Entrevista. Claire Denis em “Com Amor e com Raiva”: “O amor é algo que se experiencia sozinho”
A cineasta parisiense retira o triângulo amoroso de uma certa banalidade ao explorar as feridas da paixão provocadas pelo tempo e pela memória. Mais concretamente, em redor das personagens desenhadas ‘com amor e com raiva’ por Juliette Binoche, Vincent Lindon e Grégoire Colin, a partir da adaptação que Claire Denis faz do romance de biográfico de Christine Angot. O filme ganhou há um ano o prémio de realização no festival de Berlim, rendendo o júri à forma como Denis captou o jogo de olhares e gestos numa guerra de amor confinado que tinha num apartamento em Paris o seu campo de batalha ou a sua jaula. Entretanto, a realizadora de 76 anos não esteve parada e levou um outro filme, Stars at Noon – Paixão Misteriosa, à competição de Cannes, onde recebeu o Prémio do Júri. É o cinema que evolui entre um filme de câmara e um filme aberto, um francês, outro em inglês, reflectindo e analisando os elementos que nos ligam (mas que também nos separam). E não será isso a vida?
Com Amor e com Raiva pertence àquele lote de filmes rodados durante o confinamento, mas com a particularidade de ser também sobre esse mesmo confinamento. “Estávamos fechados nos nossos apartamentos e decidimos fazer algo em conjunto“, revelou-nos a realizadora há precisamente um ano em Berlim. A encenação é quase teatral, mas muito luminosa e precisa, centrando a percepção no espaço limitado e tirando partido do jogo de olhares, sons e planos que descrevem essa suave brisa de amor até ser substituída pela subtil aproximação do temporal emocional que irá revirar a harmonia entre o casal Sara (Juliette Binoche) e Jean (Vincent Lindon). Embora se perceba que é na mise-en-scène que os rostos, os olhares e as mãos que se tocam, ganham a devida relevância na extensão dos corpos que cedem e se revoltam neste amor maduro a balançar na corda bamba.
Em todo o caso, a realizadora não pretendeu ser demasiado fiel ao livro: “eu vejo o filme (e o livro) mais do lado da paixão. Sobretudo do ponto de vista da personagem masculina que queria que fosse plenamente saudável e não marcada pela doença, como no livro, e apaixonado por ela.” No fundo, é essa normalidade, “que pode complicar-se e levar-nos até a uma encruzilhada. Nessa altura, pode ser mesmo violento. Só que continua a ser amor, claro. Pois o amor é complicado para qualquer ser humano. Não é sempre assim tão complicado. Mas podem surgir momentos de infidelidade.“
Percebe-se a intenção de recuperar um certo bom gosto pelo jogo de actores. Desde logo, pela potência e experiência de Juliette e Vincent, tal como de Colin. Ainda assim não houve improvisação, nem direcção, como nos confirma a realizadora, apenas um fluir da acção. “Não houve direcção de actores neste filme. Acho que não funcionaria. Estávamos todos juntos naquele apartamento. Foi esse o forno da história. Dirigir nem sempre é necessário. Foi esse o motor deste veículo. Talvez eu tivesse algo que ver com a condução, mas não muito mais do que isso.“
Apesar de ser difícil não recordar a relação vivida em Cenas da Vida Conjugal, de Ingmar Bergman (1974), entre Liv Ullman e Erland Josephson, isso não belisca esta narrativa. Aliás, esse cliché é aqui abordado (e assumido), permitindo ao amor dominar e irradiar a proximidade e o entendimento. Até que a dúvida se instala. Sobretudo depois do amigo François (Gregoire Colin), o ex-de Sara, e colega de Jean, se insinuar e a fazer reviver o passado íntimo de ambos. Apesar do cliché do triângulo amoroso que perturba a relação de um casal de meia idade, experiente e disponível para amar, há algo de muito real na instalação de uma ligeira vibração de dúvida que abala a sua paz e os empurra para um tsunami amoroso. O mais fascinante é observar como Denis dirige essa tensão. Quase como se tratasse de um verdadeiro thriller. De resto, sublinhado a tensão por uma inquietante banda sonora onde emerge o tema dos Tindersticks, Both Sides of the Blade, composto para o filme por Stuart Staples, colaborador de longa data com Denis.
Como se esperava, os trabalho dos actores é irrepreensível. “A Juliette conserva intacta toda a sua sensualidade“, diz-nos a cineasta. “Porque é isso que se vê quando olhamos para ela. Ou seja, é algo que supera a idade. O mesmo se passa com o Vincent, pois a culpa e o poder dela fica sempre na memória. Ele também vem do passado, porque é o passado que regressa, como ele diz. Nesse sentido, o amor é algo que se experiencia sozinho.“
Talvez, porque existe algo no olhar que reconhecemos do cinema de Claire Denis. Mesmo quando é um olhar que convoca a memória, como sucedeu em Chocolate, o seu primeiro trabalho em 1988, evocando a complexidade de um passado colonial que bem conhece, evocado, de resto, também em White Material (2008), ou até no lado meditativo do olhar masculino que sente o lado estrangeiro dentro de si, de Beau Travail (1999). Percebe-se inclusive essa proximidade no enigmático The Intruder (2004), marcado pela observação e pela descoberta pessoal, ou até nas relações entre pai e filha, de 35 Shots of Rum, numa cuidadosa aproximação a Ozu.
Sobre esse tempo que passa, Claire Denis reconhece que “hoje é mais difícil de fazer cinema. O mundo mudou muito. Nos anos 80 ainda existia alguma esperança e mais generosidade. Tivemos o grande surto de HIV, que agora esquecemos. Eu lembro-me bem. Marcou a minha geração. Tal como o covid marcará a geração de hoje.“