Entrevista. Gonçalo Câmara: “A minha vida são as palavras”
Gonçalo Câmara tem uma relação íntima com as fronteiras. Com 29 anos, consegue ver os 30 a aproximarem-se e desde 2015 que, todos os anos, ultrapassa fronteiras para viajar. Na poesia, ignora as fronteiras que existem entre a música e a literatura porque tudo se cruza. Apesar de não se considerar totalmente jornalista, Gonçalo vive dentro do Jornalismo, trabalha ao lado de redações, escreve artigos e prepara peça jornalísticas. É na rádio que estimula o seu “modo aberto” e que fala de livros e viagens.
Regra número um
Apesar de Gonçalo não se considerar jornalista, faz o trabalho de um e vive num ambiente jornalístico. Para este poeta-jornalista, a poesia não tem regras – “se bem que não haver regras já é uma regra”, aponta. Os poemas têm um grande espaço no dia-a-dia de Gonçalo (e é deles que está recheado o seu caderno castanho). Mas o que é poesia? Na opinião do radialista, “A poesia não se explica, pode ser o que tu quiseres.”
Os poemas que partilha nas redes sociais são maioritariamente escritos em viagem. É fora da vida que tem em Lisboa que mais se inspira. A poesia está em todo o lado na sua vida, por isso os poemas também o acompanham na rádio.
Futuro com todas as letras
“Porque é que vais para gestão se odeias matemática, Gonçalo?” Foi esta a pergunta que um amigo lhe colocou ao terminar o secundário em ciências socioeconómicas. Havia ali um fundo de verdade e Gonçalo Câmara decide que o seu futuro era junto das letras.
Damos um salto no tempo, passando pelo curso de Comunicação Social, na Universidade Católica de Lisboa, pelo estágio na Cidade FM, onde aprendeu muito do ofício de fazer rádio, e chegamos ao momento em que Gonçalo se torna autor publicado. Na sequência de um projeto que incluía sátira social no Facebook – Os Magos do Social – Gonçalo decide fechar esse capítulo ao compilar as suas crónicas em livro. Surge assim, em 2013, o “Já Dizia o Outro: Não conheço, mas sei quem é”, da Editorial Minerva.
Poesia radiofónica
Gonçalo foi crescendo e transferiu-se da Cidade FM para a Smooth FM. É aí que, todas as manhãs, ajuda as pessoas a acordar. Também é nesse espaço da rádio que aproveita para declamar alguns poemas, seus ou de outros poetas portugueses. O que ao princípio pode parecer estranho acaba por combinar muito bem com o tipo de música da estação de rádio: jazz, soul, blues e alguma bossa nova. As pessoas já se habituaram a ouvir um poema entre músicas e parecem gostar muito – o que é uma grande recompensa para Gonçalo. Estes não são poemas ditos normais. Gonçalo tem noção de que o ouvinte pode não querer ouvir um poema extenso, por isso a estratégia que adotou veio de uma influência de Ricardo Araújo Pereira. O comediante foi um dos convidados do podcast de Gonçalo e de Nelson Nunes – o “Ainda há quem queira escrever” – e falou de uma forma de poesia japonesa: os haikus. Estes são poemas curto. Sendo quase um microconto, “podes contar toda uma história em 3 linhas e esse é o desafio”, explica Gonçalo.
Também na M80, aproveita para falar de literatura. Aos fins-de-semana, em cerca de minuto e meio, dá a conhecer dois livros aos ouvintes, numa rubrica chamada “Livro de Bolso”. Mas não só de literatura se faz um homem. A vida de Gonçalo tem um lugar especial para os livros, mas também para as viagens. Na M80, mantém outro espaço ao fim de semana, o Diário de Bordo, que faz da rádio o elo entre o ouvinte e um novo destino.
Conhecendo o sentido de aventura e sede por conhecimento de Gonçalo, os livros não vão acabar nem o diário de bordo vai ficar cheio.
Modo semi-aberto
Para Gonçalo, as viagens servem para disfrutar e para se inspirar, já que é mais fácil inspirar-se nas viagens. Saindo do que chama “piloto automático”, a cabeça está mais aberta a estímulos. Para explicar isto, Gonçalo chama para a conversa um dos elementos dos Monty Pyton, um grupo de humor inglês, o John Cleese. Ao falar de inspiração, John dizia que as pessoas atuam em dois modos – o aberto e o fechado – e que as ideias ocorrem mais em modo aberto.
A profissão de Gonçalo permite-o viver muito mais em modo aberto. Mas como nenhum ser humano pode viver sempre em modo aberto, Gonçalo vive em modo semi-aberto: “para fazer corrente de ar.”
Escapadela anual
Há cinco anos, Gonçalo decidiu fazer uma grande viagem anualmente. Em 2015, foi para o Sri Lanka. Nos anos seguintes, fez a Rota da Seda, perto do berço da civilização, aventurou-se na Patagónia e conheceu a China. Este ano, foi até à Colômbia e planeia uma viagem curta a Nova Iorque. O destino de 2020 pode vir a ser Myanmar.
Deixou-se deslumbrar pelos desertos, desafiou-se a subir várias montanhas e conheceu muitas pessoas. Naturalmente, tem histórias sobre todos os lugares a que foi, mas uma das mais poderosas é também uma das mais recentes. Há cerca de um mês, na Colômbia, ganhou um respeito ainda maior do que já tinha pelo destino – mesmo não sabendo se acredita nele.
Velho Na Estante
Se perguntarmos a Gonçalo que três livros o marcaram recentemente, ele responde: “Cartas a Aguirre”, de Gonzalo Arango, um livro com as cartas que Gonzalo Arango escreveu nos anos 50 ao seu editor; “A louca da casa”, de Rosa Montero, um livro que “Não é um romance nem uma biografia nem um ensaio: é tudo ao mesmo tempo.”; e por fim “A morte de Ivan Ilitch”, de Lev Tolstoi.
Os primeiros dois vieram de viagens, já que quando parte para um novo destino gosta de ler algo de um autor nativo ou sobre o local. No que toca ao último livro, este brevíssimo livro de Tolstoi ganhou um significado grande algum tempo após o ter lido. “Mal abres o livro, deparas-te com a morte.” Gonçalo ainda sonha com estar dentro de um autocarro na Colômbia, à espera de arrancar, quando um o senhor que o aborda diz que o seu autocarro era o de trás. O episódio marcante é o que se seguiria: passadas duas horas, veria o autocarro onde estava sentado, que era o errado, a despistar-se. “Hoje em dia, estava morto ou estava num hospital.” Aquele não era o dia do seu fim. Aí ganhou uma vontade de viver, de não perder tempo e fazer o melhor que se pode.
Já tinha lido este livro de Tolstoi e talvez por isso este episódio tenha ganhado todo um sabor especial. “É um livro sobre o fim, a finitude. É um livro que diz bastante porque é importante termos essa consciência de que há um fim e se vivermos com essa consciência as coisas tornam-se mais digeríveis. A pergunta do que andamos aqui a fazer resume-se neste livro. A resposta não é certa, mas que isto acaba, acaba.”
Escrever e falar
Se há algo que liga a rádio e a escrita são as palavras. Para Gonçalo, as palavras sempre tiveram um lugar privilegiado. Desde miúdo que gostava de contar histórias: “Eu era um mentiroso do pior. Fartava-me de mentir e exagerar. Se tinha marcado dois golos, dizia que tinham sido sete. Eu metia IVA nas histórias. Gostava de perceber a reação das pessoas à história que eu estava a contar.”
Foi na rádio onde pode fazer das palavras – não das mentiras – vida. Rodeado de palavras, tem desenvolvido a sua veia poética, mesmo gostando imenso de escrever crónicas.
Gonçalo tem em mente um novo livro sobre a sua experiência em viagem – “o Homem que não enviava cartas”. Mas como não quer apressar-se para escrever um romance, as viagens ninguém lhe tira e acha que precisa de ler mais, o livro vai ficar a maturar uns tempos.
Podes ouvir a entrevista completa no programa “Ponto Final, Parágrafo, da ESCS FM, em parceria com a Comunidade Cultura e Arte, e ficar a saber mais detalhes sobre o percurso de Gonçalo Câmara e ouvi-lo declamar alguns poemas dele em:
Gonçalo tem como modelo Alexandre O´Neill. Este poeta português era ousado nalguns dos seus poemas e “O que lhe interessava era tudo menos o que os outros achavam.” No poema “Bom e Expressivo”, Alexandre O’Neill escrevia, “(…) também da rima «em cheio» poderás tirar partido,/ que a regra é não haver regra,/ a não ser a de cada um”.
Gonçalo Câmara segue as suas próprias regras e veremos até onde é que isso o vai levar.
O Ponto Final, Parágrafo é um programa da ESCS FM, rádio da Escola Superior de Comunicação Social, feito em parceria com a Comunidade Cultura e Arte.