Entrevista. Cristèle Alves Meira: “Gosto quando a encenação não se vê. As obras primas são aquelas onde o realizador não se vê”
Reencontro com a cineasta luso-francesa para actualizar uma conversa desde a apresentação da curta Invisível Héroi (2019), isto depois do sobressalto ver o voo cancelado e de um dia de viagem de autocarro entre o festival de Vailladolid (Seminci) e Lisboa. E poucos dias depois de saber que o seu filme Alma Viva (ler crítica) fora o escolhido para representar Portugal na seleção para os Óscares em Hollywood. Uma conversa desassombrada sobre os processos de criação, o trabalho com os actores e o director de fotografia Rui Poças. No fundo, o cinema que vemos em Alma Viva.
Há algo que se prende também com os actores que a acompanham. Concorda?
Sim, claro. Por exemplo, a Ana Padrão, a Sónia Martins que entra no Campo de Víboras, o Duarte Pina entra no Invisível Herói, a Salomé, ou seja, a Lua Michel entra no Tchau-Tchau. E cada curta foi preparando, de uma certa forma, o Alma Viva.
Isso é muito bonito. Sobretudo perceber como aquela região de Trás-os-Montes, que foi muito filmada no passado, mas que não tem sido muito alvo do cinema mais recente. O que a Cristèle mostra é algo que não estamos muito habituados que é mostrar um lado mais genuíno das coisas, no interior do país, com o interior das pessoas e das crenças, que aqui transparece de uma forma absolutamente natural. A Cristéle conseguiu invocar a sua memória e percebe-se que isso resultou. Qual foi para si, o elemento chave do filme? Terá sido a dimensão familiar, esse ADN?…
Apesar de viver em França tenho na mesma uma relação muito forte com essa região. Quer dizer, eu nasci em França, de pais portugueses — o meu pai é de Viana do Castelo e a minha mãe é de Junqueira, Trás-os-Montes. Então todos os anos, várias vezes por ano, regressávamos à aldeia. Isso faz com que tenhamos uma relação particular com Portugal.
“Como espectadora gosto de acreditar no que vejo. Gosto quando a encenação não se vê. Para mim, as obras primas são aquelas onde o realizador não se vê. Eu preciso mesmo de acreditar nas histórias que me vão contar.”
Na verdade, é isso que o filme mostra…
Sem dúvida. E Portugal e a cultura portuguesa continuam a existir para nós. Falávamos português em casa, sendo que a cultura francesa era transmitida pela escola. A minha relação com essas aldeias e essas crenças baseiam-se numa relação de familiaridade muito grande. Isso não significa que seja um filme autobiográfico. Mas costumo dizer que para fazer bons filmes, ser uma cineasta interessante, é tudo uma questão de observação.
Pergunto então como decorreu esse processo de observação.
Passei muitos anos, quase a minha vida toda, a observar essas mulheres, a escutar as histórias. E fui buscar nas minhas memórias, não só actuais mas também nas pesquisas que fiz à volta da bruxaria. Li dois antropólogos que me inspiraram muito. Procurei testemunhos de pessoas que estiveram envolvidas nesse tipo de histórias. Isso permitiu-me criar uma ficção. O filme tem um lado antropológico e realista, mas é uma ficção pura.
Do ponto de vista cinematográfico, como decidiu atacar este tema, sendo que teria de pensar, por exemplo, que a Ana Padrão tinha de estar envolvida. Não estou certo?
No casting do filme temos uma mistura de actores profissionais, como a Ana Padrão, a Jaqueline Corado, entre outros, com papéis minoritários. E actores não profissionais. A Ana Padrão sempre foi escolhida para o filme. Fizemos o Campo de Víboras. Ela tem essa capacidade de ser actriz profissional e além disso ela tem uma ligação com o território. Foi muito interessante trabalhar com ela, porque ela estava sempre a criar e a enriquecer o papel da própria experiência que tinha com as histórias, com o corpo, com a forma de falar.
Qual é a ligação dela a esta terra?
Ela vem de Santulhão, é uma aldeia que é situada a cinco quilómetros da minha aldeia. Por isso, somos vizinhas. Ela tinha também uma relação íntima com esse território, com esse sotaque particular. Fomos buscar muita identificação de familiares, de tias que ela tinha conhecido. Para ela foi mesmo um papel de composição. Basta ver como ela transporta o seu corpo. No entanto, ela não parece caricatural, pois já tem as suas próprias memórias.
E, se calhar, por isso é que funciona tão bem. Apesar de ela ser uma excelente actriz, como é evidente.
Sim, ela fez um trabalho enorme e teve imensa generosidade. Como também a Jaqueline Corado, de aceitar trabalhar com actores não profissionais. E ter muito mais paciência do que trabalhar apenas com actores profissionais. Por isso, agradeço-lhe muito essa generosidade.
O tema da bruxaria e o olhar infantil é algo que acho muito cinematográfico. Penso que envolve quase toda a memória do cinema. E afinal de contas é isso que é o cinema, esta coisa mágica, não é?
Saber se este era um filme fantástico ou não foi algo que sempre existiu nas nossas conversas desde o argumento e até às filmagens. Mesmo com o Rui Poças falamos muito sobre isso. E até em pós-produção para saber que tipo de música tínhamos de usar. A vontade era dizer que estávamos a fazer um filme fantástico, no sentido em que a história nos mostrava uma menina que era possuída por espíritos, uma história de bruxas. Isso faz parte do género fantástico. Só que o facto dessas crenças fazerem parte dessa comunidade, achámos que não era necessário acrescentar efeitos ao formato cinematográfico. Então tivemos sempre de dar um passo para trás e ser mais minimalistas para tratar o fantástico. O nosso foco era tentar criar atmosferas sobrenaturais e perceber como o invisível poderia ser mostrado. Algo sugerido com os foras de campo, com vários elementos, embora muito minimalistas. Podia ser um céu estrelado, os ritmos de um tambor, o grito de uma coruja.
“Há dois realizadores que me inspiram muito. Um é o Abbas Kiarostami. Ele não faz cinema como se fosse um naturalismo preguiçoso. São situações da vida real em que cria o extraordinário, o cinema. O outro é o Maurice Pialat, que também tem esse lado mais corporal, mais orgânico na relação com os actores.”
É isso o cinema, não é?
Sim, o cinema, mas o facto de a protagonista ser uma criança, permitia um acesso mais directo ao imaginário, ao onirismo, e não valia a pena estar ali com elementos de filmes fantásticos. Até porque cada vez que íamos muito longe no filme fantástico, o filme rejeitava esses efeitos espetaculares. Mas, no entanto, existem muitos efeitos especiais que não se vêm. Há sempre aquela vontade de tornar tudo muito natural. Mas foi tudo pensado, cada enquadramento, cada luz. Afinal de contas, todo o cinema é uma representação.
Sim, imagino, que com o Rui Poças esses elementos teriam de ser muito pensados. Tem muita sensibilidade com os espaços.
Sim, ele percebeu logo. Acho que já sabia, mesmo antes de mim, que não podíamos ir pelo lado fantástico. Foi ele que acalmou ideias mais espectaculares que eu tinha. Ajudou muito a ficar mais perto do ADN do filme. E o mais perto possível no ponto de vista da menina.
É claro que além da Ana Padrão, temos mesmo de falar da Lua, ela que transporta literalmente o filme. E nós seguimo-la. Com o olhar dela. Isso é muito importante. Apesar da Cristèle já a conhecer na altura sabia que a Lua estava pronta para avançar com este projecto Alma Viva.
Sim. Bom, foi difícil escolhê-la. Vimos muitas meninas. Ela já tinha filmado uma curta, a Tchau-Tchau… Embora tivesse já feito uma curta, com uma amiga realizadora, que ganhou prémios em França (no festival de Angers, em Clermont Ferrand, etc.). E foi mesmo essa curta que a revelou e me permitiu escolhê-la. Porque essa menina é a minha própria filha. Não sei se sabia?
Não, não sabia. Embora perceba algumas parecenças…
Na verdade, eu estava à procura de uma actriz sem saber que ela estava mesmo ao meu lado. Foi um processo um bocadinho demorado.
Mas também deverá ter facilitado, por já conhecer o meio e de ter confiança.
Sim, já conhecia o território, conhecia as pessoas que entram no filme.
É que não há um momento sequer no filme em que se possa dizer que a Lua não está natural, que está a representar.
Isso é a questão da credibilidade, é o meu foco como realizadora. Como espectadora gosto de acreditar no que vejo. Gosto quando a encenação não se vê. Para mim, as obras primas são aquelas onde o realizador não se vê. Eu preciso mesmo de acreditar nas histórias que me vão contar. Não sou do cinema de muito efeitos. Se calhar, por ter começado com documentário, tenho de fazer com que tudo seja muito credível.
Quem é que mais a inspira no cinema?
Há dois realizadores que me inspiram muito. Um é o Abbas Kiarostami. Ele não faz cinema como se fosse um naturalismo preguiçoso. São situações da vida real em que ele cria o extraordinário, o cinema. O outro é o Maurice Pialat, que também tem esse lado mais corporal, mais orgânico na relação com os actores. Talvez também o Cassavetes, que foi alguém que foi muito importante para mim. Gosto como filma o real, com muito poucos takes. Quase improvisados. No meu caso, não há improvisação, mas há uma vontade de deixar as coisas acontecerem.
É isso que eu ia perguntar. Como foi organizada esta estrutura da mise-en-scène e com ela o trabalho dos actores.
Há uma preparação muito grande, mas é uma relação maior com o trabalho. Não sou daquelas realizadoras que vê o actor entrar pela primeira vez e filma no dia seguinte. Tenho de conhecer as pessoas e os actores com quem vou trabalhar. Então vou privilegiar tempo em que estamos juntos, vamos comer juntos, sair juntos. Criar uma relação antes de podermos trabalhar juntos. É isso que me vai ajudar no momento das filmagens por forma a criar aquela magia e uma receita que não vou contar aqui. Cada realizador tem uma receita diferente e cada filme merece uma receita diferente. Por outro lado, eu fui formada como atriz, acho que isso também ajuda um bocadinho. Para perceber como é aceitar ser observado pela câmara.
De que forma se operou essa transição da actriz para a realização?
Não se operou, porque eu fiz uma escola de actriz, mas logo que saí da escola comecei a encenar no teatro. Fiz dez anos de encenação de teatro. Depois é que fui para o cinema. Por isso, não houve uma transição de actriz para o cinema. Houve mais uma transição do teatro para o cinema. Essa transição foi mais importante para mim. Acabou o ciclo de teatro para passar para o ciclo de cinema. Outra gramática.
Onde estudou?
Como actriz, andei na universidade de teatro, fiz um mestrado de teatro. Mas o cinema foi mesmo no treino. Houve também uma formação muito importante, pois passei um ano na Femis, que é uma escola muito importante, em França, para escrever o argumento de Alma Viva. É uma formação ótima para quem já teve uma vida profissional e que vai passar para a primeira longa de ficção. Foi muito importante trabalhar com argumentistas e aprender mesmo a escrita de cinema que é muito singular.
E agora, já pensa no próximo filme?
Agora estou naquele vazio quando o filme acaba. Vou ter de fazer outro e parece que já não sei nada… (risos). Vou ter de aprender de novo o que é fazer cinema. Não, estou a brincar. Cada experiência traz uma bagagem que permite seguir em frente. Mas não tenho ainda nada de concreto.