Entrevista. José Manuel dos Santos: “O futuro é quase sempre mais imprevisível do que parece”

por Linda Formiga,    14 Julho, 2023
Entrevista. José Manuel dos Santos: “O futuro é quase sempre mais imprevisível do que parece”
José Manuel dos Santos / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Esta não é uma revista de opinião, é uma revista que se vê e se lê”, diz-nos José Manuel dos Santos, administrador e director cultural da Fundação EDP, no seu escritório virado para o Tejo onde, há cinco anos, também dirige a revista Electra. E, ao longo das suas 21 edições, a revista teve como tema central o turismo, a velocidade, de media e jornalismo, a estupidez, o futebol, a comida, o dinheiro, os números, o ócio e o lazer. Lemos sobre cidades nas palavras de quem lhes percorre as ruas e lemos artigos de quem vive o tempo. O nosso tempo.

Foi para percebermos o nosso tempo com a revista Electra que falámos com José Manuel dos Santos, numa conversa editada e condensada e que se transcreve abaixo.

Nas primeiras linhas do primeiro número da revista lê-se «Que poderemos dizer que seja certo?» (Ésquilo, Coéforas), uma pergunta de Electra, a personagem mitológica, e a pergunta sem resposta definitiva de Electra, a revista. A pergunta colocada por Electra na obra de Ésquilo continua a ser pertinente ao quinto ano da revista?
Continua, e cada vez mais. Acho que o nosso tempo se tornou mais confuso, incerto e até perigoso com tudo o que sucedeu. E outra característica que o nosso tempo tem é a de as pessoas viverem apenas no imediato. A comunicação social transformou-se numa fábrica de espectáculos consagrando verdadeiramente o que Guy Debord chamava de “sociedade do espectáculo” e em que tudo é importante, fundamental, vital num dia para no dia seguinte já ninguém querer saber porque, entretanto, surgiu um novo fundamental, um novo vital. Isto cria, em primeiro lugar, um ambiente que não permite a qualquer instituição ter estabilidade ou solidez e dá às pessoas um sentimento de infinita fadiga. As pessoas sentem-se fatigadas da insistência no divertimento, no entretenimento que, no fundo, é uma tentativa de antídoto para essa fadiga que sentem da informação constante, de não haver tempo para sequer seleccionar. Tudo é instantâneo e tudo é vivido instantaneamente, com resultados trágicos para a política, para a cultura, para o pensamento e para a compreensão do que estamos a viver. No primeiro número citámos Giorgio Agamben, quando este diz que só se compreende verdadeiramente o tempo, e por isso só se é verdadeiramente contemporâneo, quando se consegue ter alguma distância em relação a esse tempo. Já diziam os femonologistas que essa distância só nos é dada quando entre nós e as coisas se interpõe a consciência de nós próprios e a consciência das coisas.

“A comunicação social transformou-se numa fábrica de espectáculos consagrando verdadeiramente o que Guy Debord chamava de “sociedade do espectáculo” e em que tudo é importante, fundamental, vital num dia para no dia seguinte já ninguém querer saber porque, entretanto, surgiu um novo fundamental, um novo vital.”

Nestes cinco anos tivemos também um acontecimento que trouxe grandes mudanças à sociedade…
Foi a Covid e a guerra agora. Que eu acho que veio agravar e revelar algumas coisas, algumas verdades e algumas mentiras do tempo que estamos a viver, mas eu creio que está uma tendência de fundo que também dá origem a tudo o que se está a passar. E que ao mesmo tempo trata e domestica a maneira como nós tratamos a guerra, a maneira como tratamos a pandemia. É também a maneira como o nosso tempo trata tudo. Na pandemia houve uma invasão quotidiana de informação, com números diários, informações contraditórias, interpretações que já não se sabia o que era verdade e o que era mentira. E no fundo tudo se tornou um espectáculo, a guerra tornou-se um espectáculo. A ideia de sociedade do espectáculo é, para mim, fundamental. Sem isso, não conseguimos compreender o nosso tempo. Tudo o que o Guy Debord e outros falaram sobre a relação da sociedade do espectáculo com o sistema económico e social que transforma tudo em mercadoria. Em Portugal ainda há umas particularidades e umas especificidades nomeadamente a essa figura que que invadiu o espaço público que é o comentador. Os comentadores de desporto, os comentadores de futebol, os comentadores de moda. E o que é um comentador? É uma pessoa que acha que a sua opinião está no centro do mundo, quando não tem qualquer autoridade para a ter, não tem obra. Poderia ser autoridade que advinha daquilo que diz, mas o que diz são banalidades, lugares-comuns. Coisas que na maior parte das vezes não têm sentido, consistência e nem sequer inteligência. No entanto, é agora uma figura mítica, mas também o que dizem não interessa porque o que dizem hoje, amanhã já ninguém quer saber. No fundo, é o famoso aforismo de Nietzsche que nos diz “eles turvam as águas para que elas pareçam profundas”, mas se pusermos lá o braço nem tem meio metro.

Neste primeiro número tínhamo-nos proposto fazer uma espécie de retrato do tempo, sabendo que esse retrato é móvel e incompleto, o que não impede que se fala uma tentativa de ir desenhando alguns traços daquelas coisas que nos possam dar consciência do que estamos a viver, relacionando-as com o passado e com aquilo com o passados nos mostra, com aquilo que são as tendências que de alguma maneira configuram não o futuro, mas os caminhos para chegar ao futuro. O futuro é quase sempre mais imprevisível do que parece. Referimos, no último editorial, Octávio Paz, que nos diz que os homens erram quase sempre a previsão do futuro e por isso é esse também o seu exercício favorito.

Revista Electra Nº1 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Sobre a revista…
A revista tem uma parte que é um dossier temático. Nós elegemos um tema que considerados ser um tema fundamental presente na vida do nosso tempo. Daí o primeiro número ter sido uma reflexão sobre a época – quais são as características de uma época, uma apreciação um pouco mais generalista que depois formos explorando dos indícios, dos mitos. A outra parte da revista tem também alguns temas que consideramos fundamentais, por exemplo, metropolitano, porque é impossível olhar para o nosso tempo sem perceber o que se está a passar nas cidades, mas também a relação da cidade com o campo. Depois tentamos também estabelecer o perfil de algumas figuras que consideramos terem algo a dizer. Protagonistas que têm uma obra original e que nos falam dessa obra ou a partir dessa obra. Esta não é uma revista de opinião. Há uma carta famosa do Jorge de Sena que diz não querer saber “a opinião dos outros, nem sequer a minha me interessa”. E aqui temos uma pessoa, que convidamos para escrever não para nos dar a sua opinião, mas sim porque tem obra fundamentada sobre um certo tema e a partir dessa diz-nos o que pensa. É uma manifestação de pensamento. Pode ser pensamento verbal, ou visual ou através de outras linguagens.

Daí temos muitas obras, muitas imagens nas páginas da revista também.
Exactamente. Um dos nossos lemas é “uma revista que se lê e que se vê”. Numa época em que a palavra foi cedendo lugar à imagem, não somos uma revista que quer contrariar, mas sim assumir algumas das tendências da época para poder analisar e auto-analisar. Vamos escolhendo e olhando com espírito crítico. Octávio Paz diz que mais importante do que a liberdade, o exercício maior da liberdade e que fez as democracias avançar na história ocidental foi o espírito crítico sobre si próprio e sobre os outros e será uma tragédia que isso se perca. A revista tenta ultrapassar as divisões rígidas entre as disciplinas, é uma revista atenta a todas as geografias, culturas, políticas, realidades sociais.

Museu da Eletricidade (Lisboa) / Fundação EDP – Fotografia de Rui André Soares – CCA

Como se pode designar a Electra? Revista de pensamento?
Nós dizemos de pensamento, já lhe chamamos pensamento e crítica ou pensamento e cultura contemporânea. Crítica aqui não é o sentido habitual que a palavra tem, porque não fazemos críticas para dar 4 estrelas, 3 estrelas. Achamos até que esse é um dos sintomas, essa tentativa que existe de quantificar tudo. Mallarmé dizia que tudo o que existe, existe para acabar num livro e nós dizemos que, no nosso tempo, parece que tudo o que existe, existe para acabar numa folha de Excel.

Já falámos de comentadores, falámos de pensamentos, mas o pensamento crítico parece estar em queda livre…
Não há tempo sequer. O tempo não deixa. E por outro lado, vivemos numa sociedade que é, diz-se, a sociedade que mais recorre a mais antidepressivos, porque temos de nos divertir todos. E isso parece querer substituir o pensamento crítico. Antes de existir a revista Electra, fizemos, aqui na Fundação EDP, uma exposição sobre o humor. E interrogamo-nos porque é que, de repente, tudo tem de ter uma piada para aparecer, quando, muitas vezes, não tem graça alguma. Aquela ideia de que o humor é sempre inteligente é uma ideia profundamente estúpida, porque sabemos que o humor também já serviu regimes totalitários, serviu para ostracizar grupos raciais e étnicos, classes sociais, orientação sexual. O ser humano manifesta muitas vezes a sua estupidez através do humor, da piada estúpida, grosseira, etc. Também há pessoas que fazem humor com muita inteligência, como tudo o que pode ser feito com inteligência, e também com estupidez. A estupidez até pode ganhar um tom que quase parece inteligente.

“Havia uma diferença entre a opinião pública e a opinião publicada e parece que, de repente, essa diferença também desapareceu.”

Li recentemente que o quociente de inteligência dos humanos está a reduzir. Isso prende-se também com o facto de termos tudo, de termos uma vida mais facilitada.
É estranho porque foi na sociedade de grande ociosidade, em sociedades injustas em que as pessoas tinham escravos que lhes faziam a vida prática toda, que se conseguiu produzir melhor pensamento. Mas agora parece que estes instrumentos, alguns muito úteis, nos escravizaram e tiraram-nos tempo em vez de nos dar tempo. Trouxeram-nos [os instrumentos] uma espécie de necessidade de responder permanentemente a todos os estímulos que nos chegam de fora. E não há vida interior, como dizia o outro, que classificava as pessoas entre as que têm vida interior e as que não têm vida interior. E a maior parte das pessoas não tem vida interior. Esta ideia de mandar e-mails ou de ligar e a pessoa ter de responder a tudo o que lhe mandam é o fim da separação entre o que é público e o privado, e que contaminou todos os sectores da sociedade. Havia uma diferença entre a opinião pública e a opinião publicada e parece que, de repente, essa diferença também desapareceu.

José Manuel dos Santos / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Mas são tudo também indicadores da deterioração do discurso de que falámos.
E das instituições. Não sabemos o que é futuro. Para citar novamente o Nietzsche que dizia que o futuro chega sempre com passos de puma, no sentido em que provavelmente o que mais interessa para o futuro é o que não damos por ele. Não há hoje instituição nenhuma, o Estado, a linguagem, os organismos, as instituições. Tudo isto se degradou.

Há não muito tempo, por exemplo, era possível que uma pessoa do CDS comunicasse e dialogasse com uma pessoa do extremo oposto. Agora, parece que é impossível. É também parte desta degradação do discurso?
Eu vivi a revolução de 74, fui durante anos assessor de Mário Soares e depois de Jorge Sampaio e tive a experiência de estar 20 anos no Palácio de Belém. O país esteve, como se disse na altura, à beira da guerra civil. Há um debate no Verão quente entre Mário Soares e Álvaro Cunhal em que o país estava com armas na mão. E nesse debate não há um ataque pessoal. Um debate duríssimo, um ataque duríssimo no domínio da política, mas nunca houve um ataque pessoal. E os debates com os 4 líderes, o Soares, o Cunhal, o Sá Carneiro e o Freitas do Amaral eram debate político, duro, por vezes agressivo, mas debatiam-se ideias, propostas, palavras. Mas não havia este ataque permanente. O que também tem que ver com o fim do privado e do público. Hoje, um grande líder intelectual não tem possibilidade de ganhar eleições. Alguém que tenha um discurso que não faça cedências não diria ao populismo, mas pelo menos ao popular, não consegue ganhar eleições.

“Há quem defenda que quem sabe apenas aquilo que profissionalmente sabe, nem sequer profissionalmente está bem apetrechado, porque precisa de saber mais coisas para ser um bom profissional. Se é um médico ou se é um engenheiro ou se é um gestor, não lhe chega saber só de contas ou de medicina ou de engenharia. Precisamos de ter sempre um olhar mais alargado.”

Falávamos há pouco de inteligência e agora está na ordem do dia a inteligência artificial e o ChatGPT.
Vamos dedicar um número a esse tema. O que se diz é uma coisa muito inquietante, que consequências que não sabemos quais são. É importante que comecemos a falar com pessoas que, com propriedade, nos falem mais sobre esse tema. Já sabemos que muitas vezes os grandes avanços tecnológicos provocam sempre previsões catastrofistas, e por vezes não é bem assim. Mas convém sempre indagar. Até para que se preserve a liberdade individual e colectiva e não nos entregarmos inteiramente a uma espécie de destino tecnológico que nos rege e impede de pensar e de escolher. Esperemos que não tenhamos de dar razão ao que disse Heidegger sobre a idade da técnica, que foram previsões muito apocalípticas e pessimistas.

E que não seja o ponto no final no pensamento crítico…
Ainda agora houve uma entrevista com o Chomsky que disse que a inteligência artificial era o maior atentado ao exercício do espírito crítico. Fazemos a referência no último número sobre a interrogação sobre o que é um espírito crítico, que condições há e em que condições continua a poder exercer-se.

Fotografia de Rui André Soares – CCA

Sente que a Electra está editorialmente em contra-corrente?
De certa forma. Costumamos dizer que estamos a ocupar um lugar que estava vazio.

Que esvaziou?
Acho que está há muito tempo vazio. Em Portugal nunca houve muitas publicações como esta no panorama editorial. Mesmo nos países em que havia ensaios críticos em todos os temas, mesmo isso diminuiu. É em Portugal, é a junção destas duas coisas, uma tradição de escassez com uma falta de oportunidades da actual sociedade para esse tipo de exercício do pensamento.

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E que rescaldo há sobre o público da Electra?
Sim, intuitivamente — porque há estudos a serem feitos — consideramos que o nosso público é, na sua maioria, jovem. A pergunta é se a Electra corresponde aos desejos de alguém que, por aquilo que estuda, encontra na revista aquilo que quer ou se ultrapassa as fronteiras das pessoas que estudam as disciplinas que se reflectem na Electra e que têm interesse de querer compreender o mundo. Há quem defenda que quem sabe apenas aquilo que profissionalmente sabe, nem sequer profissionalmente está bem apetrechado, porque precisa de saber mais coisas para ser um bom profissional. Se é um médico ou se é um engenheiro ou se é um gestor, não lhe chega saber só de contas ou de medicina ou de engenharia. Precisamos de ter sempre um olhar mais alargado.

No editorial da 20.ª edição da revista Electra lê-se “dar tempo ao tempo é saber tirar de nós e do mundo, criando-as, as ideias, as palavras e as imagens que o fixam na sua resistente imutabilidade e o prolongam na sua insolente mobilidade”. É neste dar tempo ao tempo, de forma informada e ponderada, que a Electra tem sido a revista que cada vez mais nos acompanha.

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