Entrevista. Joacine Katar Moreira: “A luta anti-fascista e anti-racista são a maior herança do 25 de Abril”
É com o objetivo de continuar a dar a conhecer os deputados da Assembleia da República que o projeto Os 230 divulga a 22.ª entrevista. Francisco Cordeiro de Araújo, fundador da iniciativa, conversa com a Joacine Katar Moreira, historiadora, ativista, feminista e uma das deputadas não inscritas, no Parlamento.
Nasceu na Guiné-Bissau no início dos anos 80, época onde já se notavam as repercussões do golpe de estado do Movimento Reajustador. Joacine lembra uma infância energética, com uma “necessidade de reconstrução de uma nova era”. No entanto, a falta de recursos económicos e financeiros da época, foi o que originou a sua vinda para Portugal, com apenas oito anos: “A minha avó achou melhor mandar-me para Portugal, para um ambiente onde tivesse as condições necessárias para me desenvolver”, revela.
O objetivo, pela vontade da avó, era adquirir o conhecimento necessário para regressar à Guiné-Bissau e dar o seu contributo para o desenvolvimento. Mas não foi assim que aconteceu. Estudou, cresceu e aprendeu em Portugal, ganhou maneirismos e reconhece: “Alguém que está desde os oito anos em Portugal, é também português. O meu ambiente era Alverca… eram as ruas de Lisboa, onde tinha as minhas referências quotidianas”.
Licenciou-se em História Moderna e Contemporânea com o objetivo de “reescrever a história de África, dos africanos, da colonização e da escravatura”. É ainda mestre em Estudos do Desenvolvimento e doutorada em Estudos Africanos.
Sofre de gaguez crónica, que por vezes perturba a maneira como comunica. Questionada sobre algumas possíveis adversidades que a gaguez lhe possa ter trazido, a deputada admite que esta perturbação lhe traz muitas dificuldades, especialmente “num ambiente e numa era de urgências e de rapidez”.
No entanto, reconhece que este problema não é impedimento para o seu trabalho como deputada: “Eu faço o que me compete. Faço um esforço para me adaptar às atuais necessidades e circunstâncias. Faço um esforço para assumir esta dificuldade de comunicação, que é alvo de diversão, ironia e discurso de ódio”.
A deputada diz tentar encontrar maneiras de comunicar de uma forma mais eficiente, mas acredita que o locutor também precisa de desacelerar. Assume a dificuldade, mas não se inibe de discursar e trabalhar na Assembleia e admite “estar onde precisava de estar”.
“Não há mal em ser-se diferente. Nós contamos para a sociedade, independentemente das nossas diferenças. Somos cidadãs e cidadãos iguais a todos os outros. Se é uma dificuldade? Obviamente. Dificuldade para mim e para quem ouve. Mas isto não me inibe de estar lá e de fazer a parte que me compete”, acredita.
Relativamente ao seu percurso político, a deputada foi eleita pelo partido LIVRE em 2019, embora tenha perdido a confiança do partido mais tarde, em 2020. Tornou-se assim uma das únicas deputadas não-inscritas no Parlamento.
Quando confrontada sobre este episódio, Joacine diz que evita recordar essa época. Admite que inicialmente avisou o partido, sobre ser da “esquerda mais à esquerda”. No entanto, diz que as insistências foram muitas e que lhe disseram que “seria a pessoa que ia dar uma nova era [ao partido]”. “Custa-me imenso, enquanto mulher inteligente que me considero, de aceitar que fui totalmente enganada”, admite.
É a primeira vez que a deputada fala abertamente sobre o que aconteceu. “O meu partido, pelo qual eu fui eleita, aliou-se aos que me achavam inapta para estar na Assembleia. Uma semana após a minha eleição, já havia SMS’s e WhatsApp’s a serem trocados em que os dirigentes diziam ‘ela não pode ficar aí’”.
Questionada sobre uma possível recandidatura nas próximas legislativas, Joacine diz que ainda não colocou essa hipótese, e que ainda está muito no início das suas funções. Orgulha-se do trabalho que tem feito na Assembleia, com destaque para a agenda anti-racista.
Perguntas do público
Mas qual o partido com assento parlamentar onde mais se revê? A deputada não hesita em dizer que, apesar de ser uma mulher negra de esquerda, a esquerda nacional “nunca satisfez as suas necessidades de representatividade”. Vê-se em alguns elementos do Partido Socialista (PS) e também, teoricamente, com o Partido Comunista (PCP). Em relação ao Bloco de Esquerda (BE), apesar de se identificar com este, acredita que o partido já não tem “aquela frescura revolucionária que inicialmente tinha”.
Relativamente às suas principais bandeiras, a deputada não tem dúvidas: entre elas, a luta pela igualdade e pela não violência em todas as suas ramificações, a luta anti-racista, a luta feminista e as causas ambientalistas. Admite ser “uma ativista anti-racista mascarada de deputada”.
As escolhas da deputada não-inscrita
Na segunda parte da entrevista, Joacine Katar Moreira responde a perguntas de carácter mais dinâmico. Entre várias questões, se pudesse almoçar com alguém seria Michelle Obama e a ementa seria um caldo de amendoim ‘à moda da Guiné’.
Na escolha entre Aristides de Sousa Mendes ou Amílcar Cabral não conseguiu decidir-se por apenas um; já entre o ‘Eixo do Mal’ e a ‘Circulatura do Quadrado’, não escolheu nenhum.
A figura histórica que mais a inspira é Thomas Sankara e, se pudesse, visitaria todos os países da América Latina.
Entre Kamala Harris ou Bernie Sanders, humildade ou ambição, os livros que mais gosta e até mesmo as suas recomendações musicais. Estas e outras questões podem ser assistidas na entrevista completa, já disponível em todas as plataformas.
Por último, Joacine Katar Moreira deixa uma mensagem aos portugueses: “Esta época de luta anti-fascista e de luta anti-racista, não são nada mais do que a maior herança do 25 de abril. Uma e a outra, a maior herança democrática. Os ideais e as reivindicações pela igualdade são os alicerces da democracia e das instituições democráticas, nomeadamente do Serviço Nacional de Saúde”.
Entrevista escrita por Daniela F. Costa