Entrevista. Catarina Marques Rodrigues: “Tudo tem a ver com o género, não há nenhuma área em que a questão do género não entre”

por Ana Monteiro Fernandes,    20 Outubro, 2024
Entrevista. Catarina Marques Rodrigues: “Tudo tem a ver com o género, não há nenhuma área em que a questão do género não entre”
Catarina Marques Rodrigues / DR
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Como a desigualdade de género afeta a liberdade das mulheres” é o título do texto que a jornalista e autora do programa “Dona da Casa”, Catarina Marques Rodrigues, escreveu para o livro “Reflexões sobre a Liberdade, Identidades e Famílias”, publicado em setembro deste ano. Jornalista especialista em questões de género, mas sem se considerar ativista, porque acredita que há quem ligue o jornalismo de causas ao ativismo como uma forma de descredibilizar esse mesmo jornalismo, explica nesse mesmo texto como a crise habitacional acaba por afetar mais as mulheres, como a desigualdade salarial ainda é uma realidade e como, em Portugal, uma legislação avançada ainda não encontra uma aplicabilidade real dessas mesmas leis. No momento da presente entrevista, Catarina Marques Rodrigues encontrava-se em Cabo Verde a dar “formação a jornalistas sobre como é que as mulheres são mais impactadas pelas alterações climáticas e como é que elas próprias são as produtoras de soluções para combater as alterações climáticas“, explica.

Relembra ainda que “os países de África são os que menos contribuem para as alterações climáticas e são os que mais sofrem com as suas consequências agravando, desta forma, a situação das mulheres.” Sensatez é a sua palavra de ordem e gosta de se alicerçar em factos, tal como se exige ao jornalismo e assim é esperado, ao invés de um discurso agressivo que afaste as pessoas. É nesses factos em que se alicerça e é assim que se prepara para o seu programa na Antena 3, “Dona da Casa”, para o qual já entrevistou figuras representativas de visões diferentes desde Alexandra Leitão, do PS, até Assunção Cristas, ex-líder do CDS-PP. “Considero que, muitas vezes, há um discurso que vem, supostamente, de uma base inclusiva e igualitária para a promoção da igualdade mas que, depois, é tão ácido que acaba por afastar as pessoas em vez de as aproximar. Causa o contrário do que é pretendido e tem um efeito perverso“, explicou à Comunidade Cultura e Arte na entrevista que se segue.

Quando decidiste que querias seguir esta área jornalística e porquê?

Sempre tive uma preocupação muito pessoal com estes temas. Lembro-me que na escola primária até já era apelidada de jornalista pelas professoras porque fazia sempre as perguntas inconvenientes. Nunca levei para casa recados por más notas ou mau aproveitamento, mas levava sempre recados por ser muito conversadora e por fazer muitas perguntas. Por isso mesmo, algumas professoras diziam: “Tu davas era para jornalista, estás sempre a dizer porquê e porquê, nunca te acomodas só com aquilo que dizemos.”  Outras diziam que devia ser advogada porque, também, era muito interventiva, não deixava escapar nada. Sempre que houvesse alguma situação da qual não gostasse ou que me suscitasse alguma questão — que eventualmente achasse que não fosse correta — era muito reivindicativa.

Ao longo dos anos estive, de facto, entre direito e jornalismo mas, depois, comecei a achar muito interessante a ideia de ter poder para mudar a situação à minha volta, nomeadamente a discriminação de género que via muito no meu seio familiar. Cresci numa família de classe média, numa aldeia no centro do país, então a feminização dos trabalhos — o facto de serem as mulheres a cuidarem dos filhos, a prepararem as refeições, a decidir o que a família vai comer durante toda a semana — sempre me fez muita confusão. Eu própria via a minha mãe, nos almoços de domingo, a cozinhar e, depois, ser ela a última a servir-se, não esquecendo que foi ela que preparou a refeição.

Era a última a servir-se, depois lá se sentava com muita insistência minha e da minha irmã também, para desfrutar do almoço. Sempre que faltava algo ou sempre que alguém queria alguma coisa, sal ou o que fosse, ela era a primeira a levantar-se. Claro que começámos a ajudar e a partilhar as tarefas, mas havia sempre este foco do homem mais ligado ao descanso enquanto que a mulher estava ligada a estas tarefas, quase como se fosse uma função inata, como se ela nascesse com alguns genes específicos para o cuidado da casa e dos filhos. Depois andei ali entre direito e jornalismo e pensei, também, em áreas relacionadas com as relações internacionais porque associava muito esse poder da mudança ao poder que as instituições têm, tal como a ONU e a Comissão Europeia.

Como não conseguia decidir-me, acabei por me candidatar para a Ciência Política e Relações Internacionais, que foi o curso em que entrei e fiz. Depois de lá estar, percebi que aquele trabalho efetivo e prático que queria fazer iria demorar muito tempo ou, então, não ficou claro para mim que esse papel de mudança, de ação e de criação de consciência se fosse traduzir na prática. A minha faculdade, a FCSH da Universidade Nova de Lisboa, tinha e tem o curso de Ciências da Comunicação. Já tinha muita ligação com as pessoas que estavam a fazer esse curso, que tem como variante jornalismo, e pensei: “Não, o que quero mesmo é ser jornalista. Terminei o curso na mesma e, depois, comecei a fazer uma pós-graduação em jornalismo e, aí, tornou-se mesmo claro que era aquilo que queria.

Catarina Marques Rodrigues / DR

Focaste várias coisas interessantes na tua resposta. Em primeiro lugar, falaste da questão do “porquê”, que quando eras criança estavas sempre a dizer “porquê”. Achei engraçado porque, na tua TED Talk,  mostraste recados de professores que diziam que falavas demais. Até eras boa aluna, mas o facto de falares demais podia-te prejudicar, de alguma forma. Ou seja, o falar sempre surgiu associado a algo a corrigir. Isso não acaba por ser um condicionamento para explorar o porquê das coisas? Se calhar o mais interessante seria tentar orientar a conversa, estimulá-la de uma forma positiva.

Sem dúvida. Acho que esse é um dos problemas do nosso sistema de ensino e da nossa sociedade, sobretudo da sociedade portuguesa: ficamos mais confortáveis se formos todos iguais. Ninguém pode levantar muito a voz, ninguém pode questionar o politicamente correto, ninguém pode mexer em tradições ou dinâmicas já impostas.

O questionar cria confusão, cria tensão nas pessoas. Numa altura em que és criança e tudo para ti é motivo de curiosidade, sinto que isso condiciona durante muitos anos. A nível familiar e de eventos sociais, lembro-me de estar com os meus pais, miúda, e de fazer sempre muitas perguntas. Lembro-me que uma das frases que mais ouvia era esta: “Estás a ser inconveniente, não sejas inconveniente. Estás a falar demais.” Não quer dizer que não tivesse dito uma ou outra coisa fora do contexto que, de facto, não fosse correto naquele momento, mas acho que era muito mais o desconforto que causava nos outros do que, propriamente, o facto de verem uma má intenção numa criança.

Isso nunca me modificou, mas fez-me sentir que algo estava errado em mim. Era mais forte do que eu e, felizmente, consegui preservar isso, apesar de muitas vezes sentir que não me encaixava no modelo expectável para uma criança. No meu caso, isso não me condicionou, tanto que sou jornalista e faço as perguntas que quero e que acho que são importantes. Mas acredito que isso condicione muitas crianças e as faça sentir que a sua personalidade e a sua forma de estar não encaixam quando, na verdade, acho que se deve olhar para essa curiosidade e disrupção como algo positivo.

Estamos mesmo cá para questionar as coisas, para as mudar e para perguntar porquê, não é para anuir a tudo e para passar por esta vida sem causar alguma conversa ou algum momento em que as pessoas sejam abanadas. Muitas vezes as professoras, os professores e os adultos não querem ser abanados porque é mais fácil manter o status quo, a vida como ela nos foi imposta, do que propriamente pensar o que é que realmente poderíamos fazer ou, então, perguntar-nos a nós próprios se as coisas fazem sentido assim. Isso é muito mais difícil. 

Mesmo que seja sem intenção ou inadvertidamente, acaba-se quase sempre por passar a ideia de que o falar é mau comportamento, quando são coisas distintas.

Exatamente.

As palavras ativismo e ativista podem surgir associadas ao teu trabalho, mas és jornalista, ou seja, são duas áreas diferentes e que, academicamente, até se ensinam a ser distintas devido à questão da imparcialidade. Como é que olhas para esta questão? 

Não me considero uma ativista porque considero que no sentido do ativismo histórico, político e social, que nos trouxe até aqui, é preciso um nível de dedicação e de conhecimento da rede do ativismo que não tenho. O jornalismo que faço é um jornalismo de causas, digamos assim, de questões de género. É um jornalismo que tende a identificar aquilo que está errado na sociedade relativamente a estes temas que, por si só, causam sempre muito burburinho. Acho que, por vezes, faz-se uma associação do ativismo ao jornalismo para diminuir, um pouco, esse jornalismo. Ou seja, ao misturar os dois conceitos tenta-se demonstrar que esse jornalismo é menos imparcial, menos rigoroso, que carece de idoneidade, que tem menos fontes e que tende só para um lado. Acho que é isso que se tenta fazer.

Definitivamente, e isso também tem estado em vários estudos sobre o jornalismo, o jornalista nunca é uma pessoa isolada do mundo. Todos os jornalistas têm preferências políticas, têm temas dos quais gostam mais e que tratam com mais facilidade. Além disso, têm conexões fora do trabalho, nomeadamente conexões políticas, pessoas que trabalham em associações e em empresas que também os moldam. É muito diferente ser uma mulher branca, ter nascido num contexto de classe média, ter visto a desigualdade de género desde criança e trabalhar em países africanos como Cabo Verde e Guiné-Bissau, do que ser um homem negro que nasceu num país qualquer diferente ou, então, ser um homem branco de uma classe média alta cujos pais são financeiros e que faz um jornalismo diferente porque, também, tem outras lentes para olhar para o mundo. São formas distintas de olhar para o mundo. Não considero isso um ataque, mas o meu jornalismo, sim, espelha a minha forma de olhar para o mundo, espelha aquilo que fui vendo e aquilo que fui trabalhando.

Considero que isso é uma vantagem porque faz com que fique desperta para certas realidades que outras pessoas podem não ver. Percecionem outras realidades que, se calhar, não são as minhas. Mas essa ideia de jornalismo ativista acho que é mesmo para desmoralizar o jornalismo que algumas pessoas fazem quando, na verdade, nenhum jornalista é uma ilha. Todos nós absorvemos ideias, conexões, temos preferências, temos o nosso próprio mundo que nos condiciona. Também posso dizer, portanto, que o jornalismo ativista é um jornalismo que não considera certas pessoas, ou seja, é um ativismo só para certos grupos, não é um ativismo para outros grupos ditos minoritários. Isso também é um jornalismo ativista, mas só para os privilegiados. 

Capa do livro “Reflexões sobre a Liberdade, Identidades e Famílias”

Sabemos que nas redes sociais os comentários até podem ser bastante duros, mas quando alguém tenta descredibilizar e utiliza sempre o argumento da imparcialidade, como é que responderias a isso? 

Identifico um tema ou uma realidade que quero retratar, mas vou retratá-la da forma mais imparcial possível. Isso não quer dizer que tenha de ouvir as pessoas que os outros acham que tenho de ouvir. Esse olhar mais cuidado e mais focado numa determinada área também te leva a perceber quem é que, de facto, percebe do tema, quem está preocupado com o assunto e quem é que quer ter só uma voz para descredibilizar essa temática. Isso, para mim, é ser imparcial na mesma. Sou muito imparcial, faço as perguntas que tenho de fazer, tenho as minhas convicções como qualquer jornalista, mas faço as perguntas que tenho de fazer e sem ser tendenciosa.

Aliás, uma das coisas que, por exemplo, têm elogiado muito no “Dona da Casa” é, precisamente, isso, que tanto entrevistei pessoas como a Alexandra Leitão, do PS, como a Assunção Cristas, que foi a líder do CDS. Faço questões sensíveis às duas. Aliás, algumas até sobre os mesmos temas. As minhas preferências ficam em casa e, ali, tento ser o mais imparcial possível. Mas lá está, é uma vantagem ter um conhecimento específico sobre aquela área. Não podemos confundir imparcialidade com, apenas, o entregar-se a mensagem. A imparcialidade não tem a ver com o ser-se amorfo: nada mexe contigo, nada te causa entusiasmo, nada te causa irritação ou nada te desestabiliza. São coisas diferentes. 

“Não me considero uma ativista porque considero que no sentido do ativismo histórico, político e social, que nos trouxe até aqui, é preciso um nível de dedicação e de conhecimento da rede do ativismo que não tenho.”

O teu debate com Paulo Otero, um dos autores do livro “Identidade e Família” e professor catedrático na área do direito, acabou por ser viral e foi numa altura específica e crítica — a publicação do livro “Identidade e Família”. Olhando agora para trás, para esse debate, usarias a mesma estratégia e a mesma forma de intervenção, ou tentarias limar algumas arestas?

É uma boa pergunta. O que tentei fazer, quando soube que ia debater com ele, foi usar a estratégia jornalística, que é aquela que sei usar e que acho que funciona melhor, que é a dos factos: levei números sobre as mulheres em Portugal, sobre a realidade das famílias portuguesas para mostrar, precisamente, que o que precisamos não é redefinir ou revitalizar o papel da dona da casa mas, sim, dar condições para que todas as pessoas possam ter a família que querem, como querem e quando querem. Acho que usaria a mesma estratégia porque acho que, como dizia, os factos são a primeira e a melhor estratégia. Não acho, depois, que a fúria e o lado explosivo funcionem, sobretudo quando é uma mulher que está a debater com um homem que tem mais do dobro da idade.

Essa estratégia não funciona porque, automaticamente, as mulheres, quando são assertivas nas suas posições, essa assertividade acaba, muitas vezes, por ser confundida com histerismo e agressividade, ao passo que os homens estão a ser diretos e eloquentes. Também penso, mesmo, que não é por aí que conseguimos mudar as coisas, portanto, acho que teria usado a mesma estratégia. As pessoas pegaram num momento específico, uma expressão facial minha que foi completamente intuitiva, não foi pensada, mas a minha expressão facial, o que revela naquele momento é: “Ok, quando dizes que, de facto, é preciso redefinir o papel da dona da casa, estás a mostrar qual é o objetivo.”

Acho que isso ficou claro e já não preciso dizer mais nada, porque as pessoas que me estão a ouvir também perceberam qual é que é o objetivo. É mais, então, uma quase ironia que constata que esta pessoa e este movimento estão completamente por fora da realidade em que as mulheres portuguesas vivem e da realidade que querem ter. Mas, por exemplo, na entrevista que fiz com a Assunção Cristas, uma das mensagens que mais recebi foi esta: “Não sei como conseguiste aguentar sem te irritares. Como é que não explodiste com as coisas que ela disse.” Lembro que a Assunção Cristas é contra a interrupção voluntária da gravidez (IVG), a favor das touradas, e falámos sobre isso. Respondi que não tenho de me irritar: convidei esta pessoa, estou aqui a conversar com ela, vou fazer as perguntas que acho que tenho de fazer, mas no fundo quero ter uma conversa séria e que possa ser percebida pelas pessoas. Não é a minha intenção criar ali um combate.

É, no entanto, importante dizer isto: acho que devemos conversar com pessoas que pensam de forma diferente da nossa, tal como conversei com a Assunção Cristas, desde que essas pessoas queiram conversar connosco. Muitas vezes, as pessoas que têm certos ideais mais extremistas não estão preparadas para o debate, trazem uma série de tópicos que estão pré-definidos e usam, também, técnicas para provocar a outra pessoa, para a levar à exaustão. Não querem, de facto, discutir o assunto, querem apenas um palco para expor a sua agenda. Quando assim é, não vale a pena. Penso que têm de ser escolhidas pessoas que, de facto, estejam disponíveis para conversar, para responder abertamente, para abrir o jogo sem ser, necessariamente, um momento de panfleto.

Achas que se formos mais agressivos na forma como fazemos a comunicação, pode-se dar o risco da posição da outra pessoa tornar-se ainda mais radical? E até, consequentemente, radicalizar a opinião do público ou das pessoas que seguem essa pessoa? 

Sim, esse é um ponto importante. Num tempo como o de agora, temos a obrigação de fazer uma comunicação inclusiva, empática, focada nos factos e que não espolete mais a agressividade do outro lado. Também acho que, hoje, há uma série de figuras que querem tanto reagir rapidamente a um acontecimento que acabam por, precisamente, qualificar todas as pessoas de extremistas, por exemplo, ou de fascistas. Se todos somos fascistas então ninguém é fascista, certo? Quando se recorre ao uso de termos que carregam um peso gigante e isso, depois, leva a alguma normalização desse tipo de discurso.

Quanto à minha comunicação, tento sempre que seja uma comunicação pensada. Muitas vezes, em relação ao que acontece no dia-a-dia, sou das últimas pessoas a reagir, porque prefiro primeiro ler, pensar, ver a informação que foi divulgada em vários locais, se foi mesmo assim, se não foi bem assim. Prefiro esse cuidado do que usar a bandeira e a carta da igualdade de género, da violência sexual e da violência contra as mulheres em vão. Acho que isso descredibiliza a luta. Tento não reagir a tudo porque se queres, de alguma forma, tocar em tudo aquilo que vai saindo, não vais conseguir ter um tratamento adequado para tudo aquilo que partilhas quer como jornalista, quer como opinion maker. Isso depois é usado contra nós.

Já focaste os nomes, mas quando levas ao programa pessoas com opiniões bem diversas, ou melhor, que os espectadores já possam saber que pode haver ali uma opinião que possa divergir com a tua, tens algum tipo de cuidado extra na preparação dessas entrevistas?

Não diria que é um cuidado extra. Considero que não há nenhum cuidado extra específico. Tento sempre preparar muito as minhas entrevistas, passo sempre mais de um dia inteiro a preparar cada uma delas, porque tento ler tudo o que saiu sobre a pessoa e sobre os temas a tratar. Se vou falar sobre o aborto, touradas, questões raciais e LGBT, tento também ter esses números comigo. Não sinto mesmo que as pessoas me vejam dessa forma, pelo contrário. Recebo sempre mensagens de pessoas a dizer: “És das pessoas, das jornalistas que trabalham estes temas que mais gosto de ouvir porque sei que é, sempre, uma opinião pensada e sensata.”

Esta é uma palavra que hoje está muito em falta, a sensatez. Não é uma coisa furiosa e de reação rápida para ser mais partilhada ou para criar celeuma social. Esse é um dos elogios que mais me fazem e acho, mesmo, que faço esse trabalho. Até te vou dizer, as mensagens e comentários que recebo às vezes, são de duas ou três pessoas que acham que devia ser mais aguerrida, que devia ter um discurso mais ácido. Penso que há alguns momentos em que tens de ser incisiva, sem dúvida, e tento sê-lo, mas há uma diferença entre ser incisiva e ser instigadora de ainda mais ódio. Acho que há uma diferença entre o ser-se incisiva e o ser-se hiper-reativa, sem sensatez. 

No texto que escreveste para o livro “Reflexões sobre a Liberdade, Identidades e Famílias”, que foi puclicado como uma resposta ao livro “Identidade e Família”, explicas como a nível legislativo houve uma progressão em Portugal, não só no que diz respeito aos direitos das mulheres, mas também à comunidade LGBT, dando o exemplo da adoção por casais do mesmo sexo, por exemplo. Achas que há em Portugal uma diferença entre o que são as leis, de facto, e a aplicação dessas leis na realidade? 

Sem dúvida. Portugal é, de facto, um dos países da União Europeia que avançou mais rapidamente no que diz respeito às questões LGBT – mesmo a nível mundial. Mas, por exemplo, quanto à adoção por casais homossexuais, foi em 2015 [em dezembro de 2015 procedeu-se à votação final global] que foi aprovada. Diz-me, agora, quantos casais homossexuais à nossa volta adotaram crianças? Exato. Conheço um, e conheço muitas pessoas desta área. Ou seja, a lei existe mas, depois, os constrangimentos práticos e administrativos, os constrangimentos sociais e familiares também para a tua família de origem — o receio que aquela criança não seja integrada no bolo familiar total — os constrangimentos que eventualmente podes sentir no local de trabalho ao teres de partilhar esta nova formulação familiar. Os constrangimentos que já prevês e que até podem nem se confirmar, mas que já prevês a nível escolar, com as atividades que os miúdos possam vir a ter, além dos constrangimentos económicos.

Ou seja, há uma série de barreiras visíveis e invisíveis, e a invisibilidade é a maior das barreiras que existe, o nós não vermos as pessoas e as suas realidades, e há aqui uma série de questões invisíveis que condiciona imenso a utilização da lei. Até hoje, em muitas empresas — também fazemos sessões e palestras em empresas — e contas pelos dedos aquelas em que existem casais homossexuais casados que falam, abertamente, disso nos recursos humanos e que usufruem de todos os seus direitos ligados à sua configuração da família. Ainda há um silêncio que impede as pessoas de usufruírem da lei. Há uma invisibilidade e impreparação da sociedade, mas isso também é visível nas leis contra a discriminação racial, contra a discriminação das mulheres, a lei da paridade. Infelizmente ainda não há uma legislação que mude mentalidades e, por isso, a nossa legislação ainda está muito à frente da nossa mentalidade. 

Surpreendeu-te o facto do “Identidade e Família” ter sido publicado na altura em que foi? 

Na verdade, em várias conversas que vamos tendo, percebemos — e tenho muito essa noção — que nem toda a gente pensa como penso. Há muitas pessoas que estudaram, que são da elite política, financeira e empresarial do país que têm uma visão muito conservadora do que é a família, do que é o corpo da mulher e do que é a escolha da mulher. Já tinha essa noção. Mas a questão aqui é que estamos numa altura em que se tornou socialmente aceitável dizer isso publicamente. Até há uns anos, com as mudanças em Portugal e com as mudanças globais que foram acontecendo relativamente a vários temas, algumas das pessoas mais extremistas sentiam que se tinham de recolher. Se calhar, nos seus fóruns ou círculos mais pessoais iam partilhando as suas ideias, mas era algo mais recolhido.

Agora, de repente, tornou-se normal e aceitável falar-se sobre isso a nível público. É preciso ver, também, que várias pessoas que já tiveram uma responsabilidade política e pública, ou que a têm neste momento, sentem-se valorizadas, disponíveis para abraçar essas ideias publicamente, querendo definir um novo tipo de família que deve ser a ideal, na sua visão. O que me surpreendeu mais foi como nestes tempos atuais, de repente, já não parece mal, para algumas pessoas, trazer de volta certos ideais bafientos que, supostamente, já estariam ultrapassados. 

No teu texto para o livro “Reflexões sobre a Liberdade, Identidades e Famílias” falas sobre a correlação entre a crise da habitação e a desigualdade de género. Queres explicar melhor esta correlação?

Uma realidade nunca se explica só por si própria. Há sempre um cruzamento de identidades, de contextos e de oportunidades que, depois, justificam essa mesma realidade para essa pessoa especificamente. Sabemos que vivemos num país, num mundo ainda pautado por desigualdades salariais — tipicamente, os homens ganham mais do que as mulheres — e em que a grande maioria das famílias monoparentais tem como líder uma mulher.

Há muitas mais mulheres que têm de assegurar o sustento da casa e dos filhos, do que homens sozinhos que têm de assegurar esse sustento individualmente. Só estes dois pontos, entre si, já justificam essa correlação. Sabemos, também, que a maioria das vítimas de violência doméstica, em Portugal, são mulheres, e que o crime que mais mata no nosso país é o crime de violência doméstica. Se te imaginares numa relação heterossexual pautada pela violência, queres obviamente sair de casa e seguir com a própria vida: ou basta, até, estar-se insatisfeita com a relação sem ser num contexto de violência. Se ele ganhar, no entanto, mais do que ela, isso vai prolongar o ciclo de violência. Vai fazê-la ficar naquele contexto porque ela não vai ter forma de subsistir sozinha.

Uma mãe solo que tenha, neste momento, de comprar casa em Lisboa, vai ter muitas dificuldades em conseguir uma habitação digna que esteja perto do centro, do local onde precisa de trabalhar, e ter acesso a transportes, por exemplo. Vai ter dificuldade em encontrar tudo isto por um valor que esteja de acordo com o seu ordenado que tem de chegar para ela e para os filhos. Não esqueçamos que a maioria das famílias monoparentais são de mães solo. Por isso é que muitas vezes — já vi vários relatos nesse sentido — as mulheres acabam por comprar casa com os seus companheiros com quem, até, não têm a intenção de manter uma relação longa, ou não tinham, à partida. Trata-se, no entanto, da única solução para conseguirem dar esse passo na sua vida.

Como nasceu o “Gender Calling” e que espaço pretende ocupar? 

O “Gender Calling” é uma plataforma de media — um site, um podcast e uma academia de cursos, workshops para organizações, empresas e fundações — cujo foco é contar histórias de desigualdades, de pessoas que, habitualmente, têm menos espaço nos media: mulheres e, dentro desse contexto, as mulheres negras, as mulheres LGBT, as mulheres não binárias, as mulheres que vivem numa zona mais rural e menos privilegiadas. Mas, também, pessoas LGBT, no geral, e racializadas.  O próprio nome do Gender Calling é mesmo o apelo do género, ou seja, o género está a chamar, já não há como olhar para trás, achava eu.

Já não há como olhar para trás porque o género, de facto, é um tema que não dá mesmo para ignorar. Temos, depois, a academia porque, para mim, o jornalismo tem muito poder para mudar mentalidades, em criar uma conversa, eventualmente influenciar políticas públicas, sensibilizar as pessoas, em fazê-las refletir, e vejo isso todos os dias no jornalismo que faço. Mas também temos de levar estes conceitos e estas formações para onde as pessoas estão no dia-a-dia, a trabalhar nas empresas, nas organizações e nas fundações e comecei, então, a ser convidada para fazer palestras em empresas e fundações sobre comunicação inclusiva, o poder do jornalismo de género, os direitos das mulheres em Portugal, a razão pela qual a igualdade de género ainda é relevante e o que é que falta resolver.

Percebi que havia uma necessidade grande a colmatar, tanto do país como das pessoas que estão no seu mundo a viver a sua vida corporativa e, além da sua vida corporativa do dia-a-dia, ainda têm a sua vida familiar, para as quais estes temas não lhes dizem nada e está tudo bem com isso. Portanto, para quem isto não é, de facto, uma preocupação no seu dia-a-dia, em vez de esperarmos que as pessoas um dia acordem e queiram saber, também temos de levar a informação às pessoas. Isto também tem a ver com aquele ponto sobre os extremismos e a imparcialidade.

Acredito que somos nós que temos de tentar convencer as pessoas, digamos assim, e sensibilizá-las. Há que simplificar a informação e ter um discurso que as aproxime ao invés de as afastar. Considero que, muitas vezes, há um discurso que vem, supostamente, de uma base inclusiva e igualitária para a promoção da igualdade mas que, depois, é tão ácido que acaba por afastar as pessoas em vez de as aproximar. Causa o contrário do que é pretendido e tem um efeito perverso. 

Queremos tanto passar a mensagem à nossa maneira que nos esquecemos que a nossa maneira, às vezes, não é certa. Faço também esses discursos. Agora estou em Cabo Verde, mas também estive no ano passado na Guiné Bissau, durante um mês. Estou, precisamente, a dar formação a jornalistas sobre como é que as mulheres são mais impactadas pelas alterações climáticas e como é que elas próprias são as produtoras de soluções para combater as alterações climáticas. Mais uma vez, tudo tem a ver com o género, até as alterações climáticas. São elas que têm de ir buscar água a 10km de distância, assim como a lenha e o carvão. Se há, portanto, uma seca elas são obrigadas a andar muito mais do que isso e passam por problemas de saúde física.

Fazem, muitas vezes, trabalho duro enquanto estão grávidas e com os outros filhos ao colo e, portanto, estão mais debilitadas a nível físico. Não é o tema agora, mas estou a fazer, precisamente, esse curso porque tudo tem a ver com mulheres, tudo tem a ver com o género, não há nenhuma área em que a questão do género não entre.

A questão das alterações climáticas e a forma como podem impactar negativamente a vida das mulheres, especialmente, é interessante. Já tinhas consciência disso antes de estares em Cabo Verde?

Sim, para o podcast do “Gender Calling” já tinha feito uma entrevista a uma ativista da Amazónia que falou muito sobre isso, sobre a desflorestação, sobre como o consumo de carne e do açaí tem um impacto brutal na floresta da Amazónia. Estamos na Europa, achamos que comer açaí é cool e, na verdade, teve um impacto gigante. Também já tinha feito outras entrevistas a ativistas, à porta-voz da greve climática estudantil, a uma responsável de um projeto que se chama “mulheres pelo clima”, portanto, sempre foi um tema que me interessou muito.

Quando recebi o convite para dar esta formação, obviamente foquei mais especificamente o caso de Cabo Verde, muito ilustrativo deste problema, porque trata-se de um país onde existe muita seca, onde a chuva não é a suficiente. Muitas vezes, a economia da casa assenta na mulher, portanto, a produção agrícola está assente na mulher. Há muitas mulheres que são mães solo, portanto, ou não têm marido, ou marido acabou por se ausentar depois do nascimento da criança ou, então, os maridos emigraram por causa da seca, por não haver forma de cultivo ou produção agrícola. Elas ficam, na mesma, naquela situação, à mercê daquilo que há ou não há.

É um tema muito interessante e, sem dúvida, temos de olhar para esta perspectiva porque, caso contrário, vai ser mais um problema criado para estas mulheres. Os países de África são os que menos contribuem para as alterações climáticas e são os que mais sofrem com as suas consequências e, desta forma, agrava a situação das mulheres.

Como surgiu a oportunidade do programaDonas da Casa” passar na Antena 3? 

Foi numa conversa que a direção da Antena 3 teve comigo. Na verdade, já conheciam o meu trabalho, porque trabalhei muitos anos na RTP, de forma permanente, então já sabiam que tinha este foco nas mulheres. Já sabiam os meus interesses e existia a necessidade de um produto que falasse sobre estes temas, que não tinham, com base na entrevista, e confiaram 100% em mim e no lote de pessoas que acho que são relevantes para trazer para este debate. 

Logo na tua primeira resposta, focaste um exemplo bastante interessante: quando toda a gente está em casa a almoçar e são, geralmente, as mães, as filhas e as tias que tratam de pôr a mesa, levantar a mesa, lavar a louça e trazer alguma coisa que falta para a mesa. Quando alguém se opõe a isto, há sempre esta resposta: “Mas não são as mulheres que fazem os trabalhos mais pesados como, por exemplo, ir para as obras.” Isto ainda é um cliché muito presente no nosso país e há sempre esta resposta na ponta da língua. Como respondes a isto?

As mulheres fazem todo esse trabalho de casa além do seu trabalho diário. Ou seja, muitas vezes, esse “trabalhar nas obras”, ou ter um trabalho de maior força física, é o trabalho deles do dia-a-dia, mas as mulheres também têm o trabalho delas no dia-a-dia. Além disso, ainda têm o trabalho do cuidado da casa e dos filhos. Esse é o primeiro ponto. O segundo ponto é este: acho que esse argumento é usado para descredibilizar aquilo que se está a dizer. É usado para essas pessoas se excluírem da sua responsabilidade e para não quererem refletir sobre o que está a ser dito.

Depois, quando estamos a falar de cuidado da casa e dos filhos, a casa é usada pela mulher e pelo homem, portanto, ela  é partilhada pelos dois, assim como os filhos, nos casos em que há essa relação saudável. O momento da casa e dos filhos é um momento em que estão todos presentes, correto? Se estão todos presentes ali, todos devem partilhar essas responsabilidades, porque todos usufruem daqueles benefícios. Também é preciso dizer que, hoje em dia, as profissões já estão muito mais a sair desses dois blocos de género. Já não é tanto assim.

Já há muitas mais engenheiras que estão ligadas à área da construção, por exemplo, muitas mais mulheres presentes num outro tipo de trabalhos. Acho que não é igual a pessoa falar só da sua profissão e, depois, falar de uma mulher que tem a sua profissão e a profissão não paga. Mas quanto àquelas pessoas que dizem: “Mas na minha casa não é assim.” Pessoas mais novas, por exemplo. Isso é ótimo, mas estamos a falar de um padrão que está sustentado em dados e em factos. O que estou a dizer não é uma opinião, são os dados e os factos. Acho também que, muitas vezes, o discurso extremista do qual falavas há pouco também está muito relacionado com o facto das pessoas, cada vez mais, apoiarem o seu discurso em opiniões sem serem baseadas em factos ou em dados. Quando baseias a tua mensagem em dados e em factos, que é o meu caso — pode ser uma reportagem enorme, tal como um post no Instagram, é igual para mim — mesmo tendo a certeza absoluta e achando que aquilo vai ser compreendido, vou sempre buscar os dados e os factos para não me poderem apontar nenhuma falha.

Acho que é por isso que não recebo críticas, sinceramente, só mesmo das pessoas que têm um discurso mais extremista que acham que também o deveria ter. Mas as pessoas que têm outras opiniões, geralmente, até elogiam essa sensatez. Isto para dizer que, de facto, as novas gerações já têm uma abordagem completamente diferente, já têm mais conhecimento a esse nível, mas a vida e a nossa realidade não é a realidade global e, no país, há muitas realidades. Há as realidades das casas privilegiadas em Lisboa, há as realidades de Trás-os-Montes, há as realidades do Algarve e, também em Lisboa, o machismo está vivo, está muito vivo nas nossas casas. A nossa casa não é a casa padrão do país. Muitas vezes não é e temos de ter a humildade de reconhecer isso.

Sobre a disparidade salarial que existe entre mulheres e homens, principalmente em cargos de topo, achas que este assunto poderá ser resolvido brevemente, ou ainda há muito que caminhar? 

Supostamente, a desigualdade salarial é inconstitucional, não pode existir. Há uma diretiva da União Europeia que obriga as empresas à transparência salarial, que tem de ser adoptada pelos estados-membros até 2026, e com essas regras em vigor creio que vamos ficar a saber muitas realidades que nos vão envergonhar e chocar, até. Como é que se explica a desigualdade salarial? Muitas vezes não é por critérios objetivos, mas sim por questões sociais — as qualificações escolares, as interrupções na carreira para cuidar da família, a experiência profissional, e por aí fora. Depois há dinâmicas que acrescentam mais valorização salarial ao salário base, privilegiando uns e não outros, através por exemplo de subsídios, de prémios, de um ou outro bónus que se vai dando ao longo do ano.

Esses acrescentos alimentam essa disparidade. Muitas vezes são os homens que ficam mais tempo a trabalhar, que vão mais vezes aos jantares de negócios, que têm mais tempo para o networking e que, com isso, conseguem criar uma relação mais forte com quem tem autoridade para decidir. Isto acontece porque, também, são elas que estão mais vezes nas funções do cuidado da casa e dos filhos. Além disso, há mais mulheres nas áreas em que os salários são mais baixos e menos mulheres em posições de topo. Tudo isto faz parte do fenómeno da desigualdade de rendimentos. Agora alguém diz: “Na minha empresa há uma mulher que é a CEO”. Certo, mas essa é a exceção que confirma a regra e não o contrário

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