Entrevista. Carlos Vaz Marques: “Os livros são instrumentos de fomento do debate público”
Esta entrevista foi realizada no âmbito da avaliação da cadeira de Produção Jornalística do curso de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH.
“Olha, este é o tipo das maiorias absolutas, este tem uma história pra contar”. Foi a epifania que fez com que Carlos Vaz Marques convidasse Luís Paixão Martins a escrever Como perder uma eleição, um dos grandes sucessos da Livros Zigurate, editora fundada pelo jornalista e moderador do Programa cujo nome estamos legalmente impedidos de dizer, na SIC, e coordenador da coleção de viagens da Tinta da China.
O primeiro aniversário desta editora independente foi o pretexto para uma longa conversa com Carlos Vaz Marques.
Qual é o balanço que faz do primeiro ano da editora?
Bem, estou satisfeito. Acho que ultrapassou aquilo que esperava em termos de receção. Mas ainda não tenho um balanço em termos económicos, que no fundo são aqueles que verdadeiramente fazem com que o projeto destes vingue, ou não.
Isto porque o mundo da edição tem uma particularidade bastante disfuncional. Nós pomos os livros no mercado e recebemos imediatamente por aqueles que os livreiros queiram pôr nas livrarias, mas eles, 3 meses, 6 meses, 1 ano ou 2 depois, podem dizer que alguns livros estão a mais e reenviam-nos à distribuidora, que emite uma nota de crédito ao editor para reaverem o dinheiro que tinha sido inicialmente pago.
“Ler é bom, mas não faz de ninguém boa pessoa. É como tudo na vida. Podemos usar uma pá para plantar uma árvore ou dar com ela na cabeça de alguém. É um instrumento e como todos os instrumentos é passível de ser usado de forma benigna ou maligna.”
Quer dizer que a parte mais delicada do seu trabalho é a decisão sobre o tamanho das tiragens?
Esse é o aspeto central deste negócio e aquele em que ainda estou a tentar aprender. Em todos os livros que editei até agora, fiz uma primeira edição normalmente com 2000 exemplares que acabaram por ser todos colocados no mercado. A distribuidora disse-me: “não temos nenhum livro em armazém e temos livreiros a dizer que querem ter o livro nas livrarias”.
E em todos os livros fiz reimpressão, assumindo o risco que tinha a consciência estar a correr. Tinha a noção de que me estava a esticar e a ir para fora de pé, pela notícia que tinha de outros editores. Mas foi um risco calculado. Como estou em período de implantação de uma marca tenho de corresponder a que o livro esteja visível, mesmo correndo o risco de devoluções.
Todos os livros que até agora publicou deram lucro?
Lá está! Até agora, sim. Mas não sei que devoluções é que vou ter. Se daqui a meio ano falarmos outra vez pode ter havido livros que foram devolvidos num volume superior ao que estava à espera. É uma lotaria.
Não consegue ter a informação de quantos livros foram vendidos, através das livrarias?
Não. Há um sistema (que nem sequer é totalmente fiável), que mede as vendas da imprensa e de livros, mas uma assinatura desse sistema custa os olhos da cara e a Zigurate não tem condições para tal.
Não tendo acesso a informação precisa, qual diria que foi o livro com maior sucesso até agora?
Em termos absolutos do número de vendas, foram Na cabeça de Putin e Como perder uma eleição do Luís Paixão Martins. Na relação entre exemplares vendidos e impressos, foi As Guerras do Trigo, que neste momento está esgotado no armazém. Um livro que acabou por ser um sucesso surpreendente, eu próprio não esperava.
“Acredito que existe um número razoável de pessoas que quer conhecer mais a fundo os temas que estão na atualidade e que são passados pela rama nos telejornais e jornais.”
A editora tem tido bastante visibilidade — que se nota até ao nível de semanas passadas nos tops não-ficção de várias livrarias. A que se deve esse sucesso imediato?
Tem a ver com dois fatores. O primeiro é o facto de os livros serem bons. Não vou jogar um jogo de modéstia excessiva… Acho que os livros são bons e são pertinentes em função do clima cultural em que estamos. Dito isto, o facto de conhecer o modo como os media funcionam tem também um papel. Não tem nada a ver com cunhas nem connections. Tem a ver com que órgãos de comunicação e jornalistas especializados é que, em cada circunstância, podem ter interesse em determinado assunto presente nos livros que a Zigurate faz.
Editar livros sobre a atualidade política não será um risco, sabendo que várias pessoas se queixam duma overdose noticiosa?
É um risco. Mas acredito que existe um número razoável de pessoas que quer conhecer mais a fundo os temas que estão na atualidade e que são passados pela rama nos telejornais e jornais. Acredito no livro e na necessidade de aprofundar temas numa exposição mais alargada. Evidentemente, não é mass market, não é uma coisa para multidões.
Vê-se nos próximos tempos a voltar a publicar livros afetos à temática da guerra na Ucrânia?
É possível que publique para o ano algo sobre a Rússia. Neste momento, é um aspeto crucial do nosso ambiente cultural, mas não é uma obsessão. A minha única obsessão em publicar livros são os grandes temas do nosso mundo sobre os quais precisamos saber mais.
O filósofo francês Regis Debray orientou parte do seu pensamento através da pergunta “É possível que um livro espolete uma revolução?”. Depois de uma carreira a dar a voz aos projetos de várias pessoas como jornalista e moderador, encontramos agora, na Zigurate, o Carlos Vaz Marques a dar a voz ao seu próprio projeto político?
Não! De modo nenhum. Isto não é um projeto político, isto é um projeto cultural, no sentido lato do termo. Os livros são instrumentos de conhecimento e cultura. Não tenho nenhuma agenda especial. Bem, a não ser a agenda, vaga e genérica, de me reger pelos princípios da democracia representativa. Coisas bastantes banais, quero crer… Quer dizer, não há nenhuma intencionalidade política naquele sentido básico e imediato em que se entende a política. Se entendermos que tudo é política, há uma declaração de cidadania que é a de contribuir para os debates do tempo em que vivo.
“A minha única obsessão em publicar livros são os grandes temas do nosso mundo sobre os quais precisamos saber mais.”
Todos os seus livros na contracapa dizem que o mais famoso zigurate é o da história bíblica da torre de Babel e que esses edifícios expressavam o desejo humano de contacto com o desconhecido. No entanto, no mito da torre de Babel, deus acabou por castigar aqueles que queriam alcançar o céu. Poderá haver algum castigo por acompanhar a Zigurate nesta procura pelo desconhecido?
Há um, que é imediato. Daqui a meio ano os livros não se terem vendido, voltarem todos para trás, eu ter de passar uma nota de crédito e ficar depenado. (Risos)
Essa metáfora da torre de Babel é interessante para validar a ideia (que quero muito acreditar que seja verdadeira) de que precisamos de algo que nos faça ascender de alguma maneira. Claro que podemos viver a nossa vida comezinha, permanentemente desligados do mundo e sem interesse nenhum de nada. Cada um faz a sua opção, a minha opção de vida é a de tentar saber e conhecer um pouco mais e tentar ascender. Sem nenhum sentido arrogante. Melhoramento e conhecimento. Acredito que os livros ainda são o melhor instrumento para isso.
Em quem pensa como público-alvo da Zigurate?
(Risos) Penso em leitores que tenham a mesma curiosidade e voracidade que eu, pelos temas que me interessam. Contudo, de modo algum quero que os leitores sejam todos iguais a mim. Isso seria pavoroso.
O quão importantes são os eventos proporcionados por uma editora (como as apresentações e discussões de livros) para a valorização do seu papel cultural?
Na sequência da ideia de que os livros são instrumentos de fomento do debate público, tudo o que acrescentar, mesmo que pontualmente, em pequenos grupos, uma aproximação aos livros, é relevante. Portanto, parece-me muito importante.
Há pouco tempo, fui convidado para algo que ainda não se concretizou e não sei se vai concretizar, mas que gostava muito que acontecesse, até porque já tive uma experiência semelhante positiva. Fui convidado para fazer um clube de leitura à volta dos livros que publicar na Zigurate. E agrada-me muito a ideia de ter esse contacto com as pessoas que leram os livros e ouvi-las a discutir alguns dos seus aspetos. Os livros requerem silêncio e tempo, mas, nos melhores casos, também proporcionam conversa, encontros. Gosto muito disso.
“Os livros são instrumentos de fomento do debate público.”
Tanto na “Biblioteca de Estaline” como “Na cabeça de Xi”, dois ditadores, que aparentemente não têm grande respeito pelos direitos humanos, são nos apresentados como ávidos leitores. Diz-se que os grandes livros nos fazem pensar sobre a leitura. Foi esta uma razão para os ter escolhido?
Gosto muito dessa dimensão e a “Biblioteca de Estaline” foi claramente escolhida a partir da minha condição de leitor, resultado da minha curiosidade em relação ao leitor Estaline. O caso do Xi é menos evidente, porque lendo o livro percebe-se que ele diz que leu muito, mas, se calhar, não terá lido assim tanto. Há ali um lado de propaganda, que, aliás, é a base do regime chinês.
Acho muito paradoxal o facto de o Estaline ser um grande leitor, não sei se um bom ou um mau leitor. A conclusão que tiro é que ler é bom, mas não faz de ninguém boa pessoa. É como tudo na vida. Podemos usar uma pá para plantar uma árvore ou dar com ela na cabeça de alguém. É um instrumento e como todos os instrumentos é passível de ser usado de forma benigna ou maligna.
Na Zigurate, vê o seu papel mais como um editor (que na tradição portuguesa funciona mais como um publicador) ou um editor (que na tradição inglesa, tem um papel muito mais interventivo sobre o texto)?
Vejo-me mais como um publicador do que um editor. A não ser com os autores portugueses (até agora só publiquei um) em que posso ter um pouquinho mais de intervenção, opinião e diálogo com o autor em relação a alguns aspetos. Mas sendo que a maior parte dos livros são traduzidos, não vou ter mão sobre eles, porque já chegam fechados.
Ainda que “Na cabeça de Xi” tenha feito uma recomendação ao autor.
Aí, sim. Como o livro foi publicado antes de desenvolvimentos cruciais em termos noticiosos, contactei o autor e tivemos no verão passado, quase todos os dias, a trocar emails e a acrescentar coisas. Ele foi muito recetivo. Foi um trabalho interessante.
“A minha opção de vida é a de tentar saber e conhecer um pouco mais e tentar ascender. Sem nenhum sentido arrogante. Melhoramento e conhecimento. Acredito que os livros ainda são o melhor instrumento para isso.”
E no livro do Luís Paixão Martins foi o Carlos que o desafiou a desenvolver este tema.
Fui. O Luís Paixão Martins (ler entrevista), que não conhecia pessoalmente, foi um dos primeiros compradores dos primeiros livros que editei. Vejo os nomes das pessoas que encomendam os livros no site. Quando vi o dele lá, tive uma espécie de epifania e disse “olha, este é o tipo das maiorias absolutas, este tem uma história para contar”. Sabia que ele já tinha escrito alguma coisa, mas não sabia se escreveria excecionalmente bem. Era uma aventura, mas liguei-lhe. Encontrámo-nos e perguntei-lhe se ele quereria escrever sobre a experiência de ter estado envolvido em três campanhas de grande perfil.
Para quando podemos esperar livros de outros autores portugueses?
Neste momento, há quatro autores que estão a escrever, por isso, vamos ver. Já desafiei quatro, mas, na verdade, já tenho seis autores portugueses em processo.
Ainda não estão confirmados?
Não, eles confirmaram a intenção. Não tenho ainda os livros. Eles estão a escrever e só quando acabarem é que vamos ver no que é que vai resultar.
À medida que a editora começa a publicar mais livros, consegue ainda dar conta do recado ou vai ter de começar a delegar?
Até agora, estou a tentar segurar as pontas. Não tenho uma estrutura, mas já delego, porque contrato, tenho externalização de paginação, grafismo e revisão. À parte disso, faço tudo. Até os envios, vou todos os dias aos correios com as encomendas e tal. Agora já começa a ser um bocado pesado, mas tenho muito receio de criar uma estrutura, de contratar gente, porque isso é um compromisso que estou a assumir com uma coisa que ainda não sei a viabilidade. Mas há um momento em que vou ter de pensar em algum apoio.
Qual seria o tamanho ideal da editora?
Isso depende muito do número de títulos e do modo como o mercado se comporta em relação aos livros publicados. Digamos que o meu procedimento é pôr um pé a seguir ao outro e tentar que haja sempre terreno seguro na forma como a coisa evolui.
Neste momento quantas horas dedica à Zigurate?
(Risos) Todas, não sei. As minhas quintas-feiras são dedicadas ao Programa [cujo nome estamos legalmente impedidos de dizer] e às sextas-feiras vou gravá-lo. Mas estou permanentemente com a editora. É o meu full-time job. Neste momento, adormeço a pensar naquilo e acordo a receber e a mandar emails no telemóvel.
O lado contraproducente disso é que tenho muito pouco tempo para ler coisas que não estejam relacionadas com o trabalho. Ainda tento pôr-me a par de coisas recentes que saíram, mas não tenho a sensação de estar a ler por estar a ler. É tudo funcional. Mas não me queixo, sou um privilegiado.
“O mercado está dominado pelos grandes tubarões da edição, porque eles têm capacidade para ocupar os espaços das livrarias que têm visibilidade e para investir, coisa que as pequenas editoras não têm.”
Tendo em conta a dimensão da editora, cada livro representa um investimento considerável. Já se arrependeu de alguma escolha?
Até agora, ainda não aconteceu, mas vai acontecer (Risos). Mas ainda estou confortável com todos os que publiquei.
Desde meados dos anos 2000 tem-se assistido a uma convergência de editoras em grandes grupos editoriais. Este panorama abre espaço para as pequenas editoras?
Os grandes grupos têm uma grande vantagem, eles podem perder dinheiro com livros de nicho se conseguirem fazer dinheiro com livros de mass market. Mas a verdade é que não tem acontecido assim. Não têm corrido grandes riscos, a não ser muito pontualmente. Há pequenas editoras, como a Snob ou a Exclamação, a fazerem um trabalho muito interessante de pequena escala. Nesse sentido, abre espaço.
Contudo, a verdade é que o mercado está dominado pelos grandes tubarões da edição, porque eles têm capacidade para ocupar os espaços das livrarias que têm visibilidade e para investir, coisa que as pequenas editoras não têm. Resta-nos o sucesso de estima junto dos livreiros, aqueles que têm sensibilidade. Outros são movidos pelo mercado, mas ainda há livreiros que gostam de livros (Risos).
No mercado dos livreiros, a concentração ainda é maior, em Portugal.
80% dos livros vendidos são Fnac e Bertrand. É uma coisa asfixiante.
Isso deixa os editores numa posição difícil para negociar. Podemos falar de negociação sequer?
Não, não! De modo nenhum. Rendi-me à distribuição, à distribuidora da Bertrand, que julgo ser a maior de Portugal. E, portanto, entrego-lhes 62% do preço de capa de cada livro e eles põem o livro no mercado. Mas não há negociação nenhuma. Não estou a negociar nada.
E os restantes 38%?
Na verdade, para a distribuidora são 60+2. 60% do preço de capa para a distribuidora e depois, anualmente tenho de fazer 2% de marketing nas livrarias. Dos restantes 38%, 10% é para o autor, para os custos de produção vai uma percentagem variável, mas significativamente mais de 10%, para o IVA, 6%…
…e o restante para o editor?
E o restante para o editor, se restar alguma coisa. Porque depois depende do número de exemplares vendidos e pode acontecer que esse valor… É um negócio que não se aconselha a ninguém. É melhor nem fazer contas. Se fizer contas, deixo de fazer isto.
Cada vez que penso nesses termos, chego à conclusão “isto é estúpido”, porque vou ganhar, por cada livro, 50 cêntimos. Ou se fizer a tradução, ganho 1 euro. Se vender 1500 exemplares são 1500 euros e estive a trabalhar de manhã à noite durante três meses para fazer o livro. E atenção, vou ganhar se conseguir que o livro não volte para trás nas devoluções. Se o livro não se vender em número suficiente, o que voltar para trás é prejuízo.