Entrevista. Filipa Fonseca Silva: “Não quis que ‘Admirável Mundo Verde’ fosse um livro ativista. Quis que trouxesse essa conversa sobre crise climática e que o leitor tire as suas conclusões”

por Magda Cruz,    2 Março, 2025
Entrevista. Filipa Fonseca Silva: “Não quis que ‘Admirável Mundo Verde’ fosse um livro ativista. Quis que trouxesse essa conversa sobre crise climática e que o leitor tire as suas conclusões”

As políticas de Trump e a reversão de medidas pró-ambiente no primeiro mandato do Presidente dos Estados Unidos, bem como os incêndios devastadores na Austrália, foram a faísca para Filipa Fonseca Silva criar um livro em que se ergue um regime totalitário. 

As Brigadas Verdes punem todos os que não reciclam corretamente, baniram os carros que funcionam a combustíveis fósseis e implementaram a política do filho único. Mais radical ainda: os ativistas executam todos os grandes poluidores. É um cenário que retira todas as liberdades aos cidadãos do país retratado em Admirável Mundo Verde, mas que restitui o equilíbrio ao ambiente. As metas do Acordo de Paris nunca foram cumpridas tão rapidamente, mas há repressão nas ruas. 

Nesta entrevista ao podcast “Ponto Final, Parágrafo”, a autora conta-nos como surgiram as personagens principais desta obra, como foi o desafio de escrever uma distopia quando apenas escreveu romance contemporâneo e revela que sofre de eco-ansiedade, patologia que expôs no livro.

Magda Cruz: Em Admirável Mundo Verde, cada pessoa só tem direito a caderno A4 por ano. Isto para poupar árvores. Se vivesses nesse país, conseguias viver só com caderno A4 por ano?

Filipa Fonseca Silva: Dificilmente. Teria que contar com as caixas dos cereais, cartão, papel, pecados de qualquer coisa que desse para escrever. Seguramente, um caderno A4 não chegaria.

MC: Tinhas de ir trocar por um caderno? O que é que farias para o armazém?

FFS: Eu sou muito boa nas artes manuais. Eu gosto muito de pintar. Pinto a óleo desde miúda. Houve uma altura até que, entre empregos, foi assim uma fase na Publicidade, em que tive quatro meses fora da Publicidade, e dediquei mesmo à pintura e ao artesanato. Pintava caixinhas e molduras, e depois ia vender nas feiras. Foi assim uma fase. [risos]

MC: Descobrimos o que trocarias no armazém por um novo caderno. 

FFS: Podia fazer montes de coisas. 

A autora Filipa Fonseca Silva e a jornalista Magda Cruz

MC: Podemos dizer que o livro é um pouco provocador porque toca em algo que é revoltante para o público,, que é o ecoterrorismo. Temos visto nas notícias, por exemplo, quando os jovens cortaram a segunda circular e houve quem saísse dos carros a dizer “Tenho de ir trabalhar, saiam da frente”. Todas essas abordagens. Portanto, retratas uma posição disruptiva e que não é só das greves às sextas-feiras. Tiveste cuidado para não ser paternalista no livro e não tomar uma posição, certo?

FFS: Sim, esse foi mesmo o objetivo, foi mostrar o que é pode acontecer, eu nem vou dizer “poderia” porque acho que mesmo que pode acontecer, se de repente os ativistas do clima, em vez de atirarem tinta às paredes e aos quadros, começarem a tirar tiros. E então, eu quis mostrar até onde é que pode ir o ecoterrorismo, até onde é que vai a nossa a nossa estagnação, a nossa inércia, em fazer qualquer coisa para mudar. Será que é preciso que venha alguém impor regras, impor uma nova sociedade para nós acordarmos, valorizarmos e mudarmos o nosso dia a dia, as pequenas coisas que fazemos? Eu quis questionar essas coisas todas, mas sem nunca tomar partido. Eu acho que foi também por isso que eu, a meio da escrita, decidi também tornar a Billie a narradora principal do livro. Porque, normalmente, nas distopias sobretudo, costuma ser o protagonista a contar a história, mesmo que não seja o narrador o protagonista, mas centra-se muito em alguém…

MC: Foi um ensinamento que tiraste da leitura de distopias?

FFS: Sim, centra-se ali em alguma das personagens principais e a história está à volta dela. E aqui a Billie é quase uma personagem secundária, porque ela não fez a revolução, ela não esteve envolvida nas Brigadas Verdes e no fundo ela é nós, ela é as pessoas que sofrem as consequências de  um qualquer regime.

MC: E que pensam “Será que devo viver subjugada e ver até onde é que isto vai parar, porque daqui a uns anos, se calhar, regime acalma. Mas ela também é a ponte entre a Resistência e, neste caso, a Laura, é a personagem que conhecemos primeiro e que faz parte das Brigadas Verdes e que leva avante o regime. Ela é ali o meio termo. Eu não diria que é secundária. Engraçado.

FFS: Sim, ela não é secundária. Quer dizer, a história podia estar sempre a ser contada à volta da Laura. E a Laura desaparece durante grande parte do livro. Aparece no início e aparece no fim. Não há aqui uma hierarquia muito fixa das personagens, mas eu quis contar a história na perspectiva de quem sofre um regime, seja ele qual for, uma mudança de regime abrupta como esta foi, as consequências e lá está este quotidiano, como é que a pessoa se adapta a viver com caderno A4 e outras coisas que tais. E, sobretudo isso. Apesar de eu ser ativista, eu não quis que este livro fosse um livro ativista nesse sentido de ser paternalista ou de estar a querer mostrar um lado da luta climática, ou o que é está certo, o que é que está errado. Eu quis precisamente que este livro trouxe essa conversa e que o leitor tire as suas próprias conclusões. Quem é que tem razão? 

MC: Estás ali para colocar perguntas. 

FFS: Precisamente.

A distopia “Admirável Mundo Verde”, de Filipa Fonseca Silva, editado pela Suma de Letras

MC: Podemos dizer que pode ser um livro urgente, tendo conta a crise climática? Podemos vê-lo assim?

FFS: Eu acho que é muito urgente. Aliás, eu hoje estava a ver as notícias e as pessoas costumam me perguntar quando é que surgiu a ideia para este livro. E surgiu precisamente no primeiro mandato do Trump, quando eu assistia a uma notícia sobre uma conferência de imprensa em que ele dizia que ia reverter todas as leis federais que o Obama tinha imposto de tornar os edifícios federais mais sustentáveis. E que ele para já odiava a luz LED porque ficava mal com o tom de pele dele. E foi aí que nasceu a Laura. Isto foi na sequência de já estávamos com os incêndios na Austrália e já tinham morrido não sei quantos mil coalas e outros animais que tais, todos os dias. E esta notícia foi na sequência de estarmos a ver a catástrofe que estava acontecer na Austrália. E na altura surgiu a Laura em mim, que foi: “Porque é que ninguém mata este gajo?” [riso] Foi mesmo o que eu pensei na altura. 

MC: Entretanto, já tentaram.

FFS: E não conseguiram. Não vamos entrar por aí. Mas foi mesmo… Eu senti uma raiva e pensei “E se os ativistas, pessoas…” Não eu, porque eu não estou envolvida politicamente em nenhum movimento do clima. Sou ativista independente, mas “E se um grupo de ativistas que ouvisse isso decidisse que este homem tem que morrer, porque este homem está a provocar um retrocesso.

MC: E é esse o primeiro capítulo deste teu Admirável Mundo Verde.

FFS: Precisamente. E hoje vi a notícia que Trump acabou de assinar um decreto a dizer que vai voltar a pôr palhinhas de plástico, porque não lhe dá jeito nenhum beber com palhinhas de papel, que se desfazem. E eu voltei a sentir aquela raiva e pensei: “Bem, isto pode acontecer.”

MC: Com o novo mandato dele voltam estas ideias retrógadas.

FFS: Voltam as ideias retrógadas e volta também esta sensação de que é preciso fazer alguma coisa. Ele já se retirou do Acordo de Paris, o ministro responsável da energia, é um dos maiores nomes da indústria do petróleo. Quero dizer, estamos a caminhar para o abismo. É uma pessoa que não está sequer minimamente interessada em… Mais do que não estar interessada, é negacionista das alterações climáticas e está a reverter tudo.

MC: Tendo em conta tudo isso que disseste até agora, esperas que este livro, de alguma maneira, sendo que não é o objetivo primário dele, primeiro queremos que o leiam, depois se tem repercussão nas pessoas, ainda bem, mas esperas que haja com este livro o fim da descrença das questões ambientais?

FFS: Sim, isso seria um objetivo incrível de atingir. Se as pessoas, ao lerem este livro, percebessem que realmente o nosso papel, por muito pequeno que seja, de cada cidadão, é importante. Mais não seja porque temos o poder de votar e de não eleger pessoas como, por exemplo, Trump. Pessoas que vão reverter ou que vão atrasar a luta, que é importante. Este livro questiona os meios. Será que os meios justificam os fins? Será que vale tudo? Portanto, são várias questões que eu coloco e o objetivo é mesmo fazer com que as pessoas reflitam e trazer o tema para a mesa, de uma forma que não seja demagógica e que não seja panfletária.

Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”:

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.