Entrevista. Isabel Stilwell: “Gosto sempre de ler os documentos originais. Aquilo que às vezes o historiador releva não é o mesmo que um romancista histórico releva”
Jornalista e escritora, Isabel Stilwell transforma manuscritos em histórias — e ganha prémios ao fazê-lo. Da documentação sobre os reinados, sobre pessoas que vieram antes de nós, escreve relatos encantadores sobre as suas vidas. Há 17 anos, estreou-se na escrita de romances históricos com «Filipa de Lencastre» e conta já com 12 romances sobre dez grandes rainhas e dois reis. Tem mais de 350 mil livros vendidos, quatro traduzidos para inglês, um publicado no Brasil e outro em Espanha.
Agora, traz-nos a história de Leonor Teles, num livro agora publicado pela Editora Planeta, “Leonor Teles – A rainha que desafiou um reino”. Leonor, mulher de Fernando I, o último rei da Primeira Dinastia portuguesa, uma mulher que foi maltratada pela História, que a apelidou como “Aleivosa”. Este retrato é traçado por Isabel Stilwell, entre guerras com Castela, intrigas e conspirações familiares.
Numa conversa ao vivo no Mosteiro de Leça do Balio, a convite da Fundação Livraria Lello, a autora revela que Leonor Teles foi «uma mulher à frente do seu tempo», que foi das primeiras rainhas que souberam ler e escrever, o que fará uma grande diferença naquilo que ela é — e naquilo que ela se sente capaz de ser. Isabel Stilwell revela-nos o interesse nesta personagem e explora o seu método, que passa por ler os documentos originais.
Magda Cruz: A história de Leonor Teles começa há mais de 700 anos. Sabemos que Leonor foi uma mulher maltratada pela História e vamos falar sobre isso. Mas há muitas diferenças entre a vida de então e a de agora? Leonor Teles podia ser uma de nós? O que é que esta história tem de contemporâneo?
Isabel Stilwell: Se há uma coisa que eu percebi, ao longo da história, é que a essência humana é a mesma. A Leonor deste século ou a Leonor de hoje, intrinsecamente, é a mesma pessoa. É uma mulher. O que acontece é que, obviamente, as emoções, as ideias, são todas modeladas pela cultura em que se está inserido. Leonor não era uma mulher do século XXI, no sentido em que tinha crescido e tinha de obedecer à cultura em que estava inserida.
MC: Mas podemos dizer que era uma mulher além do seu tempo, à frente do seu tempo?
IS: Eu acho que ela foi. E a explicação deste «além do seu tempo» às vezes parece «ai, caiu aos trambolhões do céu». Não. O que aconteceu a Leonor foi que, além de ter tido logo uma infância muito conturbada, com um pai assassinado a mando do Rei de Castela, ter tido, portanto, até aos dez anos, uma experiência de vida que mostrou os bastidores da corte e os bastidores da política, por assim dizer, não de uma forma cor-de-rosa, mas de uma forma bastante dura. Isso endurece de certeza. Mas além disso, ela existe num momento particular. Portugal tinha tido a Grande Peste Negra, a Grande Pestilência. Tinha tido, por isso, uma grande quebra da mão de obra e isso fez com que as mulheres subissem, nomeadamente nas famílias nobres, a um ponto em que não estavam antes disso. Ou seja, Leonor é adotada, por assim dizer, por uma tia, Guiomar Lopes Pacheco. E essa tia vai educar Leonor porque essa própria Guiomar vai assumir papéis de gestão que, uma geração antes, seriam de homens.
MC: Ela chega-se à frente.
IS: E a filha dela chega-se ainda mais à frente. Sabemos que Leonor é das primeiras rainhas que sabem ler e escrever, e escrever com fluência.
MC: É um dado importante.
IS: É um dado importante. É uma mulher que em criança e adolescência, sabemos que leu muito. Portanto, isso já vai fazer uma grande diferença naquilo que ela é — e naquilo que ela se sente capaz de ser.
MC: É daí que vem o interesse nesta pessoa? Gostava de perceber o que é que a interessou nesta personagem. E por isso perguntava-lhe que adjetivos definem Leonor Teles. O que tem de irreverente esta rainha?
IS: Leonor tem ambição e tem determinação. Não tem só qualidades. Tem também defeitos. Mas é sobretudo uma pessoa que soube lutar por aquilo que queria. Este vai ser um reinado em que… Porque o que aconteceu — e temos sempre de ir a Fernão Lopes porque temos a História contada por Fernão Lopes e Fernão Lopes… Quem manda é quem passa o cheque. Ele escreve muito, muito, muito bem. Escreve extraordinariamente bem. E ele já sabe o fim da história. É um romancista histórico, nesse sentido. Portanto, ele sabe levar-nos desde a primeira linha e conduzir-nos até ao final: ela é a aleivosa e a filha dela não merece o trono. E como a filha dela não merece o trono, quem merece é D. João I. E como quem manda é quem passa os cheques. (Risos) Quem está a pagar a Fernão Lopes para escrever esta história é D. Duarte e, portanto, é para engrandecer a nova dinastia.
MC: A Isabel já chegou a dizer que Fernão Lopes era o pai das fake news. (Risos)
IS: Era o pai das fake news. (Risos) É o maravilhoso pai das fake news porque são tão bem feitas que 700 anos depois as pessoas continuam a recitá-las. O que eu acho que, num espaço como este, e com a Fundação Livraria Lello a trabalhar a desinformação, é extremamente importante. Porque é perceber que a desinformação não desaparece, embora pareça desaparecer da nossa página do Facebook naquele segundo, ela fica lá para sempre. Ou seja, quando nós pomos uma primeira página de um jornal a condenar alguém que não foi julgado, estamos a deixar pedras que vão ficar para sempre. Eu acho que isso é um alerta muito atual.
MC: Mas de que maneira é que o retrato que a Isabel fez é diferente do de Fernão Lopes? Nas plataformas de leituras de livros, há um leitor que diz que este é o melhor livro da Isabel, que apresenta Leonor Teles como uma mulher inteligente, complexa e não apenas a megera que nos foi transmitida pelos relatos de Fernão Lopes. Fernão Lopes, como dizia, cronista da dinastia de Avis. Acha que contribuiu para uma visão negativa de Leonor Teles?
IS: Sim, obviamente. Ele, basicamente, tem de nos fazer pensar que Leonor Teles andava mais ou menos com toda a gente e, portanto, os filhos que tinha podiam ou não ser do Rei. É tetrico, mas é maravilhosamente escrito… Quando Leonor engravida, e está em Évora, e o bebé nasce e chamam-lhe Pedro, como o avó. E depois, segundo Fernão Lopes, de repente, D. Fernando pensou: «Olha, parece o Mestre de Andeiro, quando estou a olhar para este recém-nascido. Bora lá pôr-lhe uma almofada em cima da cabeça.» E mata o que seria… porque não o queria ver no trono. Estranhamente, ela engravida pouco tempo depois e ele continua a acompanhar essa gravidez. Mas esse triângulo amoroso é toda uma história. Mas de facto, ele pinta-a… Fernão Lopes deixa escapar, de linha a linha, a sua admiração por ela. Porque diz «ela fez frente a D. Fernando, dizendo-lhe que nunca devia ter deixado o irmão conduzir a armada porque aquilo ia dar mau resultado», «ela, com a sua enorme inteligência». O que é engraçado em Fernão Lopes, e é tão característico daquele tempo, mas se calhar é tão atual é: se ela é forte, D. Fernando tem de ser fraco. Ou seja, a conceção de que se uma mulher é muito forte, então ela diminuiu o homem que tinha ao lado dela. Quando, na realidade, nós sabemos que eles, lado a lado, assinaram doações, fizeram decisões. E tem uma coisa muito engraçada nos documentos históricos. Dizem: «Assinamos os dois porque cada um de nós pensa pela sua cabeça.»
MC: E isso é curioso, não é? Aparece nos manuscritos o nome dos dois.
IS: O nome dos dois. E esta frase: «Assinamos os dois porque cada um de nós pensa pela sua cabeça.» E, no fundo, o que é que ele diz? Eu acho hilariante. Ele diz que um homem não deve casar com uma mulher pela qual está apaixonado. Porque um homem apaixonado é um tonto. É um homem que passa a não ter capacidade de mandar, é um homem que se deixa levar pelos caprichos das mulheres… Fernão Lopes tem uma frase ótima que diz «As mulheres, como é seu costume, choram para comover os homens e conseguem tudo deles». Portanto, um homem que diz que casou por amor está, à partida, desqualificado para ser Rei. E já que estamos na morte de D. Fernando, no meio disso, Fernão Lopes dedica imensas páginas à morte do Rei — que normalmente a boa morte é despachada rapidamente. Mas no caso de D. Fernando dura, dura, dura, que é para explicar que ele se arrependeu, que ele se confessou, que ele pediu desculpa por ser fraco. Portanto, para construir essa narrativa.
MC: E é engraçado porque sobre poder, a Isabel escreve: «É de família, os Teles gostam de voar em redor do sol, inebriados pelo seu calor.» É uma das frases do seu livro. Perguntava-lhe agora quais são os desafios de contar uma história como esta. Que desafios é que encontrou pela frente?
IS: Os desafios, quanto mais para trás se vai na História, é encontrar documentação.
MC: Século XIV… 700 anos…
IS: Por exemplo, Isabel de Aragão, a Rainha Santa, tem bastante documentação porque, felizmente, o irmão dela, Rei de Aragão, colecionou e arquivou as cartas. E há uma quase autobiografia da Rainha. Mas no caso de Dona Leonor, eu claro que fui muito ajudada pelo facto de a historiografia portuguesa que analisa o caso, nomeadamente a Isabel Baleiras, que escreveu uma biografia do Círculo de Leitores, já ter encontrado documentação e dados para, no fundo, desmentir muitas das convicções de Fernão Lopes. Mas, eu gosto sempre de ler os documentos originais.
MC: É uma boa política.
IS: Sim, é preciso estar sentado, ter bebido um café e estar com uma régua porque é um português mais difícil. É preciso muita concentração. Mas a verdade é que podemos… Aquilo que às vezes o historiador releva não é o mesmo que um romancista histórico releva.
MC: E essas duas visões podem entrar em choque?
IS: Do ponto de vista histórico, nunca entrou. Do ponto de vista dos historiadores, eu compreendo se às vezes houver um historiador que estudou a vida inteira este copo de água, e, depois, vem alguém e escreve sobre o copo de água e ele pensa: «Não, não descreveu o vidro como o vidro é.» Compreendo que o historiador, no momento, sinta que lhe estão de alguma forma a roubar território e que a pessoa que está a escrever não sabe tão bem. Eu tento ser extremamente rigorosa nos factos.
MC: Também é jornalista. Tem essa escola.
IS: Sim, é isso. Eu costumo dizer que sou jornalista do passado. No fundo, é a minha forma de agir.
MC: Diria que é jornalista do passado?
IS: Sim, eu entrevisto pessoas mortas, cruzo informação, cruzo pontos de vista. Quero tanto quanto possível ter fontes contraditórias. Por exemplo, para Dona Leonor e D. Fernando é muito bom ler, por exemplo, o López de Ayala, que é muito mais objetivo e é contemporâneo do que Fernão Lopes, que depois se vai basear em López de Ayala. […] Portanto, olhares de fora. Esses olhares nunca se importaram com se Dona Leonor tinha ou não amantes. Era irrelevante para a história que eles estavam a contar. Para Fernão Lopes era muito relevante por causa da legitimidade de Dona Beatriz.
MC: Esta história é boa por causa do contexto e dos amantes, das peripécias, ou é mesmo por quem Leonor Teles era?
IS: Eu acho que a vida de uma pessoa não se distingue das duas coisas. E de facto, ela tem uma história extraordinária. É uma mulher que é casada jovem com um homem de quem não gosta e que, quando chega à corte, D. Fernando apaixona-se por ela e há os interesses da família. Nós vimos isto nas séries da Netflix com os Tudor. Vimos o Rei Henrique VIII que, as famílias, basicamente, vai lhe pondo as filhas mais bonitas e mais inteligentes na alcova porque isso é uma ótima forma de influenciá-los, longe da vista da corte. Portanto, essa tática é a que usaram com Leonor. Mas o que me espantou… Há bocado estava a perguntar-me porque é que me interessou Leonor… Leonor interessou-me porque eu escrevi Inês de Castro. E quando eu, de repente, percebi, que Inês de Castro e Leonor eram Rainhas de Portugal uma a seguir à outra, pensei: «Meu Deus, mas isto são comportamentos iguais, ou seja Inês de Castro é uma mulher que anda com um homem casado, de quem tem filhos, e no entanto sai muito bem na História». Não é? E aquele amor, veneramos aquele amor, e aquele amor é sério… Embora D. Pedro nunca a tenha assumido e supostamente casou, mas nós não sabemos. Porque é que esta outra mulher, que conseguiu casar neste sítio extraordinário onde estamos, o Mosteiro de Leça do Balio, naquela igreja extraordinária, com os hospitalários à volta dela… E conseguiu que o homem que a amava a assumisse e rejeitasse duas Leonores antes dela (Leonor de Aragão e Leonor de Castela) para casar com uma terceira Leonor, que, sendo nobre, não tinha a importância das de Aragão e Castela. Porque é que nós desvalorizamos este amor, que foi assumido, e que teve direito a benção da Igreja. E foi isso que eu comecei a pensar. Mas porquê? Porque é que uma história parece quase dois lados de uma moeda? O que é que se passou? E o que se passou, basicamente, foi o facto de não terem tido um filho varão. Porque se tivessem tido um filho varão, a História teria continuado e a História é dos vencedores. E, portanto, o filho de Leonor e D. Fernando teria continuado a dinastia e, obviamente, teria prestigiado a mãe e não teria deixado que, na História, ficasse o mínimo de sombra sobre ela. Houve esta alteração.
Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”: