Entrevista. Carlos Coutinho Vilhena: “Sempre tive uma visão muito catastrófica da vida”

por Linda Formiga,    15 Julho, 2021
Entrevista. Carlos Coutinho Vilhena: “Sempre tive uma visão muito catastrófica da vida”
Carlos Coutinho Vilhena / D.R.
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Carlos Coutinho Vilhena está de volta ao YouTube com Clube da Felicidade, uma websérie de duração desconhecida, que conta com a participação especial de Júlio Isidro. Depois de Bumerangue, colectivo que integrou com Pedro Teixeira da Mota, Manuel Cardoso e Guilherme Geirinhas, Carlos Coutinho Vilhena lançou-se a solo em Bon Vivant, trouxe de volta aos ecrãs o actor João André, também conhecido como o “Kiko” dos Morangos com Açúcar, em O Resto Da Tua Vida, fez espectáculos de stand-up aqui e ali e as Conversas de Miguel, com Pedro Teixeira da Mota.

Foi no âmbito da nova websérie que falámos com Carlos Coutinho Vilhena, para tentarmos saber mais sobre o que o move e o seu próprio conceito de criação, angústias, fragilidades e algumas dúvidas que poderão ser, ou não, pertinentes. 

Já há alguns anos, no Maluco Beleza, disseste que, quando estavas a fazer o Bumerangue, gastavas o cachet na noite e achaste, a determinada altura, que essa era uma “sensação de felicidade falsa”. Tiveste aí a primeira sensação de declínio na vida de um artista?
Não sei se tinha maturidade para ter esse barómetro tão apurado. Era só um miúdo que estava a achar graça fazer sketches. Comecei a viver disto muito cedo, por volta dos 20 anos. Lembro-me de estar na faculdade e de o Bumerangue já estar na SIC Radical. Como tínhamos muitos espetáculos, tínhamos uma mesada superior aos nossos colegas. Não pagava renda nem tinha despesas, pagava só os meus luxos. Lembro-me de ter a sensação de que era bom, fazer espectáculos, fazer rir com as nossas fragilidades todas e com a nossa pouca densidade. Essa sensação de ser reconhecido, de sair à noite e o dinheiro que estávamos a gastar ser fruto da nossa criatividade era boa. 

Depois, em O Resto da tua vida foste também buscar o João André, que teve um pico de popularidade muito delimitado pelos Morangos com Açúcar. Foi também na sequência dessa constatação?
Sempre tive uma visão muito catastrófica da vida. Sempre adorei sofrer por antecipação, que até acho bom. Adoro analisar a ideia de chegar ao auge e a decadência em carreiras artísticas. Em especial as que conseguiram manter alguma longevidade e perceber o porquê e onde falharam, e de que maneira falharam, porque falham de diferentes formas. E talvez tenha sido isso que me fez ter interesse, porque nunca mais vi nada do João André. Quando lhe enviei mensagem tinha genuinamente interesse no que ele estava a fazer na altura.

“Há uma tendência para achar que a nossa geração é especial, que tudo o que vem depois é estranho e magoa. Mas basta olharmos para a História para perceber que há tudo para fazer.”

Na peça com o mesmo nome que se seguiu à série no YouTube, existe sempre um carácter bastante mais existencialista e até humanista de um artista. 
Esta ideia de viver do afecto e dessa validação constante é uma coisa perigosa; é um processo longo de altos e baixos. Como não sou muito positivo em nada, nem no ser humano nem na vida, tudo o resto são coisas giras que nós andamos aqui a tentar disfarçar. Se calhar isso reflecte-se nas minhas opções de sketches, de humor, de música, de artistas que eu gosto. Essa ideia do fim decadente, da aproximação repentina do declínio, é uma coisa que me interessa explorar, mas não é de forma premeditada, é quase uma consequência. Estou sempre a pensar quando é que isto de fazer o que eu gosto vai acabar. Tanto em mim como nos outros, estou sempre analisar isso de forma obcecada. O que os outros estão a fazer mal — que é um defeito que eu queria melhorar, que é não julgar tanto as opções dos outros, mas também não me julgar a mim. Falamos muitas vezes sobre isso, a ideia de a vida do artista ser de altos e baixos, de viver na miséria ou não. Tenho sempre presente esse posicionamento altivo, elitista e snob a contrastar com o João André, mas às vezes as dúvidas que eu lhe coloco de forma mais arrogante são as dúvidas que tenho em relação a mim.

Carlos Coutinho Vilhena / D.R.

Às vezes, e também na peça, havia um certo “bullying” em relação ao João André, mas no fundo eras tu próprio a explorar as tuas fraquezas.
Talvez, eu percebo que isso seja mal interpretado, porque há uma parte de mim que é real. Já fui mais julgador do que o que sou, mas para mim o último objetivo é aquilo resultar. Se o João André está confortável nessa hierarquia de ego e se o público considera que isso tem impacto — isto é, ter raiva de mim, ter pena dele, sorrir com a minha altivez ou sorrir com o facto de o João André me puxar o tapete — o objetivo está cumprido. Se as pessoas acham se eu sou bom ou mau já não é um julgamento artístico. É um julgamento pessoal e eu tenho esse muro muito definido de não estar cá para ser boa pessoa pública. Quero ser boa pessoa na vida, quero fazer tudo para melhorar a vida dos que estão à minha volta e não só, mas em termos artísticos é um bocado hipócrita querer ser boa pessoa em vez de querer fazer objetos artísticos relevantes. É o meu propósito.

Depois de O Resto Da Tua Vida, sentiste-te a voltar ao zero. É mais um estudo da decadência de um artista?
Gosto de me autoanalisar constantemente. Lembro-me de o último episódio de “O resto da tua vida” ter saído a 13 de junho, depois ainda actuei no Alive com o Sérgio Godinho, o que me fez ali uma massagem ao ego, mas passadas duas semanas já estava completamente deprimido por não saber o que fazer. Estava a sentir a pressão que tinha de produzir alguma coisa popular. Popular no sentido de chegar a massas, não no sentido mainstream, que ainda não estou aí. E isso é muito perigoso, é um sufoco constante ter de rebentar com esse nicho e ter de surpreender esse nicho. Porque nós só gostamos de artistas durante 10 anos, eu já cá estou há oito, por isso tenho mais dois anos para rebentar ou para ceder ao mainstream. Depois dos 40-45 anos, as pessoas vêem-me na rua e eu não existo. Ou as pessoas me conhecem ou não me conhecem de todo, não há um meio termo de “aquele é uma cara que foi ao Alta Definição” ou “aquele rapaz tem graça”.

“Stand-up é só set-up e punch line. Para mim sempre foi muito limitador, e esta abordagem para mim foi muito libertadora. Não o fiz por moda. Fazer uma boa piada é muito difícil e, durante anos, os humoristas eram só ritmo e piadas.”

Porquê 10 anos?
É muito complicado adorares artistas, quando digo adorar é eu ponho um espectáculo que me permite ter liberdade que eu hoje tenho, de fazer os conteúdos que eu quero, e o facto de chegar as pessoas de uma forma diferente que não uma figura da televisão. Como eu só admiro artistas durante 10 anos de uma forma obcecada, penso que as pessoas também vão sentir o mesmo em relação a mim. Se eu não for outra pessoa ou outra coisa. Ou se não desaparecer, como o Miguel Esteves Cardoso fez e bem, que era muito cáustico na altura d’O Independente e depois desapareceu durante tanto tempo que hoje é uma figura acarinhada. Há um respeito por ele que é, eu acho, desse desaparecimento, o de não chatear as pessoas.

No episódio 200 do ask.tm, podcast do Pedro Teixeira da Mota, fizeste uma pergunta sobre o trabalho para a reinvenção ou para a perfeição. Qual é a tua resposta a esta questão?
Sou muito toldado pelas grandes referências da nossa geração, que são o Bruno Nogueira e o Ricardo Araújo Pereira. Acho que o Ricardo está cada vez mais polido e mais perfeito e é dentro da sua plataforma que ele reinventa. O Bruno está mais associado à reinvenção e o Ricardo mais à perfeição. Quando digo perfeição, que é uma coisa difícil de definir, esta tem um barómetro, que são os resultados. Muitas vezes o Ricardo Araújo Pereira trabalha para os resultados, ele tem dois milhões e consegue fazer humor fresco, bom, que não vês na Internet nem sequer em tweets, e isso é trabalhar para a perfeição. Como são grandes referências, a nossa geração tem muitas vezes esse debate. Dá para juntar as duas? Temos de optar?

Achas que, sabendo a resposta, isso pode ajudar-te a ir além dos tais 10 anos?
Descobrir o que é que eu quero, ou o que eu não quero. Às vezes temos de fazer cedências, queremos ter o respeito ou a visibilidade que aquela pessoa tem, mas não queremos as decisões que temos de tomar e as cedências que temos de fazer para ser aquela pessoa.

Carlos Coutinho Vilhena / Fotografia de Guilherme Martins

Esta inquietude de criar está sempre presente em tudo o que fazes, ou achas que chegarás a uma altura em que estarás confortável?
São poucos os artistas que continuam com fascínio sobre a carreira e a vida como eu. É quase um fascínio obsessivo, uma inquietação constante. Quando tiver família e filhos, acho que vou mudar de prioridades. Pelo menos, é o que acontece com humoristas mais consagrados amigos meus. Quando têm filhos percebem que a carreira não é uma questão de vida ou morte, e que nem tudo depende do último projeto. Há coisas mais importantes, como melhorares a vida do teu filho, dares os valores certos ou brincar com ele, do que estar a editar um sketch.

Achas que agora é um caso de vida ou morte?
Agora sou um bocado egocêntrico. As pessoas, amigos e família, estão à minha espera para que eu acabe as minhas coisas. Tirando o meu cão, que estou sempre preocupado se está alguém em casa quando eu estou a trabalhar, faço a minha vida quase em função do objectivo artístico.

Disseste, há muitos anos, no Maluco Beleza que “há coisas que têm potencial para ficar virais – tipo danças”. Agora, neste episódio do “Clube da Felicidade” termina com uma dança, não é intencional?
Não, não é intencional. A certa altura não tem humor, sou só eu a mostrar que dou uns pinotes. Lá está, eu não acredito no talento, acredito na sensibilidade e quando eu estava a editar aquilo, aquilo estava a ter impacto em mim. O episódio começa por ser lento, confuso em certas partes, depois está ali uma coisa limpa, de eu a dançar tecnicamente com o lusco-fusco das ferramentas e pronto. Aquele convite existiu e eu usei isso na história.

Esta busca do propósito da vida, das crises existenciais, foi o que te levou a este questionamento?
Gosto muito de gravar, expor as minhas fragilidades e depois vou para casa ver. Pensar sobre o que é isto, que conversas são estas. A partir daí, conto a narrativa. Acho que dantes não tinha a maturidade, nem a confiança, para pôr as minhas fragilidades cá fora e achar que isso seria relevante. Ainda hoje não tenho, acho que podem ser problemas de um menino beto, branco, heterossexual e são problemas fúteis. O mundo está tão injusto e tenho a noção que estar a queixar-me que não tenho ideias, que aceitei o Dança com as Estrelas e a achar que isso é dramático, pode ser hilariante. Mas como são as minhas dores, acho que é honesto. Foi só isso que eu fiz, as minhas dores, ficcionar, exponenciar isso com bandas sonoras e outras pessoas que abrilhantam tudo. Que é a direcção de fotografia, o guionista — que é o Pedro Durão que me ajuda a encadear a história.

São dores do primeiro mundo, mas são dores.
Percebo que seja fútil estar na piscina, em tronco nu, a beber um copo de vinho. Se aguentarem este episódio, é o máximo que eu tenho de ostentação.

Também há uma criança, de onde vem?
É o sobrinho do meu manager. Divertimo-nos com ele e ele diverte-se connosco. Ele leva-nos a cabeça para outro lado, é um olhar de criança que nós já não temos. Na idade dele, eu não tinha a maturidade que ele tem. A geração que vem é sempre a geração melhor. Não tenho nada essa visão fatalista de achar “estes miúdos agora e o TikTok, etc”. Acho que é quase obrigatório mantermos esse lado de fascínio pelo que está a aparecer e não de paternalismo. Eu tenho medo é de ficar velho. Velho de cabeça.

Júlio Isidro e Carlos Coutinho Vilhena / D.R.

Temos uma questão muito chavão, que é a ditadura da felicidade. E isso reflecte-se muito nas redes sociais. O de apresentar uma vida boa, de viagens, de sucesso.
Há pessoas que optam por não ver o sucesso dos pares, porque as magoa. O sucesso de um par é ver que eu não tomei as opções certas para ter esta visibilidade e este respeito que a crítica está a dizer sobre este projeto. Eu gosto de sofrer, gosto de olhar, gosto de ver “é isto que se está a fazer”. De ir à procura da última crítica, do último comentário no Twitter, depois de 20 tweets de resposta, e de ver escrito “ele é um snob, é um beto que tem cunhas” e o meu nome. Gosto de sofrer ao limite e apesar de depois filtrar se isso é real, essa crueza e a mágoa criam uma carapaça do que é a vida, a sensatez está no meio. Perceberes que há vidas incríveis e que há vidas piores do que a tua. A complexidade artística dos outros magoa-me. Magoa-me mais do que terem um jacto ou um descapotável que eu não quero ter.

Porque achas que não consegues?
Porque acho que não consigo, mas ambiciono. Gostava de ter aquele talento, aquela cultura. Acontece-me muito com os escritores. Magoa-me saber que já não vou chegar lá, devia ter começado a ler aos 3 anos. Gosto desse sofrimento porque é a realidade.

Há aquela questão de o que é realidade e o que é ficção?
Quando temos aquele jantar de amigos lá em casa, em que a casa está toda arrumada e a cheirar a rosas, a mesa está bem-posta e não há cotão na cozinha. É verdade ou é uma ilusão? É uma ilusão. Começamos uma relação e é uma ilusão. Até os pais nós iludimos.

“Nunca consegui tornar intemporal aquilo que eu tinha na cabeça em texto. E em termos de características físicas, sou o contrário do que um stand-up comedian deve ser. A minha dicção não é clara. Tenho hiperactividade e défice de atenção, às vezes perco-me a explicar premissas. A minha voz não é possante, e todos os humoristas de stand-up têm isto.”

Falaste no humor de observação. É a parte do humor que te cativa?
Acho que já fiz mais humor de observação. Depois do Bon Vivant, onde fiz humor de observação, já não me interessa tanto. Já não me preenche. Nem ir à procura de criar alguma coisa com base no “as pessoas vão identificar-se com isto”.

Mas esta série é um pouco também humor de observação, mas de uma forma diferente.
Esta série é mais humor de observação de dentro para fora. Quando parto para criar são sempre coisas que eu vivi. 

Gostas muito do Bo Burnham e temos outros humoristas, como a Hannah Gadsby, que usam muito as próprias fragilidades para fazer o humor.
Esta tendência dá para trabalhar uma frequência que não é nem humor nem drama, é a tua frequência. Os humoristas são muito fundamentalistas e julgadores, defende-se que o stand-up é palavra, não há música, é só palavra. Stand-up é só set-up e punch line. Para mim sempre foi muito limitador, e esta abordagem para mim foi muito libertadora. Não o fiz por moda. Fazer uma boa piada é muito difícil e, durante anos, os humoristas eram só ritmo e piadas. Gosto desta ideia de os humoristas serem um bocadinho como os poetas e os escritores, que numa obra querem pôr a vida toda lá. As fragilidades, o ego, a validação, a depressão. Gosto desta nova era de os humoristas não serem só contadores de histórias com muita graça, mas de serem também ensaístas do que é a vida.

Nunca me senti genial a fazer stand-up. Mas porque as minhas referências nunca foram stand-up puro e duro e bit dissecado ao máximo. Já tentei ir para lá, já trabalhei muito para ter um texto de 15 minutos hilariante, só texto e sem música. Mas o que me fascina sempre mais é essa frequência. E não digo que uma seja mais difícil do que a outra, mas é a que eu mais gosto. E acima de tudo tenho mais liberdade para criar do que se fizesse só stand-up puro e duro.

O stand-up é muito mais datado e nunca consegue ser tão intemporal, não?
Nunca consegui tornar intemporal aquilo que eu tinha na cabeça em texto. E em termos de características físicas, sou o contrário do que um stand-up comedian deve ser. A minha dicção não é clara. Tenho hiperactividade e défice de atenção, às vezes perco-me a explicar premissas. A minha voz não é possante, e todos os humoristas de stand-up têm isto. E eu nunca consegui colocar em bits as minhas fragilidades, na peça consegui, mas em stand-up não. E no audiovisual tenho tempo para isso e consigo defender-me melhor. Vejo-me mais a fazer monólogos ou peças a dois do que stand-up. O stand-up, sobretudo agora, vai envelhecer sempre mal. Fazer piada é julgar e julgar parte de um preconceito e de um contexto. 

Em O resto da tua vida tínhamos o Sérgio Godinho, no Clube da Felicidade temos o Júlio Isidro. É como se precisasses de uma âncora?
São pessoas que eu admiro. O Sérgio Godinho aceitou, gostou do remix e ainda actuou comigo. O Júlio Isidro foi a mesma coisa, escolhe muito os projectos em que entra, é muito selectivo e foi a primeira pessoa em que eu tinha pensado. Ainda não sei porque é que ele aceitou, mas ele representa tudo aquilo que eu quero passar para a série. A ideia de longevidade artística, de felicidade, a ideia de olhar para a geração mais nova sem inveja — que é difícil, porque a vida vai-te magoando, vão-te fazendo rasteiras. Muitos artistas em Portugal estão magoados, aziados, e ele tem brio no que fez. Quando falo com ele parece que estou a falar com um par, com o Teixeira da Mota, por exemplo. Como a série é eu tentar viver disto saudável emocionalmente, estável financeiramente, com o respeito dos pares, ele representa tudo isto. Quando digo que tenho medo de ficar velho, não é velho de idade, é de cabeça. O Miguel Estes Cardoso deu uma entrevista recentemente em que falou de Arlo Parks e Billie Eilish, e eu acho que isso é saudável. Esse fascínio por coisas novas, sem paternalismos, sem pedantismo. Há uma tendência para achar que a nossa geração é especial, que tudo o que vem depois é estranho e magoa. Mas basta olharmos para a História para perceber que há tudo para fazer.

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