Entrevista. João Carvalho: “Imagino-me com 70 anos e entusiasmado porque vem determinada banda ao festival Paredes de Coura”
A vida de João Carvalho há muito que é indissociável da cena musical em Portugal. Um dos fundadores do festival de Paredes de Coura, vive num rodopio entre descobertas de artistas que quer trazer aos palcos portugueses e o agendamento dos seus artistas preferidos. Quando, em conjunto com amigos, decidiu criar um festival naquela pequena localidade do Minho, o mote era simples: reunir os amigos em torno e em prol da música. 31 anos volvidos e Paredes de Coura deixou de ser uma localidade relativamente desconhecida. Com a beleza natural que o Minho generosamente nos oferece, o anfiteatro natural do palco principal do festival, o rio Coura e a praia fluvial de Taboão têm sido porto de abrigo de melómanos que, à semelhança de João Carvalho e dos seus amigos, se reúnem ano após ano para descobrirem novas bandas e cimentarem o amor por outras.
No princípio era uma brincadeira de miúdos, disse João Carvalho há tempos numa entrevista. Agora, mesmo que a história lhe traga peso e responsabilidade, a organização do festival de Paredes de Coura continua a ser uma missão, uma prova de esforço e uma corrida de obstáculos, mas sempre em prol da música, mas tendo sempre a localidade e a sua gente no coração. Foi para sabermos um pouco mais sobre o que é organizar o festival de Paredes de Coura que falámos com João Carvalho e a conversa pode ler-se de seguida.
Disseste numa entrevista que no início era como uma brincadeira de miúdos, um pouco com Patti Smith escreve em Apenas Miúdos. Ultrapassadas as dores de crescimento, que talvez Paredes de Coura já tenha ultrapassado, quais são actualmente os maiores desafios para se fazer um festival como este?
Confesso que não mudaram muito. Como é óbvio, o festival agigantou-se, ganhou personalidade, ganhou dimensão, ganhou patrocinadores, ganhou respeito público, e portanto será diferente nesse sentido. Mas nós temos um grande problema, que não chega ao grande público, que é o problema da contratação. É preciso estilar muito amor e muito carinho para um festival conseguir fazer a sua programação, todos os anos, sem qualquer festival ao lado. O mundo da música está a passar uma fase muito complicada com alguns ‘playmakers’ a quererem canibalizar o mercado em termos de salas, bandas e de participações nos festivais. E o Paredes de Coura tem-se feito ao longo dos anos sem qualquer festival no país vizinho. Todos os festivais, rigorosamente todos, sem excepção, fazem parceria com outros festivais. O Paredes de Coura é um acto isolado. Às vezes falo com muitos agentes e eles questionam como conseguimos fazer um festival não só no interior do país, como conseguir programá-lo sem qualquer festival ao lado. É quase como tu quereres contratar um jogador quando a época futebolística acaba e nós estamos a jogar num campeonato em que não há jogos nesse fim de semana. Temos uma vantagem muito grande, que é as pessoas, os agentes, sempre gostaram muito de Paredes de Coura. As bandas que vêm tocar saem sempre daqui com o rasto de saudade. Agora, se eu fizesse o festival num fim de semana em que há um festival em Espanha, meu Deus, facilitava imenso a vida, não é? Há bandas que, em Janeiro, tenho como confirmadas e que querem muito vir, só que depois, no mesmo fim de semana de Paredes de Coura, aparece o Lowland, o Pukkelpop, enfim, tantos festivais do outro lado da Europa.
Eles acabam por pedir imensa desculpa, mas não podem perder três datas que lá conseguem fazer, porque geograficamente os países estão colados uns aos outros e a distância da Bélgica e da Holanda, por exemplo, é de uma hora e meia. A banda pode muito querer vir, mas agora não é só pegar no avião, é fazer chegar toda a sua produção. Não queria mudar de data porque acho que os festivais têm de se fidelizar em determinada data e também não quero fazer um festival em Espanha, porque já há festivais vazios em Espanha. Vamos conseguindo fazer o Paredes de Coura sempre com distinção, perdoem-me a imodéstia, com bandas mais conhecidas ou menos conhecidas, a marcar tendências. Ultrapassadas as dores de crescimento, vamos tendo umas cólicas. E se chegar a Fevereiro, Março, que é quando eu gosto de fechar o cartaz, com 20% daquilo que idealizei, já sou uma pessoa feliz, o resto é adaptação, procurar as coisas boas que ainda ninguém conhece.
“O mundo da música está a passar uma fase muito complicada com alguns ‘playmakers’ a quererem canibalizar o mercado em termos de salas, bandas e de participações nos festivais.”
Qualquer melómano que se preze não deixa de considerar o Paredes de Coura como a meca das descobertas musicais? Além de todas as condicionantes de agendamentos que já são conhecidas e das quais também não fazes segredo, há também uma parte comercial e um condicionamento muito grande pelo algoritmo. É mais difícil conhecer pessoas novas e bandas novas, apesar de termos uma grande facilidade de chegar a elas. Como é que fazes esta curadoria toda? Certamente não és tu sozinho.
Não quero parecer demasiado imodesto, mas a verdade é que sou eu sozinho. Eu ouço todos os dias imensa música. Gosto da descoberta, gosto de encontrar bandas novas, gosto de ouvir aquilo que me sugerem. Nós temos uma equipa de bookers e, obviamente, sugerem-me muita coisa. A escolha final é minha, mas há bandas que pessoas e o público me sugerem e não conheço e acabo por gostar. É uma coisa que eu gosto de fazer, que faço com grande carinho. Costumo dizer que tenho a sorte de ganhar dinheiro, de divertir-me, de ter uma profissão que me diverte, que nunca me cansa. É quase como montar um puzzle, vai aparecendo algo que fazia mais sentido com determinada banda e mudas a peça do puzzle. Actualmente temos esta facilidade do Spotify e aí estou sempre a descobrir coisas. Por exemplo, este ano temos os Glass Beams, que já contratei há quase um ano. É uma contratação que está feita desde o ano passado e que não param de crescer, como há outras bandas. Dá-me muito gozo ver bandas que no Spotify têm 15 mil pessoas de média por mês e, passado 6 ou 7 meses, já está a 1 milhão ou 2 milhões, agora se isso é adivinhar o futuro ou se Paredes de Coura é um laboratório musical, eu acho que também é muito ano a fazer a mesma coisa. É muito amor à música. Muitas bandas passaram por Paredes de Coura e deram o salto, como foi os Arcade Fire, os The National, Queens of the Stone Age, Mr. Bungle, Flaming Lips, mas há também dezenas de bandas que acabaram por não crescer, mas que fazem parte da história de Paredes de Coura.
Consegues destacar algum momento mítico da história do festival?
O momento mais mítico foi a edição de 2005, por todas as razões e mais algumas. A primeira é que vínhamos de uma edição de grandes prejuízo, a edição de 2004. A chuva tem-nos acompanhado tanto como a música ao longo da nossa vida, mas em 2004 a chuva foi imensa, acumulámos muitos prejuízos e pusemos em causa a continuidade do festival. Em 2005, fizemos aquela super edição com Arcade Fire, com The National, com Pixies, com Foo Fighters, com Nick Cave… Enfim, era um cartaz absolutamente incrível. Ainda ontem olhava para o cartaz e hoje seria preciso, talvez, uns 20 milhões de euros para ter aquele cartaz. Na altura, nem um milhão custou. O festival foi então notícia internacional e deu-nos aquela força que não é que estivéssemos a perder, mas estávamos a perder um bocadinho o ânimo, pelo menos alguns de nós. 2005 foi um ponto de viragem. E eu nunca perdi, nem nunca vou perder, o entusiasmo em relação a Paredes de Coura. Este ano, por exemplo, quando fechei os Fontaines D.C., fui adolescente outra vez. Imagino-me com 70 anos entusiasmado porque vem determinada banda e a dizer às minhas filhas que andava há 40 anos a tentar trazer uma banda a Paredes de Coura. E nunca vou deixar de ser um vaidoso com aquilo que eu, toda a gente na Câmara Municipal, e os meus amigos fizemos em Paredes de Coura. Nunca vou deixar de sentir essa vaidade de pôr Paredes de Coura no mapa, de fazer o festival todos os anos e conseguir fazer bons cartazes apesar de todas as dificuldades.
Há a mística de Paredes de Coura e aqui e ali ouve-se que as pessoas já estão um bocadinho fartas dos grandes festivais, e que festivais de nicho, que penso ser o caso de Paredes de Coura, começam a ser preferidos para uma imensa minoria.
A maior parte das pessoas estão em Paredes de Coura pela música. Não conheço nenhum festival que às 6h30 as pessoas estejam religiosamente em frente ao palco, independentemente do artista, porque sabem que podem estar a perder um pedaço de história. E Paredes de Coura não é um festival para toda a gente, é um festival para quem gosta de música e para quem tem sensibilidade cultural, não é? Sou abordado algumas vezes por pessoas que me agradecem por tudo que têm visto e pelas bandas que têm descoberto. Há o factor de as pessoas não se restringirem ao que lhes é dado, mas também ao que podem descobrir e formar a sua opinião. Estava aqui a fazer uma pequena pesquisa de algumas bandas que que tocaram a primeira vez em Portugal em Paredes de Coura e foram desde os Arcade Fire aos National, aos Coldplay, aos Queens of the Stone Age, aos Sex Pistols aos Motörhead, aos LCD Sound System, Flaming Lips, Korn, Yeah Yeah Yeahs, Franz Ferdinand, Caribou, Alabama Shakes, The War on Drugs, Cage the Elephant, Bad Bad Not Good… não sairia daqui.
Em termos de infra-estruturas, o Paredes de Coura teve uma melhoria significativa no conforto que oferece aos seus espectadores.
Sim, acho que os nossos festivais, o Primavera Sound e Paredes de Coura, são aqueles que mais investem em infraestruturas. Nós gostamos sempre de melhorar mesmo aquilo que para uns já está bem feito, e posso dizer que este ano vamos ter ainda mais casas de banho. É um pequeno pormenor, mas depois do cartaz feito estamos sempre ali a pensar no pequeno pormenor, na comodidade das pessoas, no que podemos acrescentar de conforto.
“Paredes de Coura não é um festival para toda a gente, é um festival para quem gosta de música e para quem tem sensibilidade cultural.”
As pessoas estão também cada vez mais exigentes.
Sim, embora não percebam muitas vezes determinadas coisas, como quando lançamos os horários. Os horários de um festival, a hora a que toca uma banda, tem que ver com várias condicionantes. Por exemplo, com voos. Há bandas que têm de viajar às 5 da manhã e portanto têm de tocar mais cedo, há bandas que por uma questão de algum elemento estar doente, não pode tocar a determinada hora… há uma série de razões, de estruturas, de montagem de determinado espectáculo. As pessoas estão mais exigentes? Acho que as pessoas estão menos ternurentas. Estamos numa fase da informação preguiçosa, já não lemos a notícia, só lemos o cabeçalho, e ainda para mais, às vezes, o cabeçalho está errado. Falta a compreensão, as pessoas estão muito azedas, estão muito reactivas, é muito fácil comentar tudo, mas sem ter o cuidado de verificar factos. Respondendo à tua pergunta, as pessoas estão exigentes, ainda bem que sim, mas às vezes também estão distraídas. Às vezes fico frustrado quando nos empenhamos tanto em determinada coisa e às vezes as pessoas não reparam, portanto é muito mais fácil falar mal do que falar bem.
Antes do festival, temos uma espécie de warm-up, que é o Sobe à Vila com bandas portuguesas e gratuito.
É uma forma de perpetuar a experiência, de nós agradecermos à população de Paredes de Coura, de alargar a experiência e a cumplicidade das pessoas que visitam Paredes de Coura. Há pessoas que já chegam ao festival sem dinheiro porque o gastaram todo no comércio courense, mas está bem aplicado, porque são pessoas que sabem receber muito bem. Mesmo correndo o risco de saber que há pessoas que já vão a Paredes de Coura para o Sobe à Vila e depois acaba por não ficar para o festival, tudo o que seja promover Coura, tudo o que seja levar pessoas a Paredes de Coura é óptimo.
Falando em disseminar o nome, tivemos duas edições do Courage, a iniciativa irá manter-se?
Não foi feito este ano, mas o objectivo é que no próximo ano o voltemos a fazer. Esse conceito apareceu no ano de pandemia, que foi a Coragem, aproveitar o nome Coura e a palavra, que quer dizer coragem. Foi uma experiência absolutamente genial, porque de repente vês que as pessoas têm um amor indefectível a Coura e no mês de Dezembro, que foi quando fizemos essa edição, esgotámos num dia todos os bilhetes disponíveis e não eram assim tão poucos. Numa terra que chega a ter temperaturas negativas, que aliás teve durante o festival, e as pessoas estavam lá a dormir em carros, a dormir em casa de amigos, a irem e a voltarem para as suas casas. Foi muito emotivo. Foram aliás anos emotivos. Nós tínhamos feito também um pequeno apontamento de improviso na data do festival de Paredes de Coura e a quantidade de pessoas que apareceu e que já lá estava em Paredes de Coura foi avassaladora. Foi muito comovente ver tanta gente que, não havendo o festival, foi a Paredes de Coura e isso demonstra a grandiosidade e a ternura que a Paredes de Cora tem.
Foi num desses anos que nasceu o Courage. A ideia seria fazer também noutras partes do país, mas também são eventos que precisam de investimento camarário que não são auto-suficientes com a bilheteira e portanto depende às vezes de orçamentos e de disponibilidade de salas. Este ano não foi possível fazer, mas no próximo ano sim, queremos voltar a fazê-lo e temos essa garantia da Câmara de Guimarães.
Voltando agora à edição deste ano do Vodafone Paredes de Coura, qual é a banda que estás mesmo curioso de ver?
Falando de bandas “pequenas” que eu tenho muita expectativa. Estou muito curioso para ver Model/Actriz, Sextile, Glass Beams, Bar Itália, que é uma banda que não para de crescer, que eu já tive a oportunidade de ver ao vivo e são incríveis. Protomartyr, que é um desejo antigo que eu ando a tentar trazer há algum tempo. Beach Fossils. Adoro o novo disco dos Mdou Moctar. A banda que eu mais ouço actualmente é o Still Corners. Ando viciado nos Still Corners. E depois obviamente há os grandes, Slow Dive, que tem um álbum incrível, o regresso dos Jesus and Mary Chain, que também tem um álbum que faz lembrar os álbuns antigos. Os Fontaines D.C., que é das bandas que eu mais gosto. Os IDLES dispensam apresentações. Girl in Red, Cat Power, os próprios Nouvelle Vague. E depois tens ali L’Impératrice, que já fazem parte da história de Paredes de Coura. Tens depois um dia que junta estes três amigos, que são amigos e eu sonho que eles toquem um tema em conjunto, que é o André 3000, o Sampha e o Killer Mike. O Killer Mike ganhou três Grammys e que vai estar pela primeira vez em Portugal. Portanto, acho que está aqui um cartaz recheado de coisas boas. Coisas que ainda são pouco conhecidas de algumas pessoas, mas que depois tens as bandas que já toda a gente conhece e não vem cá muito, como tens as bandas grandes. Acho que vai ser uma edição que, em termos musicais, vai ser daquelas que fica marcada na história da música em Portugal. Não tenho dúvidas nenhuma sobre isso.
Além da música, que mais podemos esperar da edição deste ano?
Além das melhorias no campismo, estou a planear uma série de conversas com pessoas interessantes da nossa cultura que possam levar uma mensagem positiva. No palco de jazz este ano, além da música, quero ter conversas interessantes com pessoas interessantes ligadas à televisão, à literatura, ao cinema, à fotografia. Quero que esta edição tenha como base a ternura. Como digo, sinto que o mundo está num retrocesso, de repente parece que retrocedemos no tempo e as pessoas estão menos ternurentas umas com as outras, menos compreensivas e quero passar essa imagem de solidariedade, de carinho, de amor, de ternura na edição deste ano e cá vos esperamos a todos.