Entrevista. Com carga horária semanal média de 21 horas de aulas, Portugal está entre os países europeus com cargas horárias mais elevadas
A seguinte entrevista foi realizada em Outubro de 2023, quando Diogo Moreira ainda ocupava o cargo de vice-presidente da Associação Nacional de Estudantes de Psicologia, e Cátia Teixeira ocupava o cargo de Coordenadora do Departamento de Ação Política da ANEP. Entretanto, a ANEP mudou de mandato.
“Os estudantes maioritariamente mencionaram a quantidade excessiva de cadeiras por semestre e o número exagerado de avaliações por cada unidade curricular. Ou seja, se juntarmos estes dois fatores percebemos que um semestre para um estudante pode ser um período muito desgastante, com avaliações constantes em várias unidades curriculares, tornando muito complicado conciliar a vida académica e a vida social e/ou familiar“, contou em entrevista à CCA Diogo Moreira, vice-presidente da Associação Nacional de Estudantes de Psicologia (ANEP) do mandato de 2023, e Cátia Teixeira, Coordenadora do Departamento de Ação Política da ANEP do mandato de 2023. Num estudo em parceria com Youth for Sustainable Evolution (RYSE), concluiu-se que 48% dos estudantes participantes no estudo, 2084 indivíduos do ensino superior das diversas áreas de estudo, apresenta sintomatologia grave do foro psicológico. Além do burnout, puderam verificar que “22,8% da amostra reportou um diagnóstico de perturbação psicológica, sendo que as perturbações mais comuns foram ansiedade generalizada e depressão.” Enfatizando que o estudo pretendia apurar sintomas psicológicos “de um modo mais geral, e não diagnosticar perturbações psicológicas“, os membros do anterior mandato da ANEP revelam que “conseguimos afirmar com confiança que na nossa amostra vimos que existem obviamente questões preocupantes, como por exemplo níveis de distress elevados, laços emocionais insuficientes e ainda níveis de ansiedade e depressão elevados“, explica-se.
O vosso estudo, em parceria com a RYSE, demostrou que quase metade da vossa amostra, composta por 2084 indivíduos da população estudantil do ensino superior português, ou seja 48%, apresentava sintomatologia grave do foro psicológico. Em primeiro lugar, puderam apurar algumas causas que pudessem conduzir a essa percentagem? Quais foram as dificuldades que os alunos inquiridos evidenciaram mais?
O nosso estudo teve como objetivo principal rastrear o estado atual da saúde mental dos estudantes do ensino superior, não tendo sido apurados os possíveis fatores que podem estar relacionados com problemas no foro psicológico. No entanto, a literatura existente e recente indica-nos que podem ser várias as causas que contribuem negativamente para o declínio do bem estar psicológico dos estudantes. Entre elas, temos por exemplo a carga horária excessiva, levando os estudantes a afirmar que não conseguem conciliar a sua vida académica, social e familiar.
Ainda, temos serviços de apoio psicológicos das universidades com pouca capacidade de resposta para as necessidades dos alunos, uma enorme pressão por parte da sociedade e das universidades para a obtenção de resultados de excelência constantes, e claro, as dificuldades económicas que os estudantes enfrentam. Além disso, não nos podemos esquecer que a geração atual de alunos que frequentam o ensino superior receiam a possibilidade de entrarem no mercado de um país sem aparente futuro, pelo que se pretenderem ter qualidade de vida a única opção viável é emigrar. Os estudantes dedicam anos a aprofundar os seus estudos, a obter licenciaturas e mestrados, e já nem sequer conseguem perspetivar qualquer retorno desse investimento no seu país de origem.
Consequentemente, esta ausência de perspetiva quanto à possibilidade de construírem um futuro e desenvolverem uma carreira em solo nacional pode, inequivocamente, constituir um fator altamente prejudicial para a saúde mental dos estudantes. Adicionalmente, já não se trata apenas de um receio para o futuro e vários são as/os trabalhadores-estudantes que experienciam em primeira mão salários extremamente baixos que tornam completamente impossível conciliar as responsabilidades académicas com a sustentação das necessidades básicas. Enquanto estudantes, todas/os estamos a passar por conjeturas completamente inauditas. Quer seja a crise económica, social, habitacional ou a interação destas, vários são os fatores que podem estar na causa do estado de saúde psicológica das/os estudantes portugueses.
Constataram que há problemas relacionados com a dimensão dos currículos semestrais nas nossas universidades, ou essa é uma questão que pode passar para segundo plano?
Sim, há de facto diversos problemas com a estrutura atual dos currículos semestrais nas nossas universidades. Entre eles, os estudantes maioritariamente mencionaram a quantidade excessiva de cadeiras por semestre e o número exagerado de avaliações por cada unidade curricular. Ou seja, se juntarmos estes dois fatores percebemos que um semestre para um estudante pode ser um período muito desgastante, com avaliações constantes em várias unidades curriculares, tornando muito complicado conciliar a vida académica e a vida social e/ou familiar.
Além disso, com uma carga horária semanal média de 21 horas de aulas, Portugal está entre os países europeus com as cargas horárias mais elevadas, o que pode afetar negativamente a qualidade de vida dos estudantes e sua capacidade de aprendizagem. No entanto, há medidas que podem ser tomadas a fim de melhorar a situação atual, como por exemplo, a implementação da semana de aulas de 4 dias. A implementação desta medida, segundo estudos realizados em vários países europeus que já implementaram este novo modelo, prevê a melhoria da saúde psicossocial e o desenvolvimento pessoal dos/as estudantes, na medida em que proporciona um maior equilíbrio entre as obrigações académicas e as necessidades pessoais. As soluções estão à disposição, no entanto, por vezes, parece que há uma ausência de determinação em agir e mudar o panorama atual.
Notaram que as questões de foro financeiro também têm aqui o seu peso?
Por acaso no nosso estudo não se verificaram diferenças na saúde mental dos estudantes considerando os diferentes níveis socioeconómicos. No entanto, são vários os estudos que demonstram que estudantes com menos recursos financeiros estão mais propensos a desenvolver doença mental, especialmente stress crónico, ansiedade e depressão. Além disso, esta situação é agravada considerando a crise habitacional com a qual nos deparamos atualmente, principalmente para as/os estudantes deslocadas/os. As/Os estudantes simplesmente não dispõem de recursos financeiros para suportar o custo de um quarto, e não são tomadas medidas para auxiliá-las/os nesse aspeto. Assim, é bastante plausível que tal circunstância exerça um impacto profundamente adverso no estado psicológico de qualquer estudante.
Além do burnout, puderam apurar outras doenças do foro psicológico?
No nosso estudo conseguimos verificar que 22,8% da amostra reportou um diagnóstico de perturbação psicológica, sendo que as perturbações mais comuns foram ansiedade generalizada e depressão. No entanto, o estudo em si pretendia apurar sintomas psicológicos de um modo mais geral, e não diagnosticar perturbações psicológicas. Assim, o que conseguimos afirmar com confiança é que na nossa amostra vimos que existem obviamente questões preocupantes, como por exemplo níveis de distress elevados, laços emocionais insuficientes e ainda níveis de ansiedade e depressão elevados.
E puderam constatar quais as áreas de ensino mais suscetíveis a esta realidade? Ou trata-se de um problema transversal por igual?
Certas áreas parecem demonstrar diferenças entre si, mas vimos que a nível geral todas se encontravam com sintomatologia no foro psicológico significativa e preocupante, pelo que consideramos que seja um problema transversal a todas as áreas. De qualquer modo, denotamos que os estudantes da área de Engenharia apresentam níveis de distress e de ansiedade elevados, e os da área de Ciências Empresariais (Gestão, Economia, Finanças, Contabilidade, entre outros) apresentam níveis de bem estar psicológico baixos, principalmente no que concerne à ansiedade e ao distress.
As universidades estão mais conscientes desta realidade? E quanto ao corpo docente, também estão conscientes desta realidade face aos seus alunos?
Nunca abordamos estas populações diretamente, contudo somos da opinião que a situação precária dos estudantes portugueses, nomeadamente no foro psicológico, tem sido um tópico cada vez mais abordado e do conhecimento da população em geral.
Adicionalmente, tratando-se os docentes e o corpo dos serviços universitários de dois grupos em constante contacto com a comunidade estudantil é expectável que estas preocupações já tenham sido levantadas. Para além disso, já existem instituições de ensino superior a implementar projetos e iniciativas preventivas que visam a garantia do bem–estar psicológico nos seus estudantes, medidas estas que consideramos essencial serem reproduzidas nas várias IES.
Os alunos têm informação, estão também cientes desta realidade ou que podem passar por esta realidade?
Esta auscultação demonstra que os estudantes estão conscientes da precariedade da sua situação atual. Aliás, os estudantes são os primeiros sujeitos a referir a importância e necessidade de uma reforma no sistema de ensino superior, tal como nos vários sistemas que afetam o seu bem-estar psicológico (por exemplo, na habitação estudantil, serviços de ação social, mercado de trabalho, etc.). Resta apenas que estes pedidos sejam tidos em consideração para que novas medidas e novos apoios possam ser implementados.
Quais as insuficiências que apontam no apoio psicológico nas faculdades e nos gabinetes de apoio psicológico? já foi deixado o alerta de que são insuficientes.
Os serviços de apoio psicológico das universidades portuguesas apresentam, de um modo geral, uma reduzida capacidade de resposta às necessidades dos estudantes. Por exemplo, são vários os serviços que apresentam, atualmente, listas de espera de várias semanas ou até mesmo de vários meses. Claro está que a culpa não é destes serviços em si, nem das pessoas que lá trabalham. É, por sua vez, um problema que advém do quase inexistente investimento que é realizado para capacitar estes serviços com mais e melhores condições, especialmente em relação ao aumento necessário do número de psicólogos. No entanto, talvez a prioridade seja realizar alterações ao sistema de ensino atual, alvejando prevenir o desenvolvimento de doenças psicológicas nos nossos estudantes, e não apenas investir em medidas remediativas.
Esta é uma questão que deveria depender só das faculdades e da ajuda que disponibilizam, ou deveria existir uma articulação com os demais organismos de saúde adequados?
A estratégia de intervenção à precariedade do bem-estar psicológico da comunidade estudantil portuguesa é sem dúvida uma questão que deve ser abordada por várias frentes. Seria impensável sugerir o investimento nos Serviços de Psicologia das Instituições de Ensino Superior como penso rápido na problemática em questão. Embora o investimento nestes Serviços seja sem dúvida essencial, existe a necessidade de investir nos demais organismos de saúde. O investimento da Psicologia nos vários organismos de saúde permitiria um acesso a profissionais de saúde psicológica mais fácil, permitiria diminuir as filas de espera para consultas psicológicas nas várias instituições e poderia tornar os serviços de psicologia privados mais acessíveis à população geral.
Adicionalmente, é imprescindível a desmistificação e a psicoeducação sobre as questões de saúde mental, de modo a que a visão redutora da psicologia como remediativa seja desmantelada, para que dê lugar a uma psicologia preventiva, comunitária, política e em colaboração com as mais vastas áreas de vida.
Deste modo, iniciativas ligadas à higiene de saúde mental, programas de transição entre o ensino secundário e o ensino superior, programas de desenvolvimento pessoal e de soft skills devem ser considerados como possíveis soluções à situação da comunidade estudantil atual.
Que universidades ou institutos precisam de soluções mais urgentes?
Tal como já referimos anteriormente, este é um problema transversal. Medidas devem ser implementadas a nível nacional e em várias áreas de atuação.
Quais as medidas de solução que deveriam ser implementadas e ainda não o estão a ser?
De forma mais específica, algumas soluções que poderiam ser implementadas são, por exemplo, a semana de 4 dias de aulas, a diminuição do número de ECT’s por semestre, medidas de habitação estudantil e de ação social, programas de desenvolvimento pessoal, não só para as/os estudantes saírem mais preparados para o mercado de trabalho mas também para se sentirem mais capazes para lidar com as adversidades. No entanto, é também necessário direcionar o foco para a implementação de medidas no ensino secundário. De forma prática, seria essencial abordar técnicas de estudo, realizar até mesmo alguma mentoria para reduzir o choque na transição para o ensino superior, no fundo capacitar estes estudantes para a mudança que se aproxima, a qual está repleta de diversos obstáculos desafiantes.
Tirar um curso superior tem sempre os seus momentos ou picos de stress. Mas quando devemos suspeitar de que já não se trata de algo normal ou adequado ao momento ou situação vivida?
Todos os percursos são caracterizados por momentos altos e baixos e é esperado passar por momentos mais estressantes ao longo do percurso académico. Contudo, as adversidades experienciadas pelos estudantes atualmente vão para além da vida académica e devem-se à crise económica, habitacional e social que se presencia atualmente.
Assim, como estamos a viver condições sem precedentes também as consequências psicológicas despoletadas serão de igual proporção inauditas. De qualquer modo, quando as/os estudantes começam a experienciar dificuldades que comprometem o funcionamento normal nas suas práticas diárias, quer seja a nível físico, emocional, psicológico, social ou laboral, é sempre aconselhado procurar algum tipo de apoio ou ajuda.
De que forma os estudantes se podem “proteger” ou evitar a progressão para alguma patologia?
Para a proteção das/os estudantes portugueses ao possível desenvolvimento de patologia psicológicas torna-se essencial o desenvolvimento de estratégias de coping eficazes, o desenvolvimento de resiliência e de hábitos de sono e alimentares saudáveis. Contudo, para evitar progressões para situações preocupantes é sempre essencial colaborar com profissionais de saúde psicológica que podem auxiliar no desenvolvimento de estas estratégias, mas também abordar problemáticas subjacentes, que evitem o desenvolvimento e progressão de uma patologia.
Quando um estudante está a passar um período de cansaço mais elevado, que mecanismos de coping podem ajudar?
Existem várias estratégias que podem ajudar as/os estudantes a ultrapassar momentos de cansaço mais elevado. Cuidados mais básicos como manter uma dieta saudável e balanceada, fazer exercício regularmente e dormir o número recomendado de horas são essenciais para a saúde física e mental das/os estudantes e possibilitam horas e momentos afastadas/os do trabalho escolar e preocupações académicas. Adicionalmente, estratégias auto-reflexivas, como repensar as expectativas ou reavaliar as responsabilidades semanais e remover tarefas não essenciais, podem libertar alguma carga psicológica e ajudar as/os estudante nestes momentos de maior cansaço.
Para além disso, as/os estudantes devem garantir que guardam um período diário para momentos de prazer e pausa, através de exercício, meditação e hobbies, que permitem às/aos estudantes afastarem-se do trabalho académico e focarem-se em atividades prazerosas e relaxantes. Por fim, é essencial o desenvolvimento de sistema de apoio pessoal e de pares, com os familiares, amigas/os e colegas para apoio emocional, auxílio nas barreiras e adversidades sentidas e até apenas para fornecer companhia e presença na vida das/os estudantes.