Entrevista. Frederick Wiseman: “Interessa-me recolher o máximo de detalhes do comportamento humano”
Um ano depois de “Ex Libris”, Frederik Wiseman observa uma pequena comunidade do estado do Indiana, no interior dos EUA. Confessa que 65% da população votou Trump, mas que nunca os ouviu falar de política e assume o desejo de fazer um documentário na Casa Branca. Se fosse hoje, seria algo entre “um filme de horror e de zombies, em forma de comédia”.
Wiseman, o nome sugere sabedoria. E uma memória colossal. Mesmo aos 88 anos. De resto, recorda-se de tudo. Dos amigos do DocLisboa — um certame que tem seguido de perto o seu percurso, e que agora incluem o novo “Monrovia, Indiana” na abertura da 16.ª edição do festival — bem como o nome do amigo José Manuel Costa e o magnífico ciclo organizado pela Cinemateca em 1994. Foi de resto aí que conhecemos o documentarista, numa bela entrevista realizada na antiga Escola de Cinema no Bairro Alto e publicada no Jornal de Letras. Foi também nessa altura que descobrimos o seu cinema, directo e feito de verdade. Na verdade, a impressionante obra documental de Frederik Wiseman quase se confunde com a sua própria vida. Desde “Titicut Follies”, em 1967, há mais de 50 anos, até “Ex Libris”, o ano passado. Apesar de tudo, Wiseman assegura-nos que “existem milhares de temas por filmar”.
Desde sempre, os seus temas testemunham diversos temas da sociedade americana, e em alguns casos a francesa, pelo menos desde que habita um convento do século XVII, nos arredores de Paris.
Em “Monrovia, Indiana”Wiseman ausculta o pulsar de uma pequena comunidade num dos centros agro-pecuários e de manufactura do país. Apesar de tudo, esta pequena cidade com pouco mais de um milhar de almas pertencentes a cerca de trezentas famílias, sendo que 97% branca, ainda olha com desdém para o alargamento da sua comunidade. A mesma comunidade que, segundo Wiseman, votou em massa em Trump.
É impressionante a sua capacidade produtiva e como consegue fazer um filme por ano. Ainda o ano passado nos encontrámos para falar de “Ex Libris”. Como foi que evoluiu desse filme para “Monrovia, Indiana”?
Foi mero acaso. Queria fazer um filme sobre uma cidade pequena. Uma pessoa amiga conhecia alguém de Indiana. Fui visitar a região e percebi que poderia fazer ali o meu filme.
É verdade que é a primeira vez que faz um filme sobre a “mid America”?
Fiz o “Public Housing” (1997), sobre os projectos de habitação em Chicago. Essa foi a primeira vez que fiz um filme sobre uma pequena localidade.
De certa forma, parece que “Monrovia, Indiana” lhe dá as mesmas possibilidades de um filme com um foco superior. Concorda?
Sim, de certa forma sim. Em Indiana as pessoas foram muito amáveis e deram-me total acesso. Não recebi nenhuma recusa de ninguém.
Talvez seja inevitável vermos aqui alguns elementos de outros trabalhos seus. Falo em concreto da industria da carne. Foi algo que quis fazer?
É verdade, fiz um outro filme sobre esse tema (“Meat”, 1976), mas não é por isso que está neste filme. Apenas está porque queria mostrar as diferentes actividades das quintas locais. Eu já fiz um filme sobre cabras e vacas. Agora acrescentei os porcos à minha colecção…
O final de “Monrovia” com o funeral é bastante comovente. Foi algo que pensou inicialmente, como um fechar do círculo da vida?
Não pensei nisso antes porque não sabia que iria ter essa possibilidade. E quando filmei essa sequência não sabia onde a iria usar. Foi na montagem que percebi que poderia terminar aí.
Está agora a filmar em digital e a montar em digital. Isso significa que lhe permite experimentar outras coisas?
Não faz diferença nenhuma. A única diferença será a possibilidade de poder filmar mais material. Talvez uns 5%. O que não é muito. Para “Monrovia, Indiana”filmei 150 horas, o que fiz diversas vezes em outros filmes. A montagem também não é muito diferente. Aliás, não gosto particularmente de montagem digital, talvez porque tenha montado filmes em película durante 45 anos. Não há muitas escolhas, a não ser que podemos recuperar o material de forma mais fácil. Mas isso não é necessariamente uma vantagem. Quando a película está pendurada na parede isso dá-nos tempo para pensar, por isso não é tempo perdido.
Tal como a correcção de cor…
Adoro a correcção de cor. Neste filme está óptima.
É verdade que montou este filme num convento em Paris?
Eu vivo num convento, que foi restaurado há 23 anos. Pelo menos costumava ser um convento. Infelizmente, as freiras já se foram embora. Agora tem apartamentos que são arrendados a pessoas de fora. Artistas, realizadores…
No seu entender, as razões porque fez este filme serão próximas daquelas porque fez outros filmes. O que procura pode ser semelhante num filme e noutro? Por exemplo, entre “Ex Libris” e “Monrovia, Indiana”?
Pode ser semelhante num sentido geral. Porque interessa-me recolher o máximo de detalhes do comportamento humano. Quando vou a uma localidade pequena é natural que queira conhecer a sua administração. No entanto, tento não começar com ideias preconcebidas. Mas tornar esse percurso numa aventura.
A ideia é ir conhecendo pessoas com quem vai conversando…
O modelo é Las Vegas, atiramos os dados e vemos o que acontece…
(risos) Excelente analogia. De resto, percebe-se que não alterou muito o seu método de filmar dos seus filmes precedentes. Concorda?
O método de trabalho que uso é o mesmo, embora quero pensar que vou aprendendo alguma coisa de filme para filme. Mas a técnica não mudou. Normalmente, observo muito e filmo muito. E depois encontro o meu caminho na montagem. É essa a técnica e foi isso que fiz. A certa altura na minha carreira descobri o papel que tem a sorte no meio disto tudo. Dito de outra forma, temos de estar preparados para filmar de um momento para o outro. Porque se hesitamos, podemos perder o ponto inicial de uma conversa entre duas pessoas que pode explicar o evento. É melhor correr o risco de o perder. Por exemplo, em “In Jackson Heights” (2015) há um grupo de mulheres do sul que se prepara para limpar o passeio. Achei piada por ver um grupo de mulheres sulistas com vassouras a limpar o passeio. Parecia que estavam numa missão por Nova Iorque estar suja. Entretanto, aparece uma mulher que lhes pede para rezarem pelo pai dela, que estava a morrer no hospital. É aí que uma cena com alguma comédia se torna numa cena dramática. Mas isso foi apenas a sorte de estar ali quando ela disse isso. A diferença é que estava preparado para esse tipo de sorte.
Em “Monrovia, Indiana” também há muita oração…
…porque eles são muito religiosos.
Acha que o destino e a religião é algo mais comum com as zonas rurais do que numa grande metrópole como Nova Iorque?
Acho que a América é um país muito religioso. Só descobri isso quando passei a viajar muito pelo país. Talvez muitos países o sejam também, não sei.
É bastante divertida a cena da loja maçónica. Mas em que se torna cómica à medida que se desenrola, como diz.
Sim, foi algo que aconteceu assim. É uma cena divertida porque é complicada. Reconheço que é engraçada, mas o mais importante é que eu não me servi desse lado divertido. O lado cómico tem de emergir da situação e não pela forma como é filmado. De outra forma, estou a aproveitar-me disso. Neste caso, acho que não é isso que acontece.
Uma outra situação de ocorre durante a reunião da administração da cidade em que se discutem com bastante detalhe toda a operação para colocar um novo banco de jardim.
Lá está, isso é divertido. Eu apenas deixo que a cena se desenrole por forma a explicar-se por si. Uma vez mais, não quero tirar partido dessa cena. Mas, concordo, é divertido. Só que isso acaba por acontecer um pouco por todo o lado. Não é exclusivo de Monrovia.
De certa forma, a mesma reunião tem lugar em “Ex Libris”, embora aí a administração lide com milhões de dólares para a gestão da biblioteca de Nova Iorque. Ao passo que ali são os 500 dólares para fazer essa pequena obra.
Exactamente, é a mesma reunião.
É quase uma espécie de trade mark do seu trabalho, em que pessoas se juntam a uma mesa para resolver um problema. E não falo apenas nestes dois filmes, mas também em Jackson Heights, Crazy Horse…
Acho que é importante fazer filmes sobre pessoas que tentam fazer coisas. Isso é muito relevante em Ex Libris. Há um interesse genuíno em tornar o conhecimento disponível a todos. Isso é tão importante como Bridgewater, onde filmei Titucut Follies (1967). Interessam-me os mais variados aspetos do comportamento humano.
O que lhe falta ainda na sua colecção de registos de actividades humanas?
Milhares de coisas. A Casa Branca, por exemplo. Apesar de já ter filmado muito, há milhares de temas por tratar.
O ano passado na conferência de imprensa de “Ex Libris”, disse que gostava de fazer um filme sobre o FBI.
Sim, tentei várias vezes, mas não estão interessados. Tal como a Casa Branca.
Seria um tema bastante interessante. Li algures que preferia ler um livro ou ir ao teatro do que ver um filme…
É verdade. Veja bem, passo o dia inteiro a filmar ou montar. É isso que faço a maior parte do ano. Antes ia bastante ao cinema, mas agora quase não vou.
Lembra-se do primeiro filme que viu num cinema?
Foi provavelmente um filme do Laurel e Hardy (o Bucha e Estica), já não me lembro. Ou do W.C. Fields. O meu pai era advogado e ia trabalhar no sábado de manhã. Apesar de ser ainda muito novo, com uns seis ou sete anos, apanhava o metro e ia ter com ele. Isto em Boston. No sábado à tarde tinham filmes para crianças. Lembro-me de ver imensos filmes do Laurel e Hardy e do W.C. Fields. E também dos irmãos Marx. Aliás, se há alguma grande influência em mim é o Groucho Marx.
Apenas como especulação, se fosse autorizado a fazer um filme na Casa Branca, que filme seria?
Não sei, depende do que conseguiria. Mas seria talvez uma combinação entre um filme de horror e de zombies, em forma de comédia.
Isto sem interferir…
Sim, claro. Apenas teria de ter acesso. Acho que até poderia gostar, isto de uma forma algo perversa. Mas duvido. Ele é um psicopata. A American Psychiatric Association publica um dicionário em que definem várias doenças psiquiátricas, como psicopata e sociopata. O Trump é a definição de ambas. Ele é a definição de um sociopata e um psicopata.
Acha que vai ser reeleito?
Não. Quer dizer, eu nem sequer acreditava que seria eleito. Como todos, não é? Mas não acredito. A verdade é que os Democratas também não têm um candidato. Mas o New York Times e o Washington Post foram registando as suas mentiras mais relevantes. E já vão em 3400! Do Obama tinham 8.
Será que podemos dizer, talvez de uma forma algo perversa, que as pessoa que filmou em Monrovia, Indiana foram potenciais votantes de Trump?
65% dos votantes em Monrovia votaram em Trump. Mas quando lá estive não ouvi qualquer conversa política. O que mais me inquietou neste grupo de pessoas foi a sua falta de curiosidade. Acho que o filme mostra bem como o mundo exterior não lhes interessava muito. É um mundo muito pequeno, organizado em redor da família, do trabalho e da igreja. E, claro, muito interessados em maquinaria. A explicação religiosa acaba por apaziguar qualquer ansiedade. Sobretudo se não tivermos perguntas para fazer.
Só para terminar. A cena de abertura parece uma sinfonia da natureza, em que vemos a terra, o céu as nuvens. Era esta dimensão que procurava para a sua história?
Sim, é por isso que ali está. Tal como várias outras sequências estão ali por uma série de razões. Neste caso, providencia contexto, estabelece uma comunidade agrícola, mostra-nos a beleza no lugar e introduz-nos para o tema.