Entrevista. Grande parte da obra de Luiz Pacheco, sobretudo diários, está ainda por descobrir
O escritor, editor e crítico Luiz Pacheco, que morreu há 15 anos, escreveu muito e publicou pouco, deixando “todo um continente” ainda por descobrir, maioritariamente diários, que estão por estudar, transcrever e publicar, revela António Cândido Franco.
Autor de “O firmamento é negro e não azul. A vida de Luiz Pacheco”, biografia que será publicada no dia 12 pela Quetzal, António Cândido Franco, que estuda a obra e a vida deste escritor desde a adolescência, contou à Lusa ter ficado surpreendido com a quantidade de diários que descobriu existirem e que se encontram na posse da família.
Aliás, esse foi o principal obstáculo que encontrou durante as pesquisas para a elaboração da biografia: “A dificuldade de acesso a muitos materiais”.
“Pacheco foi um escritor que escreveu muito e, pode-se dizer, que publicou muito pouco, portanto é todo um continente que está ainda por descobrir. Pode parecer algo de surpreendente mas é verdade, infelizmente, penso eu, mas também não me quero pronunciar sobre esse assunto, esses materiais não são públicos, estão na posse da família”.
O facto de grande parte do espólio de Luiz Pacheco estar com a família “não facilita a investigação” e há todo um trabalho a fazer com esse espólio “para nós podermos no futuro vir a ter uma obra efetiva que não existe”.
“O que existe neste momento, de Luiz Pacheco, são apenas dispersos que ele foi publicando aqui ou ali, digamos que grande parte da obra, a epistolografia, as cartas, os diários, os cadernos, tudo isso está por publicar, inclusive contos. Há muito material que neste momento é desconhecido”, afirmou o também professor universitário, especialista em literatura e cultura portuguesas.
Ainda assim, António Cândido Franco teve acesso a muitos materiais inéditos de Luiz Pacheco, aos quais recorreu para a biografia, mas tem “consciência de que o icebergue é muito mais profundo e muito mais largo” do que as possibilidades que teve de poder fazer este trabalho.
Foi também neste contexto que teve a surpresa de descobrir “a importância enorme” que o diário tem na literatura de Luiz Pacheco, alguém que até então via sobretudo como “um critico literário de grande importância, com uma teoria própria” e que ficou muito conhecido como tal, principalmente com os artigos que escreveu para o Diário Popular, nomeadamente os primeiros textos de José Saramago, quando saiu o “Levantado do chão”.
“Foi ele que descobriu vários escritores na década de 1960 e 1970, foi um crítico de grande importância, toda a gente o reconhecia. Depois havia a dimensão do narrador, mas de facto o diário era uma coisa mal conhecida”.
Há uma publicação de 2005, ano em que Luiz Pacheco fez 80 anos, “Diário remendado”, editado pela Dom Quixote, “um livro extraordinário que deu a conhecer a faceta diarística da literatura de Luiz Pacheco”, mas que abarca apenas o arco temporal de 1971 a 1974, “um período muito curto” da sua vida.
“À medida que fui consultando os materiais inéditos que estão na Biblioteca Nacional e que estão com a família — que, tenho de ser sincero, consultei-os, mas há muito para consultar junto da família —, apercebi-me que o diário, afinal de contas, ocupa muitos e muitos anos na vida do Pacheco e que esse diário está todo por publicar e até por estudar”.
António Cândido Franco destaca que todo esse trabalho tem de ser estudado e transcrito, porque quase sempre está escrito à mão e por vezes numa caligrafia difícil.
“O diário ocupa na literatura dele uma dimensão gigantesca, ele nunca deixou de escrever, nunca, e durante perto de 40 anos o Pacheco mantém o diário. Nós conhecemos três ou quatro anos, isto para mim foi uma surpresa muito grande”.
Descrito pelo biógrafo como um “grande e exemplar drama humano”, Luiz Pacheco teve uma vida que foi uma sucessão de “dramas muito vivos” e aos quais ele se entregou: a relação com o pai, a relação depois com a família, com a mulher, a relação com o trabalho, a relação com o Estado Novo, a relação com o meio literário, com a crítica literária, com o jornalismo e com o alcoolismo.
“Foi um homem de confronto permanente com estas instituições e que, de alguma maneira, o isolaram profundamente em relação a tudo, ele acabou por ficar sozinho, ser uma espécie de franco-atirador contra tudo aquilo que estava à sua volta, foi um caso absolutamente singular e solitário, mas isso acabou por ser vivido com um preço e um preço muito alto que foi o sofrimento”.
Foi essa imagem de drama de vida que António Cândido Franco viu em 1972, quando o encontrou pela primeira vez, na feira do livro de Lisboa, “um escritor que estava praticamente nu, roto, esfomeado, cadavérico e a apresentar o seu livro, a levantar o braço para se ir embora, porque era incapaz de dizer duas ou três palavras, provavelmente alcoolizado”.
No entanto, sublinha o facto “exemplar” de Luiz Pacheco ter tido 20 anos de alcoolismo profundo, “um estado quase comatoso permanente”, e ter conseguido sair.
“Vai ao inferno e sai do inferno”, são raros os casos em que isto acontece, considera, afirmando que a partir de 1990 Luiz Pacheco manteve-se sóbrio.