Entrevista. João Céu e Silva: “O Lobo Antunes, enquanto escritor, deixou de existir há três anos, deixou de escrever”

Começou a carreira no Jornalismo na Política, mas quando esta deixou de o interessar, virou a agulha para a Cultura e há 25 anos que se dedica a ela. Entrevistou grandes escritores durante dezenas de horas, suportou o ego de muitos deles. Depois de sete longas viagens, João Céu e Silva publica uma versão aumentada de «Uma Longa Viagem com António Lobo Antunes» (Contraponto, 2024), onde revela, nas primeiras páginas, o estado de saúde do escritor português, que sofre de demência. O jornalista explica, em entrevista a Magda Cruz, que era um desejo do próprio Lobo Antunes ter um novo livro com as suas entrevistas e que uma biografia atualizada não podia ignorar essa informação.
Numa entrevista que vai além da polémica em torno do livro, João Céu e Silva conta como foi entrevistar grandes vultos da Literatura, como Saramago, Patrick Modiano e Salman Rushdie.
Neste episódio do podcast «Ponto Final, Parágrafo», João Céu e Silva faz uma radiografia da Cultura portuguesa e explica que não consegue compreender o atraso na abertura da futura Biblioteca António Lobo Antunes, em Lisboa, prometida em 2022.
Magda Cruz: O livro «Uma Longa Viagem com António Lobo Antunes» resulta de conversas que tiveram início em 2007. Para esta nova edição, julgo que teve de rever o livro. Com que olhos viu António Lobo Antunes, cerca de 15 anos depois?
João Céu e Silva: Isto começou com uma série de, mais ou menos, 60 entrevistas. Eu penso que é caso muito raro, na Literatura, alguém entrevistar um escritor durante 60 sessões. Mas as conversas foram fluindo, o António [Lobo Antunes] não queria parar e nós fomos continuando. Depois, o livro saiu, fez o seu caminho. Este livro, tal como o José Saramago, são muito utilizados nas teses universitárias. Toda a Academia usa estes livros porque — e vamos ao caso do António Lobo Antunes — toda a vida dele está plasmada aqui, portanto quem quer escrever sobre a obra e sobre o escritor António Lobo Antunes tem de ler este livro e ele é profusamente citado. Passados estes anos, (portanto, o livro sai em 2009), estava na altura de fazer uma nova edição. Já não havia livros e, portanto, a Contraponto queria fazer uma nova edição. Então, para mim, foi o ideal porque eu, desde 2010 até 2019, 2020, fiz-lhe várias entrevistas, viajámos várias vezes para o estrangeiro, eu acompanhei-o a festivais literários. E, então, tinha muita matéria, além de várias entrevistas sobre os livros que ele, entretanto, foi lançando. Portanto, havia muito material para fazer uma nova edição. Esta edição contém as 500 páginas anteriores, que foram editadas porque, passados dez anos, há coisas que já não fazem falta, há coisas que estão muito datadas, portanto, podia-se fazer uma edição e reduzir as 500 páginas a 320. Este livro tem 400 e poucas páginas. As outras 80 e tal páginas são para fazer a súmula das entrevistas e das viagens que nós fizemos. Ou seja, atualiza-se a vida, a biografia do António Lobo Antunes — porque este livro acaba por ser uma biografia. É um livro que está preocupado com os livros dele, mas acaba por fazer também uma biografia do próprio escritor. E é uma nova edição totalmente atualizada até há pouco tempo.
MC: E sente que aprofundou, de alguma maneira, o retrato de um dos maiores escritores portugueses contemporâneos?
JSC: Sim, sim. A primeira parte do trabalho de edição demorou muito tempo, porque eu reduzi 500 páginas a 320 em que eu considerava que todas elas eram pérolas. É muito complicado. Demorou mais tempo. Depois, comecei a nova parte, tudo o que havia novo, que já tinha reunido. É interessante porque podemos ver o escritor mais à distância, porque tudo aquilo que foi sendo feito, foi sendo gravado, as entrevistas, as viagens, as reportagens, as notícias, eu agora vi com uma distância de alguns anos. E aí sim, nós vemos que o António Lobo Antunes estava um homem diferente, tinha também outras preocupações, se bem que a grande preocupação dele é sempre o livro, o próximo livro.
MC: Ele pede à morte que lhe dê mais dois, três livros. Negoceia com a morte.
JSC: Mais dois, três livros. É. E, portanto, andámos sempre nessa situação de ele a negociar e eu fazer-lhe as entrevistas. É interessante, depois, ver como é que ele envelheceu, (porque aqui já não é amadurecer, é envelhecer), e os últimos livros que ele foi escrevendo ia publicando, inclusive, um pormenor muito interessante que foi… Ele, que detestava as crónicas, considerava que as crónicas eram apenas para ganhar dinheiro, começou a valorizar mais as crónicas e adorou o último livro, o quarto livro das crónicas, e até queria logo fazer mais um, Portanto, houve mudanças na personalidade dele. Por exemplo, na forma como ele observava o prémio Nobel não alterou, dizia que agora estava nas tintas para o prémio Nobel porque, entretanto, a Pléiade, uma prestigiada coleção francesa, decidiu fazer a obra completa dele. Para ele, que não teve o prémio Nobel, era a mesma coisa. Ele até dizia que a Pléiade era mais importante que o Prémio Nobel. Eu não concordo com isso. O Prémio Nobel é o prémio literário mais importante que existe no mundo. Nós podemos dizer «ah, foi mal atribuído», «falhou», «esqueceu-se de dezenas de ótimos escritores», mas o Prémio Nobel é o Prémio Nobel.
MC: Ele dizia que receber o Nobel não era fundamental, mas que dar-lhe-ia a paz de reconhecimento tão fútil como grandioso ainda em vida e uma fé para o futuro do legado. Portanto também esta é a importância do legado. Mas escrever aqui era importante.
JSC: Para ele, não havia outra coisa a não ser a escrita e muitas vezes naquelas 60 ações sucessivas, eu muitas vezes tinha ou foram adiadas algumas, ou não começaram às três da tarde, como era normal.
MC: Às vezes, iam lanchar.
JSC: Nós conversávamos entre as três e as cinco. Às cinco, eu desligava o gravador e então íamos lanchar. Ele tinha um café ali mesmo, do outro lado da rua, e então por norma íamos sempre lanchar. Aí, deixávamos de conversar de Literatura e falávamos sobre várias coisas.
MC: A conversa mudava, não tinha uma continuação. Tinham uma espécie de chip que…
JSC: A Literatura acabava quando nós saíamos da porta da garagem, chamávamos-lhe garagem…
MC: Um armazém.
JSC: A conversa mudava. Falávamos de futebol, falávamos de outras coisas.

MC: Lobo Antunes interessava-se por futebol?
JSC: Sim. Ele interessou-se muito, ele era de Benfica, e interessou-se. Durante muitos anos, interessava-se. Hoje em dia, já não se interessava muito porque achava que o futebol estava transformado num comércio. Ele dava o exemplo de vários jogadores antigos que jamais mudariam de camisola, que deixariam a camisola do Benfica e passavam a usar a do Sporting ou de outros clubes estrangeiros. Isso, a ele, chocava-o. Mas isso são aquelas saudades que as pessoas mais velhas têm sempre do passado. Mas eu acho que isso era conversa. Como tinha lá A Bola, como lá tinha os jornais desportivos no café, ele olhava para as manchetes e então aquilo vinha a propósito ou a despropósito e conversava sobre o futebol e sobre outros temas. Mas eram vulgaridades. [risos] Raramente se tinha uma conversa muito séria. Mas podíamos estar a conversar meia hora, uma hora.
MC: Isto é uma pergunta muito fútil, mas o que é que comia Lobo Antunes? Tinha um bolo favorito?
JSC: Não, era muito simples. Ele comia uma torrada e um Iced Tea. Era sempre a mesma coisa. Eu creio que era de pêssego. Era sempre o que ele comia. E eu também lanchava, mas eu variava. Agora, ele não. Ele era sempre uma torrada e o Iced Tea. E aquilo era ambiente giro no café. Era ali perto do Conde Redondo e havia ali umas pessoas muito castiças. Mas quando o António Lobo Antunes entrava lá, eles quase que batiam continência porque achavam… Era o escritor, era a pessoa mais importante ali daquela rua.
MC: Ele que não se achava mais importante do que um pedreiro.
JSC: Pelo menos era o que dizia. Ele entrava, tinha lá uma mesa de que ele gostava e, às vezes, a mesa estava ocupada e eles levantavam-se para lhe dar a mesa. Ele dizia que não queria, mas acabava por ficar. Era num canto que ficava mais abrigado. Depois, pedia um cigarro ou dois ao dono do café. Quando já não tinha tabaco, era capaz de pedir. Mas tinha essa relação interessante com os clientes do café, que ele olhava. Ele olhava para as pessoas da mercearia, ele olhava para essa gente toda, porque considerava que eram inspiradoras. Estávamos ali conversar, mas, se fosse preciso, ele também estava a desenhar um personagem através daquelas figuras.
MC: Era muito observador.
JSC: Era, era.
MC: Há aqui um ponto sobre o qual eu não posso deixar de falar. Aquando da publicação deste livro, levantou-se alguma polémica por ter revelado o estado de saúde e mental de Lobo Antunes, que sofre da demência. O seu texto de abertura tem que ver com não dar a ideia aos leitores de que Lobo Antunes irá escrever mais um livro ou que teremos mais um livro no mercado de Lobo Antunes? Foi essa a sua preocupação?
JSC: Sim. Eu tive muito cuidado. Quando foi esta nova edição, eu ponderei se revelava ou não a situação dele. A situação não era desconhecida. Todos os jornalistas da área cultural sabiam, centenas de pessoas sabiam e eu via isso em comentários no Facebook em que as pessoas lamentavam o estado dele. Mas eu ponderei se deveria ou não publicar. Agora, em qualquer país civilizado, uma biografia não podia deixar de estar atualizada. Tinha de ter essa informação. Eu dei-me muito com António Lobo Antunes, falámos muito… Dois terços do que falámos não está aqui [no livro], coisas inclusive privadas. Nunca tive qualquer intenção de meter, mas achei que essa é uma informação própria. O Lobo Antunes, enquanto escritor, deixou de existir há dois, três anos. Portanto, deixou de escrever. E o único objetivo na vida do António Lobo Antunes era escrever. Ora, se ele já não estava a escrever, quando mais não fosse, era notícia. E quando mais não fosse, tinha de estar na biografia. Em Portugal, há um certo prurido em falar das doenças das pessoas. Nós vimos isso com a Agustina Bessa-Luís, que esteve acamada e penso que com demência, também, ou pelo menos muito doente durante dez anos e que toda a gente evitava falar e toda a gente sabia. E então eu ponderei se deveria ou não incluir e decidi que tinha de incluir.
MC: E fá-lo de uma maneira muito digna, na abertura do livro.
JSC: Com muito cuidado. O livro tem 400 páginas, tem uma primeira página e meia em que eu faço esse relatório, em que digo isso. Depois, só lá para a página 340 ou 350 é que se, com pinças, com muito cuidado, eu volto a dizer isso. E volto a referir isso porque, à distância, eu comecei a ver que havia certas atitudes dele, a partir de 2015, lá mais para 2017, que já não eram aceitáveis, que já não eram normais. E, portanto, eu levanto a pergunta «Até que ponto é que ele já não estaria a ser afetado por essa demência«. Mas em todo o livro, em 400 páginas, se houver além dessa página e meia, mais outra página e meia em que se fala do assunto é muito. Porque eu tive esse cuidado porque tinha de dizer, mas não tinha de explorar essa situação. Depois, isso acabou por dar alguma polémica porque saiu no Expresso um trabalho sobre este livro, um trabalho muito bom, da jornalista Cristina Margato, que fez com que as redes sociais se mobilizassem para criticar… Houve duas grandes frentes: uma a dizer que era normal e que era correto, e outra a dizer que era oportunismo. Isso foi muito simples. Houve um senhor, que é jornalista de pivô da SIC, que às vezes também escreve, que é o Rodrigo Guedes de Carvalho, que resolveu escrever uma estupidez, no Instagram dele, a dizer que o livro era um livro oportunista, apenas para ganhar dinheiro, quando não tem nada a ver com isso. É muito estranho que um jornalista que apresenta todos os dias o noticiário nobre da SIC nem sequer tenha feito um telefonema a perguntar, a querer saber. Ele não diz o meu nome, apenas refere que saiu um livro oportunista sobre aquilo. E é curioso que ele dizia que a editora tinha aproveitado exatamente a data em que o António Lobo Antunes costumava publicar o seu livro, que era no início de outubro, para este livro também sair. O que é completamente falso. Porque o livro era para ter saído em maio e depois, como em todas as editoras, foi-se atrasando e coincidiu sair em outubro. Até deveria ter saído no início de setembro. Além do mais, o Rodrigo Guedes de Carvalho, que disse que a editora tinha aproveitado essa data, fez exatamente o mesmo. Ou seja, lançou o seu romance, exatamente oito dias depois de este livro ter saído, em que dedicava ao próprio António Lobo Antunes, também, o livro dele. Ou seja, ele é que está a tentar ocupar o espaço do próprio Lobo Antunes.
MC: Tem essa perceção?
JSC: Tem, tem essa percepção. As redes sociais são interessantes, mas também é um sítio onde vive uma matilha de ignorantes, de imbecis, que, quando lêem um texto de Rodrigo Guedes de Carvalho, então decidem tomar partido. O texto dele tem umas quinze, vinte linhas. É apenas um conjunto de parvoíces, de incitamento à maledicência, mas pronto, as pessoas, a matilha, nas redes sociais, muitas vezes, vai nessa conversa. Foi isso que aconteceu.
MC: Entretanto, o Rodrigo Guedes Carvalho conseguiu perceber o lado do João?
JSC: Não sei. Eu ofereci-lhe um livro. E, na dedicatória, dizia-lhe «Como ainda não leu o livro, ofereço-lhe o livro para poder saber o que é que livro diz». Que é um livro sério e que não é um romance como os que ele escreve, que são ficção. É livro real, um livro que o próprio Lobo Antunes queria fazer.
MC: Mas porquê reeditar «Uma Longa Viagem com o António Lobo Antunes» e não «Uma Longa Viagem com José Saramago» ou o Álvaro Cunhal?
JSC: A primeira opção era o José Saramago, só que, entretanto, saiu uma biografia do Miguel Real, de 700 páginas, sobre o José Saramago, e saiu outra também de 700, 800 páginas, do Joaquim Vieira, sobre o Saramago.
MC: O mercado estava saturado.
JSC: Ou seja, a editora olhou e disse «Agora que saíram estas duas, vamos ter de esperar o José Saramago». Esta nova edição foi uma segunda opção, porque o José Saramago estava «queimado» para esta janela de oportunidade. Portanto, foi assim. Mais dia, menos dia, deverá sair uma do José Saramago. E não sei se as outras também serão…

MC: A Contraponto tem interesse em reeditar ou — não quero chamar republicação, nem reedição —, em trazer de novo para o mercado essas Longas Viagens?
JSC: Sim. É essa a ideia.
MC: Já não se encontram no mercado. É uma pena. Eu tenho a de Manuel Alegre e foi muito importante para o meu desenvolvimento enquanto jornalista.
JSC: A maior parte delas esgotaram. A esta, do Lobo Antunes, eu não chamo «reedição», chamo nova edição. Mesmo as 320 páginas reeditadas tiveram acrescentos, de ambiente, de histórias que entretanto se foram esclarecendo. E, portanto, quando o de José Saramago sair, também será uma nova edição. Terá aquilo que saiu na altura editado, mais umas sete ou oito entrevistas que eu tive com ele, reportagens que eu tive com ele. Portanto, uma nova edição nunca é igual à primeira. Até porque muitos leitores compraram, os fãs do António Lobo Antunes, por exemplo, compraram e só se justifica uma nova edição se eles poderem comprar e encontram muita coisa nova. Esta coleção «Um Longa Viagem com…» tem um objetivo também didático, que é vamos dar a conhecer os escritores. Normalmente, todas as personalidades são escritores. Vasco Pulido Valente não era um escritor profissional, era um historiador, mas tinha livros de história e escrevia como um escritor. Portanto, daí o ele ter entrado. Falar com o escritor ou falar com o Vasco Pulido Valente era a mesma coisa, não havia diferença. Portanto, todos os autores, por norma, são escritores. E a minha intenção é dar a conhecê-los. Falar com eles muitas vezes — 20, 30 sessões. O Vasco Pulido Valente foram 42. Fazer muitas sessões, esmiuçar a obra, esmiuçar a pessoa, ouvir as opiniões e transmitir um relato de quem é a pessoa — uma espécie de biografia—, para o leitor. Com um ângulo sempre que é: Não sou eu que estou ali a aparecer. Eu gosto sempre de escrever de forma que, quando o leitor está a ler o livro, é como se estivesse a conversar com o protagonista desse livro. Portanto, esta coleção já tem oito volumes. Vai sair outro antes do final do ano também com mais um escritor.
MC: Podemos saber com quem?
JSC: Está quase, mas ainda não posso revelar. Mas é escritor importante. Todos os escritores que entram nesta coleção têm de ser muito importantes. E esse é o meu maior problema, porque nem todos são muito importantes, nem todos têm uma obra consolidada. É difícil encontrar nomes que juntem boas vendas, que a editora quer isso, e o meu interesse, que eu consiga, durante 20 ou 30 entrevistas, falar com a pessoa. Nem todos os escritores portugueses, desculpem a expressão, «aguentam» 30 entrevistas. Porque, ao final de 4 ou 5 entrevistas, já não tem mais nada para dizer. Estes livros são muito trabalhosos. Exigem muita conversa, muita investigação. São centenas de perguntas, tenho de ler a obra toda. Por exemplo, o Saramago, quando eu disse que tinha lido os 33 livros que ele tinha publicado até à altura, ele disse-me «Ó home, você é maluco.» Foi a expressão dele. Eu nunca me esqueci porque ele ficou espantadíssimo. Com António Lobo Antunes, fiz a mesma coisa. Devo ser dos poucos portugueses que leram todos os livros.
MC: Mesmo entre os grandes fãs.
JSC: Mesmo entre os grandes fãs, que leram todos os livros do princípio ao fim. A única coisa que eu nunca me preocupei no António Lobo Antunes foi com as crónicas. Porque eu acho que as crónicas são um produto menor no António Lobo Antunes.
MC: Ele próprio escrevia cinco e seis seguidas durante uma temporada entre os romances.
JSC: São interessantes, são giras, divertidas, para leitor ler. Mas, quem gosta de Lobo Antunes não pode querer ler as crónicas apenas. Tem de ler os romances, tem de ler o Sôbolos Rios que Vão…
MC: O João tem um favorito?
JSC: O Sôbolos Rios que Vão. Eu gosto muito dos Os Cus de Judas. Foi o primeiro livro que eu li dele, que eu gostei muito, mas se eu tiver de escolher é o Sôbolos Rios que Vão, que eu acho que é uma obra prima fantástica. Portanto, não é qualquer um que entra nesta coleção. E não é qualquer que aguenta. Quando se fazem este tipo de livros, ninguém pode ir fazer comentários para redes sociais. Isso aí é de uma baixeza do pior. Principalmente, como aconteceu com esse jornalista da SIC, que a única coisa que ele fez foi falar mal, sem ter lido o livro, sem conhecer o livro. Daí eu lhe ter oferecido, com essa dedicatória. «Já que escreveu um post sem ter lido o livro, está aqui a obra para poder ter uma opinião.»
MC: Eles são ambos da mesma editora, talvez tenha sentido um pouco exposto.
JSC: Não, não. Eu não tenho qualquer dúvida. Como eles lançaram o romance dele oito dias depois, a única coisa que ele quis foi fazer propaganda a si próprio. Então, chegar e dizer «Há um livro oportunista sobre o António Lobo Antunes». Um livro que já tinha saído. Esta nova edição foi proposta do próprio Lobo Antunes. Ele disse «Tínhamos de fazer um novo livro. Temos de falar sobre mais…»
MC: Foi uma proposta de Lobo Antunes?
JSC: Foi ele próprio que aí 2017, 2018, me disse «Temos que voltar a fazer mais umas conversas para fazer outro livro.»
MC: Daí a segunda maratona de conversas.
JSC: Dai esta nova edição com tudo isso. Portanto, não é um livro que tenha saído por acaso. É um livro que o autor também queria e era um livro que fazia uma atualização de toda a matéria que eu tinha sobre o António Lobo Antunes. E que, infelizmente, não se vê hoje dia grandes trabalhos sobre a obra do António Lobo Antunes.
MC: Nas reflexões do livro, escreve que até hoje não percebe como é que Lobo Antunes aceitou manter essa relação de entrevista, essa troca de conversa durante tanto tempo. Por que é que diz isso? Acha que Lobo Antunes não queria manter tantas horas de conversa? Não aguentava? Até porque ele devia ter a noção, em 2007, que seria toda a vida dele grafada em páginas brancas. Uma espécie de biografia.
JSC: Ele quis. Ele, de início, podia não querer. Isto começa com um pedido de uma entrevista e quando eu lhe peço a entrevista, ela aceitou. Eu falei com a editora, a Teresa Coelho, na altura. E a Teresa Coelho diz-me que sim, que vamos fazer a entrevista numa quinta-feira. E, dois dias antes dessa quinta-feira, ela telefona-me a dizer que o António Lobo Antunes já não queria fazer entrevista. Eu disse, «Olha, acho muito errado, acho uma grande falta de educação. São quatro páginas que estão reservadas para a edição de domingo. Portanto, se ele não fizer, nós publicamos quatro páginas em branco no Diário Notícias e a dizer que o escritor se negou à última hora. A Teresa Coelho lá convenceu o António Lobo Antunes e, quando eu cheguei para fazer a entrevista…
MC: Não tinha medo dessa posição radical?
JSC: Não sei, não sei. Ele não deveria gostar porque ele sempre se achou o maior e, portanto, dizia que não dava a entrevista e acabou. Mas era uma coisa difícil porque a entrevista estava marcada, tinha o espaço reservado e, portanto, como é que se substituía à última hora uma entrevista de quatro páginas? Não era fácil.
MC: Então, Lobo Antunes acabou por recebê-lo.
JSC: Ele acabou por me receber. Então, quando eu me apresentei lá à porta desse armazém, ele meteu-se à porta e não me deixou entrar. E disse-me «Eu não o conheço, quem costuma cá vir são umas colegas suas». E eu tive uma resposta impensada. Primeiro, não estava à espera que ele fosse mal educado e que me proibisse a entrada. Então disse-lhe «Olha, não me conhece porque eu não costumo entrevistar escritores portugueses. Só estrangeiros e dos bons.» E o homem não esperava aquilo. E penso que, vaidoso como ele era, achou que se eu entrevistava escritores estrangeiros e dos bons, então podia me dar aquela oportunidade. E fomos nos sentar. Sentámos lá num sofá e, durante duas horas e vinte e sete minutos, estivemos a conversar. A entrevista correu muito bem, ele entusiasmou-se, falou muito. Depois, no jornal não cabiam as duas horas e vinte e sete minutos.
MC: Percebeu que o João tinha lido da obra dele. Isso é importante para ele.
JSC: Sim. A entrevista correu muito bem. Ele não dava uma entrevista de duas horas e vinte e sete minutos, normalmente. Como a entrevista não cabia toda no jornal, (em quatro páginas só caberá uma hora no máximo), ficou muito de fora. Eu transcrevi toda a entrevista e, depois, decidi passar aquilo a limpo e oferecer-lhe o trabalho. Quando ele viu aquilo, foi ele próprio que disse «Então e porque é que nós não fazemos um livro?» Eu disse «Olha, boa ideia.»
MC: Então, pediu-lhe para voltar.
JSC: Então, voltámos a nos encontrar. Ele já com essa ideia. Porque nessa segunda vez em que eu vou lhe oferecer a entrevista transcrita por inteiro, ele marca logo a próxima conversa. E a partir daí fomos sempre conversando. Agora, porque é que ele quis conversar comigo, que ele não conhecia, e durante dois anos? Duas horas por cada sessão e durante dois anos. Eu sempre, do início, tive uma dúvida. Porquê? A conclusão a que eu cheguei foi: ele vive muito sozinho, ele gosta de conversar, ele gosta de estar num diálogo. Eu tenho lhe feito perguntas de que ele gosta e, portanto, dá para ele próprio refletir sobre a sua obra e sobre ele próprio. Portanto, é esta a explicação.
MC: Apesar de ele fugir um bocadinho às perguntas, não é?
JSC: Sim, mas isso era número dele. O Lobo Antunes gostava muito de fazer números, de virar as costas ou pôr-se de lado ou não responder. Eu vi isso várias vezes com outros entrevistadores.
Ouça a restante entrevista no episódio do “Ponto Final, Parágrafo”: