Entrevista. Chico César: “Vencemos o Bolsonaro, mas ainda não vencemos o bolsonarismo”
O Brasil vive um “momento alvissareiro”, mas ainda é “um tempo de plantio” e a colheita só se fará daqui a “seis, oito anos”, antecipa o músico Chico César, que atuou ontem no Festival Músicas do Mundo.
Em 2019, quando se estreou no festival, em Sines, Chico César admitiu, em entrevista à agência Lusa, estar a pensar exilar-se em Portugal. Recordado disso, o músico justificou que o Brasil “tinha mergulhado num buraco profundo” com o governo de Jair Bolsonaro.
O que Chico César não sabia, naquela altura, é que “as coisas ainda iriam piorar”, porque ao “pandemónio” viria a juntar-se uma pandemia.
“O pandemónio aliou-se à pandemia, com uma política de morte mesmo, de negação da ciência, de desejo de extermínio dos povos indígenas, dos povos negros também, de deixar morrer os idosos, de negação da vacina…”, assinala.
De regresso ao festival, desta vez a Porto Covo, que acolhe as três primeiras noites de concertos gratuitos, Chico César está mais otimista, mas não perdoa.
A canção “Bolsominions” – termo pejorativo usado por opositores de Jair Bolsonaro para se referir aos seus apoiantes – fará parte do concerto que dará hoje, às 22:45.
“Faço questão de a tocar”, vinca, lembrando um episódio vivido na última viagem a Portugal, pouco antes das eleições de 2022 no Brasil, quando, no Porto, alguém que passava num carro o insultou de “safado“.
“Pensei, bom, os bolsominions estão por aqui. Então, quando eles nos desejam a morte, quando eles agridem negros, mulheres, artistas, eles se dão a esse direito. Quando você faz uma música que diz ‘bolsominions são demónios que saíram do inferninho direto para o culto, para brincar de amigo oculto com satã no condomínio’, eles ficam muito ofendidos”, ironiza.
“O amor é para quem ama, a guerra é para quem guerreia. Vocês não podem pisar na nossa cabeça e achar que nós vamos ficar ‘peace and love’ [paz e amor]. Não, nós estamos prontos para o confronto. E nós os confrontámos. Vencemos nas urnas. A sociedade mostrou que é maior do que do que isso. E não nos acovardamos”, garante.
“Sei que aqui em Portugal há muitos eleitores do Bolsonaro também. Acho curioso… Porque eles votaram num candidato da extrema-direita e correram para um país com uma orientação mais socialista, com um governo socialista, porque as escolas são melhores, aqui podemos criar nossos filhos, as ruas são mais tranquilas e tal. Então por que vocês votam num candidato da extrema-direita no seu país e vão infernizar a vida dos outros? Querer que os apartamentos tenham um quarto de empregada (…) para vocês tratarem como ‘Casa Grande e Sanzala’ quem trabalha com vocês?”, interpela.
Chico César concorda que é preciso “pacificar o país, abraçando o outro”, mas nunca deixará de dizer e repetir: “Vocês estão errados e vocês não têm direito nem de escravizar nem de oprimir homossexuais, gays… Esse tempo nunca deveria ter existido e já passou.”
Os últimos anos foram “muito difíceis”, mas o Brasil está agora “a começar a dar uma volta”.
Porém, faz suas as palavras que o próprio Presidente Lula da Silva tem dito e repetido: “Vencemos o Bolsonaro, mas ainda não vencemos o bolsonarismo.”
O “caldo de cultura” que gerou o bolsonarismo “permanece” e “não vai deixar de existir porque os republicanos e democratas do país venceram uma eleição muito apertada, com uma diferença de dois milhões e poucos votos num país de dimensões continentais”, reconhece.
“Temos uma tarefa árdua de reconstrução do país”, concorda. Ainda assim, Chico César relativiza a divisão da sociedade brasileira. “Muitos dos eleitores do Bolsonaro (…) votaram no candidato da extrema-direita não (…) porque pensavam (…) tudo exatamente como ele”, ressalva.
E “muitos deles estão reavaliando” a sua opção, porque o cidadão comum pode não ler jornais, mas “lê as etiquetas dos preços no supermercado” e percebe que, desde que Lula da Silva voltou à presidência, a “vida está melhorando, a inflação está baixando, a situação, a pouco e pouco, vai caminhando para uma normalidade”.
Isto “apesar de ainda persistir uma campanha que bate muito pesado no governo Lula”, realça, muito crítico da “imprensa burguesa” brasileira.
Chico César estima que “em torno de 20%” de brasileiros continue a formar “o núcleo duro” do bolsonarismo, seguindo uma “ideologia doentia”, que resulta da história do Brasil, onde um governo que queira fazer uma reforma agrária ou taxar os mais ricos logo “cai”.
A partir dos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff – recorda –, os “largados à beira da estrada começaram a ganhar mais espaço, inclusive institucional, com a Secretaria da Diversidade Racial, a Secretaria da Mulher, e tal”, o que “provocou uma ira muito grande em vários [outros setores]”.
E depois ainda vieram as bolsas para estudantes pobres, para famílias desfavorecidas. “Isso tudo provocou muita ira, um sentimento de ‘nós temos direito a isso, eles não têm’. Esse pequeno núcleo não percebe que se tudo vai bem e se a situação melhora para quem nunca teve nada, (…) é bom para todos, ‘né’? É um filho de pobre que vai para a escola, que consegue entrar na universidade. É um filho de pobre a menos nas ruas para assaltar”, realça.
Chico César levou ao Festival Músicas do Mundo o novo disco, “Vestido de Amor”, gravado em Paris e com grande parte das músicas compostas durante a pandemia.
“É uma mensagem de amor, outra vez, de alegria, que chama a dança, a festa e é mais uma vez uma manifestação do encontro das águas de África com o Nordeste do Brasil“, descreve.