Entrevista. Catarina Gomes (Manicómio): “Arte que é arte provoca e deixa qualquer coisa dentro de nós”
São o Manicómio e assumem-se assim, com a provocação que o nome traz. A ideia começou a criar embrião no hospital psiquiátrico Júlio de Matos, através dos fundadores originais, Sandro Resende e José Azevedo (faleceu em 2021), onde ainda desenvolvem alguns dos seus projectos e dão aulas, mas têm o seu próprio espaço onde, sem oferecerem arteterapia como tal, dão a oportunidade para que artistas com experiência de doença mental possam praticar e desenvolver o seu engenho artístico e, assim, encontrar a sua própria voz. Além da parte artística, o Manicómio também se pauta por descentralizar os espaços de consulta, que disponibilizam no seu próprio espaço e no Maat. As consultas, com o objectivo de ajudarem na redução do tempo de espera e auxiliarem a diminuir a estigmatização face à doença mental, são dadas por terapeutas, psicólogos e psiquiatras devidamente identificados com o seu currículo na página online do Manicómio. A Comunidade Cultura e Arte (CCA) falou com Catarina Gomes, integrante do projecto, para explicar como é o seu funcionamento. Referiu à CCA que “arte que é arte provoca e deixa qualquer coisa dentro de nós”.
É comum ver nos vídeos e entrevistas feitas às pessoas que fazem parte do Manicómio, estas referirem que ganharam um propósito. Que antes sentiam uma espécie de vazio e, agora, ganharam um propósito. Como compreendem isto? Têm essa percepção?
No geral, a nossa experiência é que as pessoas com experiência de doença mental, em Portugal, e diria no mundo todo, são pessoas altamente estigmatizadas. É, provavelmente, a condição mais estigmatizante que existe, com frases do género, “olha o maluco”, ou “olha, lá vem o maluquinho”. Desde o início, a pessoa deixa de ser a Ana, a Maria e a Cristina e ela vê-se, a si própria, como louca e deixa de ter a sua própria identidade como ser humano, como pessoa com propósito e com talento. É posta de lado para ser conotada, até por si própria, como uma louca sem valor. Isto é transversal às áreas de estudo que mostram que a auto-estima das pessoas é muito baixa e, depois, existem as características de uma doença, quer seja crónica ou não — todos, um dia, vamos ter, à partida, uma doença mental ou essa experiência — e há elementos, características, que podem não permitir à pessoa enquadrar-se nesta sociedade que lhes é vendida, do trabalho das nove às 17 horas, entre outras coisas. Nesse sentido, diria que o Manicómio é transformador para os artistas que estão connosco porque os artistas, quando estão connosco, deixam de ser os doentes e passam a ser as pessoas que têm uma comunidade a torcer por elas, a acreditar nelas e a criar uma série de estruturas para que elas vinguem na sua profissão. No Manicómio temos pessoas que têm um talento artístico incrível, isso é muito importante, ou seja, é um ateliê artístico e nós trabalhamos com artistas com experiência de doença mental. O que nós temos visto, e até fazemos isso, na verdade, é monitorizar estas questões mais emocionais. Existe um aumento do bem-estar, da auto-confiança, da felicidade e, por sua vez, há todo um impacto económico por começarem a vender as suas peças, ganharem nome e serem reconhecidos pelo seu talento.
Quanto aos artistas que estão convosco, já tinham experiência artística antes de passaram por uma experiência de doença mental, já eram profissionais, ou encontraram esse propósito convosco?
Alguns têm essa base. Temos alguns artistas que foram para as Belas Artes, por exemplo, e que já tinham uma carreira como artistas, e alguns que saíram das Belas Artes e não tinham carreira. Outros já tinham carreira — é muito vasto — mas, depois, temos alguns casos — para aí uns três, por exemplo — que são pessoas que nunca se viram como artistas, que faziam umas coisas em casa e ou nos mandavam uma fotografia ou já os conhecíamos porque trabalhámos, há muitos anos, noutro projecto dentro do hospital psiquiátrico de Lisboa, conhecido como o Júlio de Matos. Já conhecíamos o trabalho que iam fazendo por carolice — não ligavam àquilo, mas iam fazendo e víamos uma coisa extraordinária. Tenho a certeza que muita gente conhece pessoas assim, que não se consideram artistas e é desta forma, mais ou menos, que temos este grupo muito diferente dos outros.
E quanto aos fundadores e às pessoas que estão à frente do projecto, têm alguma base de conhecimento em saúde mental?
Não. Nenhum de nós tem um background em saúde mental, quer sejam os fundadores — o Sandro Resende e o José Azevedo (que infelizmente já faleceu) — quer eu e o outro colega, também. Temos, depois, psicólogos consultores que trabalham connosco, ocasionalmente, e psiquiatras. A equipa principal, no entanto, não tem background em saúde mental. Continuamos com o projecto no hospital psiquiátrico Júlio de Matos, que tem um pavilhão artístico aberto, igualmente, a exposições de fora — não tem de ser apenas artistas com experiência de doença mental . Eles [Sandro Resende e José Azevedo] começaram a dar, há 20 anos, aulas dentro do hospital e, como artistas, foi um local onde viram um talento inacreditável. Pegaram nas peças, foram às galerias comerciais e, estranhamente, as galerias recusaram a venda das peças porque vinham dos “maluquinhos”. Nós funcionamos muito por provocação, surgiu, então, esta ideia de organizar exposições dentro do Júlio [de Matos] entre artistas de renome nacionais e internacionais, como de artistas do próprio hospital, não dizendo quem é que fazia o quê. Isto foi o pontapé de saída durante 20 anos, mas mais ou menos há seis anos surgiu esta reflexão que estava na altura de ter outro projecto fora do hospital, onde tivéssemos também mais liberdade. O hospital, enquanto estrutura, tem as suas próprias normas de funcionamento, assim como as próprias pessoas que estão no hospital têm horários muito rígidos, mas assim surgiu o Manicómio. Nós continuamos no Júlio [de Matos] com este projecto, de qualquer forma, a dar aulas.
O termo “arte bruta” é o mais utilizado, na generalidade, para catalogar a arte realizada por pessoas com experiência de doença mental. Encaram isto como uma etiqueta ou não?
Nós odiamos etiquetas porque temos, por exemplo, um grupo tão variado de artistas, temos tantos tipos de arte, que é impossível catalogar. Em alguns casos até se pode dizer, “ah, isto é tão arte bruta”, certo, mas outros não têm nada a ver. Os nossos artistas são de arte contemporânea. Quando vamos para fora de Portugal, por exemplo, vamos, também, a exposições de arte bruta, a exposições de arte informal e arte contemporânea. Mas, para nós, o caminho futuro e de todos os artistas, mesmo artistas sem experiência de doença mental, é ser anti-etiqueta ou anti-catálogo — isso é muito limitador da prática artística e no próprio mercado.
Não sei se, depois, tiveram curiosidade em ver, por exemplo, como funcionam projectos idênticos noutros países ou, até, em Portugal. Em Portugal, por exemplo, temos o caso do Jaime Fernandes e, depois, temos, no Brasil, a Nise da Silveira. Não sei se procuraram essas referências.
Conhecemos muito bem. O Sandro e o Zé [já faleceu] são os maiores especialistas de arte e saúde mental, em Portugal. Já fizemos duas pesquisas, a nível nacional, de artes em unidades psiquiátricas e várias exposições com artistas que já faleceram ou que ainda estão vivos. O Jaime e o Valentim são grandes exemplos de arte em Portugal e que foram ostracizados. Nós temos muita ligação com o Brasil, também, e participamos, online, em muitas conferências, temos muitas visitas e muita ligação com o “Bispo do Rosário” que é o maior artista brasileiro da chamada arte bruta, fantástico, que também já faleceu — fizemos também um livro com a arte dele. Estamos sempre à procura de coisas novas e é impossível não admirar estes artistas.
Geralmente, há sempre a tentação de se ligar a arte à loucura, ou ligar o artista à loucura. Acham que pode haver uma ligação ou isso é um cliché?
Acho que é um pouco cliché, no sentido em que se assim fosse, um quarto da população portuguesa seria artista. Isso é o que os dados mostram e não é verdade, certo? O que acho é que os processos de experiência de estados não controláveis podem trazer muita honestidade à nossa expressão, muita pureza e ingenuidade. Mas penso que tem de estar aliado a um talento artístico e a uma vontade de expressão.
Vocês encaram a arte como forma de comunicação, também?
Diria que qualquer artista procura a sua voz na sua expressão artística. Aliás, é uma grande questão, uma grande origem de frustração para qualquer artista, quer seja com experiência de doença mental ou sem, não encontrar a sua voz, o seu posicionamento, a clareza do que quer expressar e porque o quer expressar. Isso está muito relacionado com a comunicação e a forma como ele ou ela quer comunicar com o mundo ou, então, consigo mesmo. Nesse sentido, a comunicação é importante. No sentido social, da sociedade, também é importante que o artista comunique para se mostrar e se posicionar.
Relativamente a consultas fora do hospital, a procura de espaços mais humanos, quais são vantagens implícitas nisso? Porque é que a humanização do espaço é tão importante na saúde mental?
Como disse há pouco, nós funcionamos muito na base da provocação, do desafio, o “não podes, não vais, não é possível”, e por aí fora. O Zé e o Sandro sentiam, também, a frustração de verem o estigma associado ao hospital, ao Júlio [de Matos] — quando se entra no local a gente sabe o que se vai lá fazer — e, depois, todo este processo é pesado, o de encontrar o segurança, a recepcionista, a fila de espera e essas coisas todas. Foram todos estes anos a pensar nisso e, claro, houve um dia, já no Manicómio, em que surgiu esta ideia, “porque é que não posso ter uma consulta de psiquiatria aqui no sofá?” Tão simples quanto isto, toco à campainha, alguém abre a porta, venho para o sofá e tenho uma consulta. Para nós, isso é a necessidade de criar novas formas de acessibilidade para a saúde mental: esta necessidade gigante que existe de facilitar o processo, de remover o estigma e de estar em espaços que são inspiradores, que não são ameaçadores e que são, de alguma forma, terapêuticos — são tão bonitos — onde a pessoa e o técnico de saúde mental possam ter uma relação horizontal e equilibrada e não uma relação muito desigual. Se eu vou ao hospital é uma relação de poder, quase. Atenção, somos a favor dos hospitais, isto é um complemento. É uma relação muito mais justa, no entanto, parece-nos.
Qual tem sido a reacção de psiquiatras e psicólogos ao vosso trabalho? Qual tem sido o feedback da comunidade médica?
Este projecto já existe em fase piloto, ou seja, há dois anos, no próprio Manicómio. Agora lançamos no Maat e todos os holofotes viraram-se para o projecto. A reacção tem sido super positiva e, nós, também, temos técnicos muito bons — temos a certeza que são os técnicos mais dignos para esta posição. Não é só uma vez e pronto. É como ir a um consultório, mas sem as quatro paredes fechadas. A periodicidade é igual, a prática terapêutica é igual, mas a reacção tem sido super positiva, especialmente dos psiquiatras e dos psicólogos mais jovens. Já recebemos mais de 50 CV’s de psicólogos em 48 horas para poderem participar no projecto e, também, porque queremos abrir vários núcleos pelo país e fora de Portugal. Estão interessados, também, em fazer parte de novos núcleos no Porto e Bruxelas, por aí fora.
E a privacidade está assegurada? Como garantem a privacidade das consultas?
Sim, claro. O que é que acontece? O técnico de saúde mental tem aqui uma grande responsabilidade: ele é responsável pela intervenção terapêutica, assegura qual é a melhor estratégia para esta pessoa e eles — o técnico e a pessoa que usufrui da consulta — escolhem um sítio, um espaço interior ou exterior do Maat, onde a pessoa se sente confortável a ter a consulta. Não é só confortável, “aqui está ok”, mas confortável, também, no sentido em que o espaço é inspirador para esta pessoa. Temos os espaços todos mapeados, assim como os horários, para se ter toda a privacidade assegurada. Mesmo sendo um espaço público, há espaços resguardados, há cantos, há salas amplas, até pode acontecer que há uma pessoa que queira estar no meio das outras pessoas, mas isso é escolha dela. A privacidade está super assegurada, no entanto. Só para ressalvar mesmo, tivemos dois anos a experimentar exactamente isso.
E quanto aos profissionais de saúde? Sentem que estão abertos e receptivos à ideia de que a arte pode ser o seu papel?
Super aberta. Estão muito entusiasmados. Aliás, a exposição anterior no Maat, uma delas era uma exposição incrível como pontapé de saída para várias conversas. Infelizmente, a exposição saiu há duas semanas, caso contrário tinha sido a indicada para começar lá o projecto. Fizemos uma série de visitas com os técnicos ao museu para verem espaço e para os preparar a eles. Eles saiam, sempre, maravilhados e também acho que as pessoas que vão poder aderir, especialmente os técnicos de saúde mental a este núcleo no Maat, são pessoas que, à partida, já adoram arte também.
Mas quanto ao ateliê artístico, vocês guiam os artistas quanto à arte que fazem? Orientam nesse sentido ou há total liberdade?
Há total liberdade. Isso, às vezes, é um ponto de frustração porque nós não damos orientações — “faz mais para a esquerda, faz mais para a direita, hoje vamos fazer arte figurativa ou isto é de mais, faz só isto”. É um espaço onde nós estamos lá e podemos, de alguma maneira, guiar as pessoas, mas é um espaço onde eles e elas têm de encontrar a sua voz. Isso, no início, cria muita frustração. Há liberdade total e liberdade artística.
Sentem que há a oportunidade do Manicómio alargar os seus espaços a outros locais? Ou que poderá impulsionar outros projectos idênticos?
Sim, claro. Aliás, há muita gente que vem ter connosco e que quer abrir outros manicómios. Nós estamos sempre abertos a apoiar outras pessoas, essas organizações, fazemos um tipo de consultoria, mas, também, está no nosso plano abrir o Manicómio noutra zona do país. Crescemos tanto em quatro anos, mas ainda não vai ser para o ano que vem, não posso dizer quando vai ser, mas há uma coisa que nós dizemos muito, porque há mesmo muita gente que quer abrir outros manicómios: nós somos um estúdio artístico, dizemos que nem toda a gente tem talento artístico, mas mais do que copiarem na parte artística, é utilizarem, também, a nossa metodologia. Na verdade, trata-se de um espaço que criámos inspirado nos conceitos de direitos humanos, em que a pessoa pode ser o que ela quiser. Está lá uma equipa a apoiar e a pessoa pode seguir os seus sonhos, explorar o seu talento, mas tem também um espaço de apoio: para isso, há tantos outros temas e tantas outras profissões que podem ser adoptadas como tema. Nós estamos, sempre, a incentivar as pessoas a abrirem esses espaços, o que é muito preciso. Em Portugal, na saúde mental, há um grande foco na parte hospitalar, que é necessária mas, depois, quando as pessoas saem do hospital, ficam muito perdidas. Nós recebemos muitos e-mails de pessoas e contactos que querem apenas um sítio para estar e serem escutadas
Mas têm essa percepção? A noção de que quando uma pessoa sai do hospital se sente perdida?
No geral, sim, acho que é normal. Trata-se, também, de uma fase em que a pessoa sai do hospital e ainda não está super estável — isso é outra coisa. Mas existem, obviamente, centros de dia que são óptimos — depende de cada pessoa — mas, no geral, há muitas filas de espera e há muitos que têm uma vertente muito ocupacional, que é ocupar por ocupar: nós não acreditamos muito nisso.
Em linhas gerais, a arte pode ser boa para uma melhor educação sentimental?
Acho que qualquer experiência que nos permita emoções e nos permita passar por diferentes fases de estágios é sempre boa para a nossa experiência de vida. A arte que é arte provoca e deixa qualquer coisa dentro de nós. Por isso é que viver e experienciar a arte faz parte do processo de vida. Temos uma vida mais pobre se não pudermos presenciar arte, aquilo que representa nas diferentes formas para as pessoas. A minha noção de arte é diferente da sua e isso é muito importante para, também, não sermos condescendentes nem arrogantes. A natureza pode ser arte, um quadro pode ser arte, mas este experienciar de emoções é crucial para a natureza humana.