Entrevista. Gabriel o Pensador: “Acho que todos devemos ser humanistas. Devemos pensar no próximo”

por Romão Rodrigues,    2 Março, 2022
Entrevista. Gabriel o Pensador: “Acho que todos devemos ser humanistas. Devemos pensar no próximo”
Gabriel o Pensador / DR
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Com Gabriel o Pensador, as notas introdutórias pecam sempre pela escassez. Se a palavra “escrever” for decomposta por um português, facilmente se denota o termo “ver” inscrito na mesma. Se a palavra for decomposta por um brasileiro e principalmente por Gabriel o Pensador, devido à pronúncia, escrever compõe uma amálgama entre crer e ver. E, observando com olhos incumbidos para a questão, até que faz sentido. Com a sua presença, a poesia de rua, o rap e o hip-hop nunca mais voltaram ao estado primitivo. E ainda bem. Caso contrário, o conformismo atacava outra vez.

No dia 19 de março, regressa a Portugal, ao Altice Arena, para celebrar a História do hip-hop tuga (bilhetes aqui). Falámos com o músico brasileiro sobre a sua carreira e sobre o seu ansiado regresso a Portugal.

Desde muito cedo que o ato de escrever traduz uma das suas paixões. Para o Gabriel, escrever significa ver a beleza que se crê existir quando uma janela está aberta ou abrir essa mesma janela para o mundo através da força das palavras?
Pode ser até uma espécie de terapia para abrir janelas onde não existem janelas. Estamos assim de paredes fechadas com as nossas emoções e as nossas angústias e escrever pode ser um processo de libertação pessoal e, dessa forma, abrir janelas para outras pessoas que vão identificar-se com aquilo. Através da música, do cinema, do teatro, do livro. O que eu faço tem muito sentimento. A gente faz músicas mais alegres e, de certa forma, elas são o outro lado da moeda. Por exemplo, o Solitário Surfista, porque a gente também tem necessidade de se rir e de falar de amizade, falar da festa, falar da vida, falar de algo bom. Contudo, assume o outro formato também: falar de um mundo que nos oprime de várias formas, de uma realidade que nos sufoca. A maior motivação para os que escrevem é a busca por uma libertação, por uma revolução pessoal, por uma consciência da nossa própria autonomia, da nossa força, das nossas atitudes, da liberdade de expressão, de não comprar as ideias que já vêm rotuladas e impostas. O hip-hop tem isso na sua essência. Quando a gente começou, não era mainstream. Era contracultura. Era romper com paradigmas. Era falar verdade. Era combater a hipocrisia. O hip-hop português tem isso, mais do que o americano e o brasileiro. Falar com a alma.

A mensagem e a poesia, numa canção, são instrumentos mutáveis pelo facto de estarem rodeadas de diferentes estilos e sonoridades. Que razão levou o Gabriel a querer fazer hip-hop e a querer ser parte integrante?
Sempre gostei de escrever, na escola. De criar, de trabalhar com as palavras, mesmo em criança, numas aulas de produção de texto, de redação. Sempre tive esse gosto. E também pela música. Desde a minha infância que oiço músicas de diferentes estilos e presto muita atenção à letra. Da música popular brasileira ao rock brasileiro (naquele período pós-ditadura militar) com algumas letras falando palavrão. Eu tinha 11 anos e já percebia que a música tinha muita força. Chamava-me à atenção. O Hip-hop veio daquele primeiro embrião que se formou, na época do Michael Jackson. Em 1984 saiu um filme chamado Beat Street na onda do break, do graffiti, do DJ e eu apaixonei-me por aquilo. Tinha 10 anos quando fiz as primeiras rimas. Aos 11, fiz umas cinco letras e falei que queria fazer música. Depois a ideia morreu um pouco e voltou por volta dos 16, 17 anos. Não é bem uma altura de decisão, aquilo cresceu em mim. Daí para a frente, eu tinha um sonho de gravar um disco e aos 18 fiz uma música que foi censurada. Fiz várias letras, procurei amigos que pudessem ter algum contacto no estúdio, numa bateria eletrónica. Eu só tinha a letra, antes de conseguir um instrumental de um disco de hip-hop americano. Pediram-me para cantar numa festa, facto que me ajudou a vencer a timidez. Não tinha o desejo de ficar famoso, muito pelo contrário. Simplesmente sentia uma urgência em falar daqueles temas. Tinha o desejo da comunicação. Até entrei para a faculdade, no curso de Comunicação, com o intuito de fazer Jornalismo, mas as coisas começaram a fluir: eu consegui o contrato para gravar o meu primeiro disco e desisti da faculdade. 

“A maior motivação para os que escrevem é a busca por uma libertação, por uma revolução pessoal, por uma consciência da nossa própria autonomia, da nossa força, das nossas atitudes, da liberdade de expressão, de não comprar as ideias que já vêm rotuladas e impostas.”

O estilo nasce no final dos anos 70, nos EUA, e ergue-se como um movimento artístico criado na rua. Contudo, existe um estereótipo que aponta no sentido de o misturar com a criminalidade e com a violência perpetrada por gangues. Em pleno século XXI, já é tempo de a população deixar essa aversão de lado e encerrar a questão com um cachimbo da Paz?
O rap teve uma grande polémica com o estilo gangster, no passado, como o caso dos N.W.A, que tinham letras que retratavam a realidade dos gangues e da violência, dos crimes. Muitas vezes eram crónicas na primeira pessoa, falando de alguém que foi por um caminho x ou y na vida. A gente vê no samba, por exemplo, que essas realidades são igualmente retratadas. As favelas, no funk. Isso não dá para varrer para debaixo do tapete. Algumas músicas acabam sendo polémicas e isso, principalmente no passado, suscitava uma reação das pessoas mais conservadoras, incomodadas com essa força das palavras que, no fundo, traziam o lugar da fala, como hoje se diz. A música também necessita de realizar esse percurso. Repara, falamos numa época em que não existia Internet. Quando comecei, não existiam redes sociais. E a música, nessa altura, tornava-se ainda mais importante porque era um dos caminhos de expressão livre para muita gente.

Que artistas moldaram e enformaram o seu gosto pessoal e de que forma contribuíram para a construir a personagem Gabriel o Pensador?
É uma mistura de muitas referências. Na chamada Música Popular Brasileira (MPB), a gente tem bons letristas do passado: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, etc. Eu compararia alguns deles ao grande Sérgio Godinho pois são grandes poetas, grandes letristas. Esses artistas eram ouvidos pela minha mãe e pelo meu pai quando passavam na rádio ou na TV. Depois, ali nos anos 80, contava com algumas bandas mais libertárias e com letras que falavam acerca da polícia e do sistema: era um rock com um conteúdo muito bom. Para mim, a banda Blitz também foi importante porque era uma coisa mais teatral, contava sempre uma história e tinham letras inovadoras. Antes da existência do Google Tradutor, eu já procurava entender as letras em inglês dos artistas com os quais me identificava. Eu gosto muito do Bob Marley, amo mesmo. E dos rappers que começaram a aparecer. Era tudo bem mais difícil. Às vezes, a gente conseguia um álbum dos Public Enemy, por exemplo, que vinha com as letras. Quando surgiu a MTV, tentava ver os videoclipes. Dentro do mundo do rap, as referências são muitas: gostava muito do KRS-One que tive a oportunidade de conhecer numa rádio em Nova Iorque, os Public Enemy que já citei por terem letras muito inteligentes e videoclipes extremamente bem produzidos, os N.W.A, o Ice-T chamavam muito a atenção. No samba, temos também o Cartola que, através de músicas simples, conseguia tocar nas pessoas. Temos o Raúl Seixas, do rock, que falava de fé: ele questionava o bem e o mal, as questões metafísicas e tal. As letras eram escritas com o Paulo Coelho, o escritor. Temos muita coisa interessante e essa mistura trouxe a minha paixão. O rap foi a linguagem que me tocou na veia. Eu não toco nenhum instrumento, para mim é mais pelo texto, pela rima e pela poesia. Nunca pensei cantar outro tipo de melodias. Apaixonei-me não só pelo rap, mas por toda a cultura Hip-hop: tentei aprender a dançar break, a usar o graffiti e a arte dos DJ’s, que é fascinante. Eu vi que fazia bem as letras de rap, prestava muita atenção no que eu escutava. Cada rapper tinha um flow diferente, as divisões eram diferentes. Mesmo em inglês, a gente consegue prestar atenção. O Tupac rimava diferente dos outros, por exemplo. A gente acabava por brincar com as palavras, em português, coisa que era rara. Eu não fui o primeiro, havia gente antes de mim, em São Paulo: Thaíde, Racionais MC’s, Mc Jack. Existiam meia dúzia de pessoas no Rio a tentar inovar, a tentar encontrar outros caminhos. E eu, quando cheguei à rádio e à TV, levei os meus amigos comigo. Eu queria mostrar que não estava sozinho e fiquei feliz com a evolução que teve e tem tido.

O primeiro álbum de estúdio está intitulado com o nome artístico e data de 1992. À altura, o Gabriel acabara de atingir a maioridade e já emitia juízos: da política à sociedade, da cultura ao serviço militar. Mas houve uma música censurada. Apeteceu-lhe “matar” o presidente?
Essa música é de 1992, eu tinha apenas 18 anos. A canção falava dos casos de corrupção no período de ditadura militar no Brasil, juntamente com a imprensa, tudo muito às claras. Eu já tinha outras letras prontas, mas essa foi a primeira que eu consegui gravar num estúdio modesto, fazendo um mix da fita. Aquilo foi parar a uma rádio do Rio, na altura importante. O radialista foi muito corajoso em colocar aquilo no ar e a música acabou sendo censurada. O governo ameaçou as rádios na altura dizendo que se colocassem a música a tocar atacariam cada rádio, com uma investigação fiscal. Funcionou essa censura. A música entrou diretamente no álbum, mas o projeto ainda demorou um pouco porque eu não tinha gravadora nem empresário. Tive que bater às portas das gravadoras e lembro-me de cantar a letra numa reunião porque não tinha beats nem demo. Então, eles fizeram uma proposta que consistia em gravar duas músicas em estúdio como um teste. Só em 1993 é que me chamaram para assinar um contrato e tive três meses para gravar o disco porque também foi nessa altura que congelei o curso de Comunicação na universidade. Tenho um carinho pela forma como tudo aconteceu, desbravando um pouco o caminho porque não existia aquele estilo de música no nosso meio e foi tudo muito espontâneo. Em Portugal, a música chega sem qualquer tipo de planeamento ou parecer da minha editora. Eu já estava a fazer shows no Brasil e a passar na rádio quando um radialista, no aeroporto, comprou um CD numa loja aqui no Rio sem saber o que era, achando graça ao nome. Ouviu, gostou e escolheu a música O Resto do Mundo para passar na Antena 3 e foi a primeira música que passou em Portugal. Podia ter sido diferente porque a Sony Music, por exemplo, podia pegar naquilo e distribuir, no embalo. Eu já tinha dois videoclipes gravados, mas aquilo não importava. Eles colocaram aquela letra que falava de um morador de rua e era uma coisa tipo Lado B porque a letra era triste e longa. Gostei muito que acontecesse dessa forma e, de certa forma, combina com o público português porque se renova constantemente. Eu tenho fãs mais antigos, mas também tenho fãs mais novos e isso é muito interessante. O povo português é muito autêntico, muito genuíno porque falava o que pensa. Não queria comparar com o povo brasileiro, mas, no mundo todo, as pessoas são facilmente usadas como massa de manobra no que toca aos gostos culturais e musicais, às trends, às modas. O português consegue escapar facilmente disso. Tem personalidade e protege-se mais disso. E o próprio rap tem que fazer por merecer isso. Esse facto inspira-me e motiva-me muito.

Em 1995, já era autor de dois álbuns, mas ainda era só o começo, como afirmou (e bem!). Para quem não conhece o álbum, existem duas particularidades que ressaltam ao campo de visão: a capa e o nome da sétima canção (FDP). O bebé estava a ouvir o sermão acerca do repúdio do machismo?
Aquele bebé sou eu, era uma foto minha. Quando eu encontrei aquilo, porque foi a minha avó que me deu, achei maravilhoso porque ela dizia que eu aprendi sozinho a ligar o aparelho de sons. Sempre gostei muito de música.

Essa foi uma das músicas lá de trás que falavam de temas que — hoje em dia — têm sido discutidos exaustivamente. Num trecho daquela música falava de agressão física contra mulheres. E estava a repudiar, claro. É um problema que é muito comum porque as pessoas não denunciam vizinhos, parentes e muitas outras pessoas que praticam esses atos. Verdade!

Ainda é só o começo (1995)

Segue-se o Quebra-Cabeça (1997) e o Gabriel não se cansa de politizar as (já) massas que o escutam. É um dos álbuns que catapulta o Gabriel para a ribalta. O álbum gere o aborto, a saúde pública, o desemprego e a droga com poucas pinças. Será que a denominação do trabalho respeitava o decifrar da canção “2345EMEIA78” e das mulheres que incluem a trama?
Até é uma pergunta interessante porque me deixou a pensar no nome do álbum. Não me lembro. Vou contar aqui em primeira mão para vocês, a gente ainda não divulgou muito isso em Portugal: este ano, o álbum celebra 25 anos e nós vamos fazer show com muitos músicos e vamos trazer músicas que nunca mais cantei como a Dança do Desempregado, por exemplo. Sem Saúde, talvez. Tenho programado muito o álbum porque daqui a pouco entramos em tournée. Mas agora não me lembro mesmo do porquê do nome Quebra-Cabeça.

Nádegas a Declarar (1999) era um desejo profundo para o milénio que se avizinhava? Que mundo era aquele em que a lua era um motel onde os deuses e deusas se beijavam e abraçavam no céu (Astronauta)?
Era um incomodo que na época eu sentia em relação a um exagero da valorização das dancinhas e da bundinha. Era uma coisa tão massificada e hoje não adianta mais lutar contra isso. Virou normalidade. Naquela época eu queria fazer uma crítica ao excesso de “bundalização da cultura” no Brasil e no Mundo. Não tenho nada contra, é normal. As cantoras, as danças, as coisas. Queria que as pessoas refletissem um pouco sobre o caminho que estávamos a trilhar. A música que eu fiz com a Fernanda Abreu (Nádegas a Declarar) falava um pouco disso. Mas sem radicalismos. A gente viu que tem espaço para tudo, para as pessoas curtirem a beleza do corpo e tudo mais. Não é um mal da sociedade, mas é uma coisa que tomou conta de tudo. Era uma forma de questionar isso, no bom sentido.

O nosso mundo não evolui, pelo contrário. Não nos entendemos, continuamos aí com ameaças de guerra e não conseguimos cuidar da manutenção da natureza e do planeta. Essa é uma das músicas que eu mais gosto de cantar porque realmente dá vontade de ir embora para o mundo da lua. Naquele momento em que a gente fala como seria bom morar em outro lugar e abandonar aqui o egoísmo, a ambição, o ódio. Ela tem um quê de oração, algo de transcendental. A gente sente a gravidade a diminuir quando toco ela no show. Adoro essa música.

“Acho que todos devemos ser humanistas. Devemos pensar no próximo.”

Quando dá um conselho a alguém, diz muitas vezes para a pessoa ser sempre ela, sem que seja sempre a mesma? Pergunto isto ao Gabriel porque tenho quase a certeza de que esta coisa do conformismo e a ausência de irritação da população brasileira o enraivece. Nota-se em cada música, apesar das suas particularidades…
Não sou muito de dar conselhos, mas as minhas músicas acabam tendo um pouco essa faceta de reflexão e que pode servir de inspiração. Essa é uma frase que não está nas músicas, mas que culminou no nome do álbum: Seja Você Mesmo, Mas Não Seja Sempre o Mesmo. sou, como artista e pessoa, uma pessoa muito inquieta e a gente reinventa-se. Quem não se permite mudar e não experimenta novos hobbies, novas vontades, sonhar, realizar ou não, sonhar, conseguir ou não, falhar, enfim, quem não muda um pouco está perdendo alguma coisa. Não ser sempre o mesmo nesse sentido. Mas é importante também que as pessoas sejam elas, saber quem são, ser honesto com o que se pensa e sente, não ir pelos outros. É bom ter uma consciência daquilo que somos, mas também é bom mudar de tempos a tempos. Descobrir-se e não se prender naquilo que enxergamos no espelho. É aí que os políticos fazem a festa. Os maus políticos. Eles não são os únicos vilões da nossa vida. Nós deixamos espaço para as pessoas de mau caráter e de má índole se aproveitarem quando nos acomodamos. Esse disco possui uma música chamada Ãh e fala disso mesmo: toda a gente fala ãh e ninguém fala diferente, ninguém quer pensar diferente e tal. Realmente, é uma característica minha porque desde sempre me incomodou esse estado de espírito. Já na música Retrato de um Playboy que retratava a alienação da minha geração e dos jovens.

Em Tás a Ver (Cavaleiro Andante, 2005) utiliza um sample de uma música de Sérgio Godinho (A vida é feita de pequenos nadas) e explora essa ideia através da escrita. Que comportamentos e problemas seriam evitados se a mensagem fosse entendida?
Olha, quanta coisa seria diferente… a sensação de gratidão pelo que temos, pela saúde, pela capacidade de disfrutar da natureza, dos afetos, dos encontros, das coisas que não têm preço. Nós, muitas vezes, somos escravos de desejos impostos que — no fundo — não são tão necessários quanto parecem. Existe pessoas que são infelizes e que já conquistaram algumas coisas que não conseguem dar valor àquilo, não conseguem disfrutar do seu tempo. O mundo seria bem diferente, não tenho dúvidas disso. Eu já viajei muito e tive oportunidade de ir a alguns lugares para surfar, por exemplo: esses lugares são isolados, as pessoas têm uma vida simples e pobre, mas plena. Isso existe, é possível!  Se nós tivéssemos a consciência que certas coisas que andam aí valem muito, era diferente. As pessoas cagam nisso. Não dão a menor importância.

“O patriotismo é muito usado por governantes de várias linhas, incluindo Adolf Hitler e não só, como uma forma de manipular o povo e de aceitarmos a coisa mais inaceitável que são as guerras.”

O lema do Brasil incide sobre a Ordem e o Progresso. Contudo, ao longo da carreira, o Gabriel tem visado os vícios (Sem Crise, 2012) de um país que parece colapsar, a cada passo. A educação e a instrução são os dois princípios basilares para que se consiga escrever sobre Linhas Tortas?
Tenho oportunidade de trabalhar com professores e educadores. A única esperança que tenho no futuro e no Brasil é quando eu estou com crianças e adolescentes que estão a aprender a expressarem-se e apresentam graves problemas nessa área. Hoje, infelizmente, esses problemas também penetraram a cultura de forma geral. A Cultura e a Educação são irmãs, para mim. A falta de investimento nas universidades públicas e na ciência é grave, por exemplo. E os mais velhos, que estão lutando para estudar e seguir as suas áreas, tem mais dificuldades que eu tinha antes. As coisas são difíceis e são como são. Mas o caminho é e tem de ser esse! É necessário, fundamental, basilar para a gente chegar a bom lugar!

(In)felizmente, a pandemia acicatou a sua personagem e trouxe-a — de novo — ao processo de criação. Gabriel, escutar a música Patriota Comunista e sentir indiferença é humanamente impossível face à crítica social associada. Sente-se patriota, comunista, humanista ou um bocadinho de cada?
Boa, boa. Às vezes, parece que me sinto um bocadinho anarquista, mas não estudei bem o termo para poder falar isso. Mas humanista, sim. Eu acho que sou humanista e, ao mesmo tempo, falo outras coisas ironicamente. Sou uma pessoa que sempre amou muito o país, apesar de, simultaneamente, falar na música Tás a Ver que nós somos muito ais semelhantes do que diferentes. Mesmo com culturas, religiões ou idiomas distintos, o ser humano tem mais coisas em comum do que se pensa. Adoro essa música, o Tás a Ver. Tenho muito apreço pelas coisas do Brasil. Mas esse termo é muito complicado de destrinçar, o patriotismo: ele é muito usado por governantes de várias linhas, incluindo Adolf Hitler e não só, como uma forma de manipular o povo e de aceitarmos a coisa mais inaceitável que são as guerras. Desde sempre, desde a gente conhecer a época anterior a Cristo e de ler que as guerras eram em nome do povo, em nome do rei, em nome de uma religião, em nome de uma nação, em nome de uma seita. Isso é uma loucura. Não entra na minha cabeça. Aqueles termos de diferentes linhas políticas — os “ismos” — passam ao meu lado. Eu não me digo nada disso que você perguntou. Não tenho rótulos para me definir. Acho que todos devemos ser humanistas. Devemos pensar no próximo.

Tendo em conta o último original e adentrando pela gestão da situação que assolou o mundo nos últimos dois anos, que mensagem destina à personagem do Capitão do Mato?
Ah, não sei… ele era a figura que caçava os escravos. E aí eu entro nessa metáfora de nós mesmos como escravos de tanta coisa e de tanta manipulação. Nós mesmos nos acorrentamos, no fim da letra eu acrescento isso. Porque nós também somos culpados a dar poder a quem nos tira a liberdade. Nunca foi nenhum presidente só e não acontece nos dias de hoje. Nós entregamos o poder de várias formas para forças que nos controlam. Nós não devemos dizer nada para o Capitão do Mato, nós devemos dizer para nós mesmos e dar conta disso.

O regresso a Portugal está marcado para dia 19 de março, no Altice Arena, em Lisboa. Para o Gabriel, o que representa estar em confluência com irmãos de profissão e de língua?
Para mim é um encontro que já tive o prazer de presenciar — quando foram ao Sambódromo — e que até me emocionei. A representação de uma história tão bonita e longa ali no palco. Foi como tu próprio disseste, é uma celebração, uma lembrança que levamos. Eu vou como se fosse a um aniversário de alguém, quero cantar os parabéns a todos os envolvidos. Aos que não cantam mais e que já cantaram, aos outros mais recentes que estão a passar e que ainda vão passar para essa estrada. Fiz parte disso porque aquela música tocou e também inspirou — não só o público, mas também os meios de comunicação — na época em que o rap português funcionava. Nós todos eramos garotos e também merecíamos ter o nosso espaço, as nossas gravações. Fiz parte disso, mas estou ali para celebrar o ritual português, mesmo como fã de tantas coisas que eu vejo, sendo bem feitas, com alma, com talento, com inteligência, com personalidade. O hip-hop tem uma marca única, usa palavras e construções que os brasileiros não usam e que os americanos também não usam. Tudo o que a gente sabe que a música pode fazer não só pelos que já são do meio, mas também para aqueles que ouvem rap e vários estilos musicais e que chegam proveniente dessa força. Poder refletir através do rap é muito importante. Acredito no poder da música de mudar o mundo, sim. De ajudar a mudar o mundo e o rap é das mais poderosas. Por isso, a gente tem que celebrar.

Que artistas portugueses mais admira no universo hip-hop? Considera que algum se assemelha a si no estilo e na maneira de fazer poesia?
Prefiro não entrar nessa linha de citar nomes. Eu quero conhecer cada vez mais. Estou com saudades de estar presente porque foram dois anos de ausência com esta pandemia. Já sinto falta de Portugal. No evento, sei que não vão estar muitos que deveriam estar porque é muita gente, muita gente boa, importante e significativa. Mas o evento serve para celebrar isso tudo. Sem exceção, todos são importantes na história do hip-hop tuga, cada um com o seu estilo e não vou citar um e outro. Quero conhecê-los cada vez melhor!

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