Entrevista. Dino D’Santiago: “Lisboa deu o epicentro que eu precisava para contar a minha história”
Dino D’Santiago anda nas bocas do mundo. A sua música pega em inspirações de inúmeros locais diferentes e concentra-as em Lisboa, a cidade adoptada que também teve uma grande influência na génese de Mundu Nôbu, o segundo álbum do artista. Com uma carreira variadíssima e imparável, o último ano trouxe um reconhecimento especial, com referências na reputada revista Rolling Stone e colaborações com artistas como Madonna ou o seu concidadão Panda Bear. A Comunidade Cultura e Arte teve a oportunidade de conversar com Dino d’Santiago na Culturgest, acerca da sua música, das suas origens, das suas influências e do concerto que dará no festival ID, no próximo dia 30 de Março.
Inicialmente, tínhamos combinado fazer a entrevista no Tejo Bar. O que o torna tão especial para ti?
Para já, por ser um espaço ali em Alfama, mas em que, no meio do fado – vês as pessoas a sair das casas de fado e irem para lá –, tens um pouco de Cabo Verde naquele território minúsculo. Mas é um Cabo Verde muito elegante, por onde já passaram quase todos os nomes da música de lá. É um sítio tão discreto – não permitem que se filme –, tens várias peças de arte que vão sendo pintadas por artistas que lá vão e decoram aquelas paredes, e eu, como amante das artes plásticas, cativa-me. Foi um espaço que se tornou muito mais mediático desde que a Madonna decide fazer uma filmagem e algumas fotografias para a celebração dos 60 anos, para a Vogue Italia, cujo momento musical foi criado no Tejo Bar. A partir daí, toda a gente: “onde é que é o Tejo Bar? Onde é que é o Tejo Bar?”, e então vês filas enormes de pessoas a tentar entrar, porque aquilo chega a uma lotação e já ninguém pode entrar. Mas é algo muito especial. É um espaço em que o Jon Luz [músico cabo-verdiano, dono do Tejo Bar] tem mantido a mística necessária para tu quereres descobrir mais do que só um sítio onde tem música ao vivo e alguns petiscos.
Referiste a Madonna, o que me leva a outra pergunta. Qual foi a troca cultural e artística que houve com a Madonna ao longo deste período?
Sinto que a maior troca, sem qualquer dúvida, foi o que ela pode absorver desta Lisboa que, muitas vezes, nós próprios não conseguimos absorver nem ver, passa-nos ao lado. É uma Lisboa que consegue misturar Brasil, Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé, Guiné… consegues ter ritmos de todas essas zonas, conviver com essas pessoas e nem te aperceberes de que país são, a não ser que vás à casa de um e experimentes uma cachupa ou uma cafriela. Já está tudo tão misturado, tão aculturado, que tu já não consegues distinguir, já é um som que é desta cidade. Isso foi o diamante… e tenho a certeza que foi isso que a motivou a gravar o álbum, porque senão acho que ela ia esperar muito mais tempo.
Achas que o facto de ela lançar um álbum com estes sons vai representar um ponto de viragem para a cultura?
Definitivamente. Por tudo o que eu já ouvi – e ainda não posso partilhar – tenho a certeza absoluta. Imagina, até aqui, a Rolling Stone olhava mais para o lado latino e excluía sempre Portugal no seu prisma. Ela fez com que as pessoas se focassem em Portugal não só pelo Ronaldo. A nível artístico e musical, ela consegue ter esse impacto. E esse ser, que é tão impactante no mundo, tem um álbum que posso dizer que quase 80% é focado na energia que teve desta cidade. Se isso não fizer a diferença, acho que mais nada vai fazer.
E a tua própria música, de que forma é que Lisboa a influenciou?
Lisboa deu o epicentro que eu precisava para contar a minha história. Porque eu sou um filho de cabo-verdianos, nascido em Quarteira; depois vou viver para o Porto durante onze anos, com os Expensive Soul, até à altura muito inspirado por Marvin Gaye, Bob Marley… depois, mais recentemente, D’Angelo, Erykah Badu, esse universo. Mas sempre cresci a ouvir música de Cabo Verde. Por ter crescido a ouvir essa música, achava que aquilo era meu e da minha família, mas que eu tinha de descobrir algo novo, tinha de descobrir o meu caminho. Nesse processo todo, quando decidi gravar o novo álbum na altura [Eva], quis viajar por todos esses países: fui até ao Brasil, aos Estados Unidos, a Angola, vários países da Europa; países onde eu me identificava sonicamente. A minha curiosidade levou-me a Cabo Verde, depois de ter sofrido um trauma ali na minha primeira ida, aos cinco anos, e transformou a minha… nas conversas com os meus avós, comecei a escrever em crioulo à velocidade da luz e sinto que encontrei o meu timbre, a minha voz. Então lanço essa proposta, em 2013, o Eva. Mas, ao mesmo tempo, era um disco muito acústico, e eu sou o casamento entre o hip hop – o ambiente em que cresci – e a música de Cabo Verde.
Agora, para encontrar esse centro, tive a ajuda do Kalaf, que é uma pessoa muito conhecedora de tudo o que é mais ancestral, mas ao mesmo tempo conhece o mundo electrónico como ninguém. Foi inacreditável, o processo de gravação do Mundu Nôbu. Gravei os temas acústicos durante um mês, em Santiago, com guitarra, voz e produção, e entrego ao Kalaf, que junta a este nosso barco o Paul Seiji [produtor britânico] e ainda o Rusty Santos [nova-iorquino], para ajudar na direcção. Eles fizeram questão de ir a Cabo Verde perceber qual era a essência dos ritmos, de como as pessoas reagiam ao funaná, ao batuque, onde é que tínhamos de respeitar a génese, não perder a mensagem – apesar de trazeres o elemento mais electrónico e mais dançável, teres sempre mensagens de intervenção social e sensibilização. O disco anda muito à volta desse universo. Demoraram quase dois anos a entregar o disco. Eu lá fui recebendo a versão 27 de um tema… tive ali de lutar contra a minha ansiedade, mas o que é certo é que eles estavam a preparar tudo para que ele chegasse pronto. Quase ao mesmo tempo que as pessoas ouviram, eu ouvi o álbum e epá, até hoje ainda fico a delirar com o disco.
Acho que isso é muito gratificante. Não é uma coisa que nós saibamos dos artistas, o facto de eles próprios ouvirem e o que eles sentem ao ouvir a sua própria música.
Sim, sabes porquê? Porque às vezes, quando estás muito envolvido no disco, tu passas por todos os processos do disco até que ele nasce e aí já não consegues observar de fora, sabes tudo ao pormenor daquilo que vai acontecer ali. Eu tive a sorte de simplesmente confiar, confiar que aquelas pessoas estavam a ter a visão certa e percebiam a minha proposta.
Por outro lado, em Cabo Verde, como é que as pessoas reagiram à tua música? Pelo menos as pessoas mais habituadas à parte tradicional.
O Kalaf, para além de manager, foi um psicólogo. Ele e a minha namorada, na altura. Porque eu arranjava sempre argumentos para boicotar o plano – “se calhar isto está muito electrónico”, “se calhar é melhor subir um bocadinho mais a guitarra”. “Confia. Confia no caminho, confia na proposta, tudo o que estás a ouvir aqui são coisas que se fossem de outro álbum tu estarias a adorar, olha as tuas referências, olha a tua playlist…” Porque eu comprei a história, agora terei de ser o novo Tito [Paris] ou terei de ser a próxima Cesária [Évora] ou Ildo Lobo, porque toda a gente já me catalogava dessa forma, e dá-te uma zona de conforto. Mas o que é certo é que quando fiz este disco, [os cabo-verdianos] foram os primeiros a dizer: “até que enfim, já estávamos cansados só de reproduções”, “até que enfim estás a trazer-nos um universo que é novo”. Felizmente, eu consegui trazer algo que tem a ver com o funaná e o batuque, que são géneros tradicionais, mas trago essas roupagens sónicas, quer do hip hop, quer da kizomba, a abordagem e os temas que escolho é que são diferentes e isso tem ajudado muito.
Sentes-te mais confortável a cantar em crioulo ou em português?
Eu sinto que em português estou a pensar enquanto canto e em crioulo é instintivo e mesmo natural. Quando quero expressar-me com atitude, com garra, tem de ser em crioulo, porque é uma língua muito directa, não tens muitos maneirismos, não dás muitas voltas para falar de amor, é directo ao assunto. No português, tens tanta ferramenta, que muitas vezes não consegues sintetizar numa só canção e faz-te pensar muito mais. Quer uma, quer outra, são processos criativos interessantes, mas pensando que tu, como público, queres sentir a alma do artista, em crioulo tu irias sentir muito mais.
Voltando a Lisboa, que é a tua cidade adoptada. O que é que esta gentrificação e onda de turismo te fazem sentir? Tens receio que se perca a alma da cidade?
Eu não temo o turismo e não acredito que uma cidade perca a alma porque de repente há uma avalanche de turistas, porque, no fundo, a cidade desde sempre quis isso. Nós é que somos eternos insatisfeitos, mas é bonito veres o brilho nos olhos dos turistas a observar coisas por que tu já passas e nem ligas. De repente, entras numa tasquinha onde alguém está a cantar fado e estás a ver um chinês ou um britânico a chorar sem perceber o que está a ouvir, mas sente a emoção. Eu avalio os turistas mais como observadores que estão aqui para te mostrar que realmente o que tu tens é valioso.
Quando chegaste a Lisboa, como foi imbuíres-te na cena musical lisboeta?
Foi tão natural. A sorte é a combinação entre a preparação e a oportunidade, e eu cheguei mesmo na altura certa, em que realmente tudo começou: as rádios começaram a passar mais música portuguesa, a nova geração começou a escrever muito, o pessoal do hip hop foi tão censurado, mas, pela liberdade que tiveram do streaming… claro que depois tens de escolher o que faz sentido para a tua vida, mas já não havia aquela discriminação de que só as grandes labels é que conseguiam editar alguém. Hoje em dia, vejo casos como o da Bridgetown, com o Richie [Campbell], o Plutónio e o Mishlawi, que criam a sua própria label e tornam-se o mainstream de um país. Depois vês o caso da Enchufada, que um grupo de produtores consegue criar um som que identifique uma cidade, como a Príncipe o está a fazer.
Imagina, eu venho de Quarteira, que já é uma cidade com uma mistura inacreditável, é um embrião muito mais pequeno do que Lisboa, mas tem o mesmo tempero. Isso facilitou a ida para o Porto, ficar onze anos naquela cidade, onde tu percebes que és o estranho, mas depois és o estranho a que toda a gente diz “eh Dino, mouro, entra aqui!”. O Porto dá-te um sentido de casa e esse sentido fez-me chegar a Lisboa e incutir isso aos meus amigos, do “vamo-nos reunir, vamos criar”. Eu sinto que a minha grande chave nesta cidade foi o proporcionar encontros, porque é o que eu mais amo. Até contra mim falo, porque a editora e a agência estão sempre a dizer “Dino, chega de participações, chega de encher o palco de gente”, mas se eu pudesse – e tu podes tudo o que tu quiseres, mas tudo tem o seu timing – eu vivia dessa partilha, é o que me faz fluir, é o que me faz ser mais feliz. Então, já que não pode ser sempre no palco, então vou proporcionando vários palcos e tentar cruzar as pessoas. Lisboa foi isso.
Essa cena de teres a tal partilha e muitos mundos diferentes a colidir, sentes que te traz uma aceitação de vários públicos diferentes?
Às vezes poderia parecer “então, mas este gajo está a dar tiros por todos os lados?” Eu não fui à procura de nada. Sempre que fiz algo, foi sempre com a certeza de que só não queria viver à margem de mim próprio e ter uma label, tipo “Dino vai ser cantor disto” ou “Dino vai ser só pintor”. Eu sempre quis fazer tudo e ser tudo, sem me limitar. Felizmente, tive uma família que sempre me proporcionou isso, os meus pais nunca me castraram. Eu sempre tive a liberdade e sempre me fui rodeando de pessoas que me ancoravam. Já na escola, a minha professora de História, Carla Candeias, sabia que eu adorava os movimentos artísticos que surgiram entre as guerras e então incentivava-me a ir ver outras coisas que não os livros da escola. Sinto que não há muita gente que teve essa oportunidade e então, sempre que me aparece alguém mais novo – ou mesmo uma pessoa que seja mais velha, mas que eu sinta que tenha alguma resistência em se aculturar – eu tento fazer essa ponte. Tem de ser é de forma natural.
Eu sinto que se não fosse essa minha mistura, não conseguiria fazer este Mundu Nôbu. Tipo, eu entro num disco completamente de fado do Jorge Fernando e ele pede-me para fazer arranjos vocais, então traz-me outra forma de olhar para a música, outro tipo de harmonias. Depois, em Nu Soul Family, é-me pedido algo mais a ver com dance music; nos Expensive [Soul], mais funky; depois em Cabo Verde, tudo muito mais acústico… todos eles trazem-me sempre universos novos e eu, felizmente, consigo casá-los a todos, porque, no fundo, tudo é nosso. Nosso, álbum do Branko.
O que é que podemos esperar do concerto no ID? Se calhar tu és o elemento mais diferente do cartaz, não sei se sentes isso.
Sabes que eu fiquei muito contente por eles terem percebido qual era a minha intenção. Eu vou parecer o mais outsider, porque se tu vês a história anterior a este momento… mas imagina, se ouves a “Tudo Certo”, consegues transportar para ali. Se ouves a “Nova Lisboa”, também consegues transportar para ali. Eu sinto que esta caminhada pelo mundo mais electrónico trouxe a ferramenta que faltava para realmente haver a mudança que eu acho que é tipo… todos os ritmos que eu estou a levar são propostas que são herança lusófona, todos os outros artistas estão a trazer algo que vem da cultura anglo-saxónica ou de… mas realmente, depois o Progressivu também lá está, a trazer tempero nosso, Shaka Lion também; mas todos os outros géneros sofrem uma influência muito mais anglo-saxónica. Então é bonito tu veres que as pessoas já começam a olhar e a perceber o que é que nos queremos levar com esta nova Lisboa.