Entrevista. Inês Lemos Fernandes: “Não está a ser cumprido o número mínimo de horas para a Educação Sexual nas escolas”
(A presente entrevista foi cedida à Comunidade Cultura e Arte no âmbito da parceria com a ANEM, em Setembro de 2022. Na altura, Inês Lemos Fernandes era a Directora de Saúde Sexual e Reprodutiva da associação. Cessou as suas funções dia 18 de Dezembro.)
Inês Lemos Fernandes foi Directora de Saúde Sexual e Reprodutiva da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM). À Comunidade Cultura e Arte (CCA) referiu que são poucas as escolas que cumprem a legislação com rigor, no que concerne ao ensino da Educação Sexual, e que urge aumentar o número de horas da disciplina de acordo com a legislação. Além disso, há que apostar na formação de professores, uma vez que o ensino está muito dependente, também, de ONG’s e falta a formação de professores da área. A CCA já tinha feito menção ao manual sobre sexualidade [recorda aqui esta notícia e acede ao manual] realizado e disponibilizado gratuitamente pela ANEM. Com Inês Lemos Fernandes falámos destes temas, como a sexualidade acaba por ser muito mais abrangente do que reprodução e como, por isso mesmo, as aulas de ciências naturais, só por si, serão insuficientes para colmatar as falhas que uma disciplina de Educação Sexual poderá colmatar. Segundo afirma, “verificamos que há uma abordagem satisfatória no que toca a infecções sexualmente transmissíveis e, talvez, a contracepção, mas quando chegamos a alguns temas, nomeadamente, sobre identidade de género ou interrupção voluntária da gravidez, por exemplo, acaba por haver uma falha na abordagem do currículo. Assim como acontece relativamente à abordagem dos afectos, da gravidez na adolescência ou de violência no namoro. Todos estes tópicos são importantes porque, acima de tudo, a Educação Sexual tem de ser compreensiva, global e tem de incluir um pouco de todos estes tópicos para empoderar, devidamente, os jovens a experienciarem a sua sexualidade”, diz.
Uma coisa curiosa do vosso manual é a inclusão da comunidade LGBTQIA+ e abordam, também, as questões de género. Consideram que é algo que necessita de maior atenção na questão da Educação Sexual?
Acho que sim. Portugal é um país que está, relativamente, bem em termos de legislação para a população LGBTQIA+, nomeadamente no panorama europeu. Mas a verdade é que é um tema que ainda falta explorar. É uma população que ainda não acede aos cuidados de saúde, ou que evita aceder aos cuidados de saúde e expor a sua orientação, mesmo que seja relevante para o diagnóstico ou para a situação médica que os levou a procurar os cuidados de saúde. Acho que sim. Acho que uma boa forma de combater esta inacessibilidade esta evitação dos cuidados de saúde passa por trazer o tema da comunidade LGBTQIA+, portanto daí estar contemplada no nosso manual.
O manual está disponível gratuitamente e qualquer pessoa pode aceder.
Neste momento, a Educação Sexual em Portugal, de acordo com a legislação que já existe desde 2009, está dependente de professores ou de ONG’S. A verdade, portanto, é que falta alguma formação, nomeadamente na parte dos professores — porque as ONG’s até acabam por ter bastante formação na área e bastante competência — mas o objectivo da disponibilização global do manual é que possa servir de recurso para professores que queiram implementar a educação sexual nas suas próprias escolas de uma forma mais informada ou até para que o jovem ou qualquer pessoa possa aceder a informação porque a informação acaba, sempre, por ser importante. Talvez um bocadinho ainda mais na área da sexualidade e, então, ter esta informação disponível e acessível de forma gratuita é extremamente importante.
“Acho que é mesmo importante que existam orientações mais claras para as escolas e para os professores. É importante reforçar a carga horária e ter a certeza de que há um cumprimento daquilo que é proposto por lei e, idealmente, aumentar um pouco a carga horária para o primeiro e segundo ciclo, porque ainda estamos abaixo do que são as recomendações internacionais.”
Inês Lemos Fernandes
Uma advertência que vocês fazem é que no nosso ensino são poucas as escolas que cumprem com a legislação com todo o rigor. Queres falar sobre a importância da Educação Sexual e porque é que uma disciplina com esse nome acaba por ser diferente do que falar só sobre reprodução a ciências naturais?
A verdade é que houve um relatório feito em 2019 — um relatório do acompanhamento e avaliação da implementação da lei — e este relatório revelou várias coisas que acabam por ser preocupantes: não existe o número de horas que é sugerido na legislação — a legislação, neste momento, sugere seis horas para o primeiro ciclo e segundo ciclo e doze para o terceiro ciclo e secundário — e, na verdade, o que relatório demonstra é que estes mínimos não estão a ser cumpridos. Não está a ser cumprido o número mínimo de horas para a Educação Sexual nas escolas. Depois, verificamos que há uma abordagem satisfatória no que toca a infecções sexualmente transmissíveis e, talvez, a contracepção, mas quando chegamos a alguns temas, nomeadamente, sobre identidade de género ou interrupção voluntária da gravidez, por exemplo, acaba por haver uma falha na abordagem do currículo. Assim como acontece relativamente à abordagem dos afectos, da gravidez na adolescência ou de violência no namoro. Todos estes tópicos são importantes porque, acima de tudo, a Educação Sexual tem de ser compreensiva, global e tem de incluir um pouco de todos estes tópicos para empoderar, devidamente, os jovens a experienciarem a sua sexualidade e, a sexualidade, também passa por uma vivência relacional saudável. Quando falamos, portanto, em incumprimento falamos de vários aspectos, nomeadamente a questão horária mas, também, a questão dos temas.
Mas a Educação Sexual poderia trazer um bom complemento à educação dos afectos, certo? Principalmente quando se fala, ainda, de um alto índice de violência no namoro, por exemplo.
Portugal é um país com uma taxa de violência em relações de intimidade relativamente alta — portanto, violência no namoro, violência doméstica. A Educação Sexual, portanto, também ajuda a prevenir isto, falar de afectos também é falar de Educação Sexual. Nós temos tendência a pensar na Educação Sexual como uma coisa muito direccionada para as infecções e para a prevenção da gravidez não desejada mas, a verdade, é que a Educação Sexual é muito mais do que isto: a Educação Sexual fala de Direitos Humanos, de autoconhecimeto e empoderamento, porque uma pessoa não pode tomar decisões conscientes se não souber as opções que tem ao seu dispor. Nós só podemos escolher a melhor opção se soubermos todas as opções que existem. É isto que faz a Educação Sexual, dá as opções, explica quais são os benefícios e os riscos de cada uma e, então, empodera as pessoas para poderem tomar a melhor decisão.
Nem todas as pessoas se desenvolvem ao mesmo ritmo ou da mesma forma. Nesse contexto, cada organismo é um organismo. A Educação Sexual poderia elucidar, ou levar a uma melhor compreensão face a isso?
Uma coisa muito importante na Educação Sexual, nomeadamente se olharmos para aquilo que são as guidelines internacionais propostas por organizações como, por exemplo, a Unesco, é que ela deve ser incrementada. Ou seja, não devemos pensar na Educação Sexual como igual para todas as idades, nós temos de ter atenção para que ela seja adaptada ao nosso público-alvo, à fase de desenvolvimento do público-alvo, e ao longo do tempo vamos aumentando a complexidade dos temas abordados, portanto, não vamos começar logo com um tema extremamente complexo numa idade precoce. Por exemplo a nossa legislação defende que comecemos a educação sexual no primeiro ano, não vamos começar no primeiro ano a trabalhar os temas mais complexos, mas se calhar vamos começar a trabalhar por exemplo as estruturas familiares, no primeiro ciclo, para depois podermos evoluir e falarmos de outras coisas como, por exemplo, contextos de violência em fases mais posteriores da educação sexual destes jovens.
“A sexualidade é algo que construímos ao longo da nossa vida e que está, constantemente, em construção, na vivência de novos pormenores e pequenas descobertas. A sexualidade é, portanto, uma construção, diria, que se estende quase ao longo de toda a vida.”
Inês Lemos Fernandes
Vemos, por exemplo, como há uma enorme discussão em torno das aulas de Cidadania. Achas que o facto da Educação Sexual ainda não estar a ser implementada como deveria poderá ter a ver com alguma resistência, também?
Não temos dados suficientes para tecermos esse tipo de conclusões. Não existem dados que nos digam que não está a ser incrementado nas escolas pela resistência popular que temos vindo a testemunhar. Mas a verdade é que, provavelmente, a falta de formação dos docentes acaba por ser, em parte, um entrave à aplicação da Educação Sexual porque, não havendo conhecimento (eu também me sentiria desconfortável a tentar passar informação que eu própria não detenho), torna-se mais difícil. Depois, a legislação defende tantas coisas interessantes que até se pode pôr em paralelo com o que são as recomendações internacionais, nomeadamente o envolvimento dos encarregados de educação e o envolvimento dos alunos na preparação destes projectos. Há escolas que conseguem fazer isso, mas há escolas que não porque não têm os recursos e os espaços. Acaba, então, por ser difícil transportar a legislação para a realidade, pela falta de meios. Mas se é por resistência social ou não, é difícil estabelecer esse tipo de conclusões.
Mas como é que se poderia ultrapassar o problema da formação dos professores?
Já existiu, no passado, um investimento, nomeadamente com a APF, que é a Associação do Planeamento Familiar e, ainda hoje, tem um programa de formação de professores. Acaba por ser uma oportunidade muito interessante, aliás, é um investimento importante, também, a longo prazo. A formação dos professores é sempre indispensável e parte do Ministério ter iniciativa para colmatar este problema.
Abordaste a forma adaptada como os conteúdos devem ser dados consoante a idade dos alunos. Não haverá, portanto, nenhum problema em falar destes assuntos com crianças, desde que seja de forma adaptada, claro.
Estamos aqui a falar desde o primeiro ano porque é a realidade que nós temos na nossa legislação. Mas a verdade é que a experiência que temos da sexualidade, da nossa própria sexualidade, o nosso próprio autoconhecimento, começa muito mais cedo do que isso. Ter uma disciplina, ter um momento onde isto seja abordado, especificamente, faz, de facto sentido que seja a partir do primeiro ano. A verdade, porém, é que desde antes que as crianças estão a explorar a sua sexualidade. Não existe, portanto, uma idade mínima para falar destes temas porque as crianças são curiosas e vão trazer perguntas. É bom, portanto, ter um espaço onde vão obter estas informações de uma forma fidedigna e segura, que providencie fontes baseadas em informação científica e em informação adequada.
“A Educação Sexual deve estar sempre relacionada com a cultura sem nunca descurar as informações que nós temos como verdadeiras e sem nunca descurar o que são os direitos humanos e que está provado como certo.”
Inês Lemos Fernandes
Podes explicar a abrangência da palavra sexualidade e tudo o que acaba por englobar?
Quando estamos a falar de sexualidade, se pensarmos num contexto de saúde sexual, muitas vezes estamos a pensar em contextos de doença, de patologia, mas quando falamos de sexualidade não estamos a falar só da ausência deste tipo de doenças, estamos a falar, também, de bem-estar físico, emocional e mental. Isto é tudo muito importante para o que a Organização Mundial de Saúde define como conceito de saúde, portanto, é um contexto muito holístico e que engloba, também, a saúde mental. Ter uma boa experiência da nossa sexualidade é extremamente importante para termos uma boa vivência da nossa saúde enquanto conceito global. A sexualidade, depois, vai muito para além daquilo que pensamos imediatamente: uma gravidez, uma infecção sexualmente transmissível e relações sexuais. Vai ao nível dos direitos humanos, de liberdade e da dignidade. Voltamos a falar, um bocadinho, da questão de só podermos escolher se soubermos quais é que são as opções. Nós só vamos, portanto, saber identificar um caso de violência na nossa relação íntima, se soubermos que isso pode acontecer. Nós só vamos poder dizer que queremos recorrer a métodos contraceptivos, se soubermos que eles existem. Tudo isto é muito importante desde que temos capacidade para lidarmos com esse tipo de informação e, isso, está muito bem orientado na nossa legislação, que sugere que temas é que são apropriados para cada idade. É muito importante abordar estes temas para que as pessoas tenham informação para escolher, devidamente, e possam viver a sua sexualidade em pleno.
Focaste a contracção e há estudos que afirmam que metade dos adolescentes portugueses dispensava o uso do preservativo.
Houve dois estudos comparativos, um de 2008 e outro de 2018, que compararam qual era o nível de educação sexual dos jovens portugueses. Um facto preocupante que este estudo encontrou é que estamos a assistir a um uso menos consistente do preservativo e que os jovens, apesar de terem um conhecimento maior em relação a questões mais vastas de sexualidade, no que toca a contracepção, no que toca a infecções e no que toca ao uso de preservativo, estamos a ver resultados piores do que em 2008. Não faz sentido num país como o nosso, que tem uma legislação de Educação Sexual bastante consistente, que estejamos a assistir a estes retrocessos porque nós sabemos que a Educação Sexual está relacionada com um aumento do uso do preservativo, da diminuição das gravidezes indesejadas, da diminuição do número de parceiros sexuais e a um atraso na vida sexual. Então, se nós temos a legislação para assegurar esta educação sexual, porque é que estamos a ter piores resultados em comparação a 2008, que foi antes da implementação da legislação?
Focaste como cada um de nós tem direito à sua sexualidade. Mas também podemos falar sob este prisma. É algo a que temos direito ao longo da nossa vida, não se cinge só à juventude.
Sim, concordo a 100%. A sexualidade é algo que construímos ao longo da nossa vida e que está, constantemente, em construção, na vivência de novos pormenores e pequenas descobertas. A sexualidade é, portanto, uma construção, diria, que se estende quase ao longo de toda a vida. É importante, portanto, que a Educação Sexual seja, sempre, para toda a gente e não esteja restrita a grupos como os jovens. Claro que em termos de investimento e em termos de retorno, os jovens acabam por ser uma população particularmente interessante para abordar, porque é fácil aborda-los em contexto escolar, porque são eles que ainda estão no início da exploração e que vão ter, se calhar, um conhecimento mais exclusivo sobre a sua própria sexualidade. É nos jovens, além disso, que encontramos a maior taxa de infecções sexualmente transmissíveis. É uma faixa etária muito importante para abordar, acessível, mas isso não descura que a sexualidade possa ser abordada em todas as faixas etárias.
Nós vivemos numa sociedade muito virada para a imagem e a própria indústria pode ajudar a criar uma ideia da sexualidade que poderá não corresponder à realidade. Qual é a tua posição sobre isto?
Existe uma quantidade enorme de informação disponível para os jovens e que isso pode, muitas vezes, ser um factor de confusão. Mas a verdade é que dando fontes fidedignas e dando uma Educação Sexual consistente podemos contrariar, um bocado, estas fontes menos seguras e menos fidedignas. Isso é um factor ainda mais a favor da Educação Sexual porque esta permite uma vivência mais informada, mais autónoma e mais responsável da sexualidade. Acaba, portanto, por ser importante para combater esta exposição a fontes menos seguras e, se calhar, menos certas.
Podes falar sobre a importância da cultura para a forma como encaramos a nossa própria sexualidade?
É impossível dissociar a sexualidade da cultura, tanto que todas as guidelines que defendem a inclusão da Educação Sexual e que falam como esta deve ser feita dizem que nunca deve ser dissociada da cultura. Isto porque são contextos super interligados e, portanto, devem ser sempre postas em paralelo. A Educação Sexual deve estar sempre relacionada com a cultura sem nunca descurar as informações que nós temos como verdadeiras e sem nunca descurar o que são os direitos humanos e que está provado como certo.
O que é que ainda falta fazer quanto à Educação Sexual, a teu ver?
Acho que é mesmo importante que existam orientações mais claras para as escolas e para os professores. É importante reforçar a carga horária e ter a certeza de que há um cumprimento daquilo que é proposto por lei e, idealmente, aumentar um pouco a carga horária para o primeiro e segundo ciclo, porque ainda estamos abaixo do que são as recomendações internacionais. É importante investir na formação de docentes e não esquecer que a Educação Sexual também evolui para os temas da identidade de género e da violência e que estes temas precisam de ser abordados e não podem ser deixados de fora. Acho que é basicamente isto.
Se calhar, nas escolas, a percepção dos miúdos muda logo se for alguém especializado em ensinar e lidar com jovens, do que se for, apenas, uma equipa de enfermagem, de bata branca, de seis em seis meses, dar uma palestra.
É uma pergunta difícil, mas claro que sim. Os professores são formados em educação, saberão as estratégias adequadas às diferentes faixas etárias. Se conseguirmos, portanto, complementar essa informação com terem informação sobre o que é a sexualidade, então acho que teríamos um conjunto perfeito para entregar as melhores estratégias de Educação Sexual às crianças e a todos os jovens.