Entrevista. Fernando Galrito: “O cinema de animação português não tem outro desígnio que não evoluir e manter a qualidade”

por Kenia Pollheim Nunes,    20 Março, 2025
Entrevista. Fernando Galrito: “O cinema de animação português não tem outro desígnio que não evoluir e manter a qualidade”
Fernando Galrito / Fotografia de Bruno Simão

A MONSTRA, Festival de Cinema de Animação de Lisboa, começa hoje a sua 25.ª edição. A Comunidade Cultura e Arte sentou-se com o seu diretor criativo, Fernando Galrito, presente desde os tempos do Teatro Taborda, e olha para os últimos 25 anos da MONSTRA, da animação em Portugal e da sua relação pessoal com o mundo das artes. A história começa na Biblioteca Fixa n.º 2 em Samora Correia, passa pelos Festivais internacionais com uma paragem num telegrama de Vasco Granja, e pousa no Cinema São Jorge, casa-matriz do Festival, onde hoje acontece a cerimónia de abertura.

Lisboa, ano 2000

Como era o mundo da animação em Portugal no ano 2000? Mais profícuo do que muitos possam achar. O primeiro ano da MONSTRA – Festival de Animação de Lisboa nasceu da vontade conjunta de um grupo de cinco pessoas — um cineasta, um antropólogo, uma professora da primária, uma cantora do coro Gulbenkian e um artista plástico — e do estado de ebulição do panorama da animação portuguesa, que culmina em 2000 no primeiro Cartoon D’Or, “o Óscar da animação”, a um português. José Miguel Ribeiro é galardoado pelo filme “A Suspeita”, um impulso muito bem-vindo para a o projeto que, apesar de dar os seus primeiros passos na virada do milénio, já tinha os esboços delineados bem antes disso.

Bom aluno a matemática e física, os pais queriam-no engenheiro, mas Fernando Galrito, diretor artístico do festival desde o primeiro minuto, tinha outros planos. Rodeado desde muito novo pela cultura e pelas artes, muito graças à Biblioteca Fixa n.º 2, projeto da Fundação Calouste Gulbenkian, em Samora Correia, a sua terra natal. Depois, partiu para estudar e, em 1986, regressado de França, encontrou na mesma Fundação uma oportunidade para dar continuidade aos conhecimentos obtidos no Curso Profissional de
Cinema.

Quando regresso a Portugal, a Fundação Gulbenkian estava a acabar um curso de cinema de animação com o Royal College e tinha adquirido um equipamento de topo, pelo menos para a altura, para fazer imagem por imagem, em vídeo e, pela primeira vez, não era em película”., refere Fernando Galrito. Hoje em dia, chamar-lhe-iam cluster criativo, mas esse centro de formação foi crucial para os inícios da MONSTRA: “o lado formativo faz com que desenvolvêssemos a vontade de pôr em diálogo diferentes artes até que me junto a um grupo de pessoas e vamos à Bienal de Cerveira fazer instalações, coisas muito ligadas com a arte, mas onde a imagem em movimento estava sempre presente. Em 1998 (ou 1999), numa das últimas Bienais de Cerveira, decidimos assim: temos de agarrar esta nossa dinâmica e criar um festival.

Ora, os cinco iniciais, cada um de uma área, encontravam-se num panorama em que, do ponto de vista do cinema de animação existia o CINANIMA, festival em Espinho dedicado à animação e banda desenhada desde 1976. “Mas não havia mais nada. É curioso que os dois primeiros festivais da capital são aqueles que podemos considerar mais estranhos, mais de nicho. O ‘Queer’, que começa em 1997, e a MONSTRA, três anos depois”, assume ainda. Queriam um Festival de Animação especificamente, porque era neste género que encontravam dentro dele todas as artes. Na verdade, todas mais uma, “como eu costumo dizer, que é a arte da imagem em movimento. Não há nenhuma arte que construa o movimento como o cinema de animação. Todas as outras artes recorrem ao movimento dos atores, da natureza, o que for, mas o cinema de animação é o único que recria o movimento.”

É assim que nasce, em 2000, uma mostra de cinema de animação que tinha todas estas componentes: “Os filmes eram fundamentais, claro, mas queríamos ir além. Eu já tinha uma relação [com festivais] internacionais muito grande, fomos trazendo muitos convidados, pessoas que nos ajudaram a criar um diálogo com três pilares muito fortes que, desde sempre, caracterizaram a MONSTRA: o cinema, ou seja, o que se passa no ecrã; as exposições ligadas à animação, o que se passa antes do ecrã; e o diálogo do cinema de animação com outras artes, o que está para além do ecrã.”, diz-nos Fernando Galrito.

Animação portuguesa: da influência dos estúdios americanos à Filmógrafo de Abi Feijó

Uma das preocupações fulcrais da MONSTRA é, precisamente, uma programação virada para o cinema de animação português. “Eu diria mesmo que há dois períodos da animação portuguesa: até 1980, mais ou menos, 1985, e depois. Para mim, o filme charneira, aquilo que nós diríamos que foi o “Uma Abelha na Chuva”, do Fernando Lopes, no cinema de imagem real, na animação foi o “Oh Que Calma”, do Abi Feijó. É aí a passagem.”

Uma verdadeira enciclopédia, Fernando Galrito faz uma incursão pelos nomes que considera indispensáveis do antigo cinema de animação português, “pessoas fabulosas de criatividade” como Artur Correia ou Ricardo Neto, ligados ao cinema de autor mas também à publicidade, incubadora necessária e importante para o desenvolvimento de projetos na área em Portugal.

Contrapõe os estilos de Armando Servais Tiago, com uma forte influência da United Productions of America, o grande estúdio americano marcado pelas linhas retas, e de Artur Correia, um traço mais redondo, “mais à Disney”, por exemplo. É inegável, de qualquer modo a grande influência da década de ouro do cartoon americano. Mas, para além disso, há a importância do filme publicitário, entre os anos ’60 e ’80, na divulgação desta arte.

A nossa publicidade, nos anos 1960 e 1970 foi premiada em Zagreb, foi premiada em Annecy, em Cannes. Havia competição para os melhores filmes de animação publicitária.” Fala-nos de uma publicidade da Compal, em que uma pêra vai ficando cada vez mais pequena. Por trás das câmaras, o aparato era conseguido com uma máquina de cortar fiambre, vai ficando cada vez menor; lembra outra, realizada por Armando Servais Tiago e José Xavier, para a SACOR. Melhor que descrevê-las será vê-las aqui ou aqui.

Entre várias outras, Galrito fala da série “A Maravilhosa Expedição às Ilhas Encantadas”, uma incursão em 2D da produtora Animamostra que, apesar de datada “marca, de alguma forma, a nossa primeira capacidade de criar uma série para televisão”. Usa o exemplo de “As Coisas Lá de Casa”, de José Miguel Ribeiro, em contrapartida, como um marco de linguagem universal: “é uma série que é válida em qualquer país do mundo. Toda a gente tem coisas em casa com as quais nós podemos contar uma história.

Dali regressamos, então, a Abi Feijó como personalidade impulsionadora de um novo grupo de cineastas ligados à produtora Filmógrafo: “Nasce, digamos, um novo olhar mais autoral sobre o cinema de animação portuguesa. Começa-se uma tradição de filmes muito ligados com o folclore, os contos portugueses. A animação portuguesa nova mantém essa relação com a nossa cultura, só que olha de uma forma diferente do ponto de vista plástico e estético. É mais autoral, menos influenciada por uma narrativa sequencial, linear.

Fala-nos, também, de um mal comum entre as artes portuguesas: a questão do
reconhecimento. “Há toda uma nova geração que nós fomos acompanhando e que tiveram
na altura um crescimento enorme. É curioso que tenham sido reconhecidos primeiro lá fora
e depois essa onda faz ricochete, regressa para nós.
” Foi o caso de José Miguel Ribeiro, o
galardoado com o Cartoon d’Or em 2000, ou de Regina Pessoa que, em 2006, foi Grande
Prémio Cristal no Festival de Cinema de Animação de Annecy, e realizadores de um grupo
que começou a aparecer, ligados a esse grande estúdio no Porto, Filmógrafo, como Pedro
Serrazina ou Marina Estela Graça.

Deu-se a Revolução: um telegrama perdido de Vasco Granja em Zagreb

A conversa com Fernando Galrito faz-se longa. São muitos nomes, filmes, técnicas. A certa altura, fala-se de Vasco Granja e da importância inigualável que teve na divulgação do cinema de animação em Portugal, bem antes do 25 de Abril. Fernando Galrito ri. Confessa: “Nós éramos amigos. Há uma história muito tocante com ele: estávamos a fazer o catálogo do Animafest Zagreb, de quem eu sou muito amigo. Estava a ajudar na altura a diretora do festival, a Margit Buba Antauer, e de repente aparece um montão de papéis. Eu começo a remexer e vejo um telegrama vindo de Portugal:Fizemos uma revolução. Para o ano já posso ir ao Festival de Zagreb.

A Jugoslávia era um país do Bloco de Leste e, antes do 25 de Abril, não se podia visitá-los.
O Vasco Granja conhecia as pessoas em Annecy que faziam o Festival, mas nunca tinha
conseguido ir. Dois dias depois da Revolução, envia o telegrama.

De repente, deparo-me com esta história, a alguns quilómetros de distância daqui, o entusiasmo da Revolução
”.

Vasco Granja, diz-nos, foi um “imenso dinamizador da animação, que trazia ao CINANIMA, o festival de Espinho, não só também muitos filmes, mas também muitas pessoas que deram muito à animação nacional.

Vasco Granja / DR
MONSTRA goes International

Em 2007, a montra passa a Festival, com secções competitivas. Há, para além da competição, outra característica que descreve a MONSTRA: todos os anos, uma retrospetiva de um país convidado. Este ano, é a Áustria que traz uma programação especial pelas mãos de Thomas Renoldner.

Foram vários os países que passaram pela MONSTRA, da Irlanda ao Japão. Fernando Galrito conta que chovem elogios às retrospetivas tão minuciosas: “nem nos países de origem há esse cuidado para trazer uma programação enciclopédica. Queremos mesmo que haja um mergulho nestas filmografias.

Fernando Galrito / Fotografia de Bruno Simão

Lembra um caso paradigmático: “Houve um ano que trouxemos a ex-Jugoslávia que, com as transformações geopolíticas, transformou-se em sete países. Dado o final das retrospetivas, pusemos no palco cinco realizadores que se calhar na antiga Checoslováquia, na Croácia, se calhar não estariam todos juntos porque ainda havia muita tensão que vinha da guerra que se criaram entre os novos países que apareceram. Sentiram-se à vontade para estarem todos a partilhar o palco, abraçaram-se…

Fala-nos do cinema de animação como veículo de mensagem política: “infelizmente, vendem-nos do ponto de vista noticioso que muitas culturas, muitos países, muitas pessoas são horríveis. Dize-nos que os árabes trazem na mochila, de certeza, uma bomba para ser arrebentada. E depois, de repente, vemos filmes de todos estes países, não importa qual a sua latitude, e percebemos que todos têm capacidade de fazer coisas bonitas, que nos emocionam. Que eles se emocionam.

Conta um caso do ano passado, em que um realizador e pedagogo de Hollywood, emocionou-se ao ver “O Menino e o Mundo” nos braços do realizador Alê Abreu. “Não há, no mundo, pessoas que não saibam chorar, e que não saibam chorar pelas boas razões também, pela felicidade, pelo prazer, pela emoção mais profunda. É incrível o que a animação consegue fazer.

“O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu
O cinema de animação português está vivo e recomenda-se

2025 é o ano em que a MONSTRA recebe o recorde de filmes portugueses na Competição Vasco Granja. São 20 curtas-metragens, garante Galrito “de exímia qualidade”.

Diz-se muito por aí “ai, os jovens…”, com um tom muito lamurioso. No cinema de animação, não se põe essa questão. A nova geração que está aí, em alguns casos até diria que são melhores do que uma ou duas gerações atrás. O cinema de animação português não tem outro desígnio que não evoluir e manter esta qualidade.”, sublinha Fernando Galrito.

Galrito crê que existe um problema de foro industrial no aproveitamento destes recursos. Há muito material e recursos humanos para ser utilizado, há que saber aproveitá-los. Relembra novamente a série de José Miguel Ribeiro, que contou pouquíssimos episódios e, por isso, viu muitas dificuldades nas vendas. “Aquela série poderia ter 300 ou 400 episódios e vender para o mundo inteiro. Só tem 13. É difícil uma televisão dizer que tem uma semana de programação ou duas. O que se quer é ter o ano inteiro.” É preciso identificar estes novos talentos para que as animações não se restrinjam só a um meio de nicho e consigam encontrar pouso em outras plataformas.

Para além disso, aponta a falta de investimento na cultura como o grande tendão de Aquiles
do setor: “Não há falta de boa produção ou de bons criadores. Há mesmo falta de dinheiro. Quem ganha realmente dinheiro connosco não põe dinheiro na cultura. A única entidade que ‘mete’ dinheiro no cinema é uma entidade pública e é pouco. Não há muitos países europeus a levarem duas longas-metragens ao mesmo tempo à competição de Annecy e nós conseguimos, com boas histórias.” Dá o exemplo da Sardinha em Lata, produtora de “Os Demónios do Meu Avô”, nomeado para Melhor Filme em Annecy em 2022: “tinha um estúdio enorme, ensinou muita gente e, de repente… vamos ver se daqui a 4 ou 5 anos temos dinheiro para fazer outra [longa-metragem]”.

Argumenta que, assim como os impostos sustentam os serviços essenciais, deveriam também ser utilizados para apoiar a cultura. O cinema português já provou a sua qualidade e impacto global, especialmente depois da nomeação de Ice Merchants, curta-metragem de João Gonzalez, aos Óscares no ano passado. “A indústria não recebe o apoio financeiro necessário para manter um fluxo constante de longas-metragens.

Independentemente, o cinema de animação português persiste. Exemplo disso é a COLA, um coletivo audiovisual responsável pela produção da curta de João Gonzalez, que completa 10 anos em 2025. Até ao dia 3 de maio de 2025, estará patente uma exposição na Cinemateca Portuguesa que inclui material dos vários projetos feitos pela produtora em stop motion, fotogramas e imagens de making of de cada filme.

A MONSTRA e as novas tecnologias

Quanto à evolução das novas tecnologias, Fernando Galrito destaca uma mesa-redonda realizada no ano passado com vista a discutir a Inteligência Artificial. “A pior coisa que se pode fazer é fechar os olhos e achar que as coisas não estão que não existem à nossa volta”, refere. Acredita que o medo é natural, mas que não deve impedir a sua compreensão e utilização. “Em vez de ignorá-las, é essencial usá-las para nosso benefício, sem perder as capacidades humanas fundamentais para a criação artística. A inventividade humana estará sempre à frente”.

Essa inventividade permanece também nas preocupações da programação do Festival: “não queremos ser um festival ‘Wikipédico’, mas sim enciclopédico. E é isso que temos cumprido nos últimos 25 anos.

A MONSTRA acontece entre os dias 20 e 30 de março em várias salas de cinema de Lisboa. Conhece a programação completa em monstrafestival.com.


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