estar presente também. Aliás, quis até tornar-me em autor de novelas gráficas ou ser um artista de manga. Mesmo agora, ainda desenho os storyboards para os meus filmes. É curioso como uma editora disse que queria publicar o meu storyboard de Parasitas.
Já esteve em Cannes em competição para a Palma de Ouro. Sente-se mais ansioso desta vez, sobretudo quando o filme foi tão bem recebido pelos críticos de cinema? Se ganhar, o que significaria para você?
Na verdade, servi como membro do júri em alguns festivais de cinema, como San Sebastian, Sundance e Berlim. Agora que sou eu o avaliado percebo como é estranho. Estar num júri é um trabalho difícil, mas em que tudo pode mudar 30 minutos antes do anúncio. É claro que os próprios cineastas não imaginam que isso pode acontecer. Por isso percebo que ganhar um prémio também é uma grande sorte.
Entrevista de Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt